I. Corações Contritos

Raul Kuk
33contos
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7 min readSep 24, 2016

As mãos doíam. Eram a única parte do corpo que não estavam bem, na verdade. Todo o resto estava ótimo. Tudo mais era perfeito em sua vida. Tudo estava lindo.

Claro, a carreira de Juarez estava acabada. A inflamação nas articulações o impedia de trabalhar. Aos poucos, perdia a sensibilidade nos dedos, cada vez mais parecidos com ganchos, pequenas garras permanentemente curvadas. Aquilo lhe dava um aspecto animalesco, e gostava da maneira como as pessoas não se aproximavam dele ao notar. Era primitivo. Selvagem. Uma fera com garras.

Aquilo o fizera se sentir mal por meses. Não conseguia segurar um revólver com a firmeza necessária, não conseguia encaixar o dedo no gatilho rápido o suficiente. Provavelmente, jamais usaria uma arma de novo. Mas não importava. Tudo estava bem.

Começou a notar que ficava mais difícil segurar uma caneta pra assinar o próprio nome, ou abrir uma lata de cerveja, da primeira vez que fora ao Rio de Janeiro. Jamais achou que precisaria ir pra lá um dia, mas a gente tem que ir aonde o dinheiro está, não é mesmo? Gostou das praias, curtiu a vida noturna e fez o serviço para o qual tinha sido pago: matar um traficante. Um dos líderes do Comando Vermelho, com o nome idiota de “Baythor”. Quer dizer, quem é que usa um nome desses? Que diabo isso quer dizer? Baythor, que raio de idioma estão tentando falar aqui? Óbvio que era só um apelido estúpido, mas o que estava no RG não era problema dele. O problema de Juarez era “dar baixa” no RG.

Juarez matava pessoas. Por grana.

Ex-tenente da ROTA, em São Paulo, Juarez entrou jovem na força policial. Idealista. Correto. Seguro de si. Queria combater o crime, queria levar a Lei para as ruas e fazer as pessoas se sentirem mais seguras. Acreditava na Justiça, acreditava no que a farda representava e na segurança pública. Acreditava em si mesmo.

Continuou acreditando no dia que foi forçado a matar pela primeira vez. Assalto a mão armada, o meliante resistiu à voz de prisão. Tentou fugir, ameaçou um popular. Juarez o atingiu em cheio na cabeça. A bala pareceu entrar no crânio do criminoso em câmera lenta, viu nitidamente tufos de cabelo e pedaços de crânio, a massa encefálica sendo despedaçada pelo projétil, o chumbo escaldante colocando em ebulição o globo ocular à medida que abria caminho até explodir na nuca. Passou horas vomitando, quase desmaiou.

Da segunda vez que precisou matar alguém, não almoçou direito.

Da terceira, não via a hora de passar pra quarta.

Infelizmente (para Juarez), as coisas mudaram muito em São Paulo com o passar dos anos. O ativismo político ficou mais ativo, grupos de direitos humanos passaram a ter mais direitos e a patrulha do politicamente correto começou a policiar a polícia e, felizmente (para os criminosos), oficiais como Juarez foram, extra-oficialmente, perdendo espaço. Eram tempos diferentes. Nada mais fazia sentido na cabeça dele. Era tratado como se estivesse fazendo algo errado, como se o criminoso fosse o de farda, o meliante fosse a vítima e a população não tivesse mais vez nessa história. Era um mundo estranho, e Juarez não gostava de fazer parte dele. Precisava garantir que teria uma fonte de renda e começou a aceitar dinheiro de cidadãos para dar baixa em traficantes em bairros de classe média. Não era muito, mas era alguma coisa. Eram pessoas que, pelo menos, o respeitavam. E Juarez era bom no que fazia.

Sem a farda, arma sem identificação, se preocupava apenas em não ser visto. O corpo era encontrado e tudo parecia um acerto de contas entre os próprios criminosos. Cidadãos gratos não o denunciavam. Ninguém sabia quem poderia ser. Falou-se até em “esquadrão da morte”.

Mas era só o Juarez.

Com o tempo, começou a pegar “contratos” melhores. Traficantes maiores. E foi, pouco a pouco, estabelecendo uma reputação sólida entre a classe média-alta de São Paulo. Chegou a trabalhar como guarda-costas para algumas celebridades com medo de sequestro. Começou a pensar em largar a polícia e começar sua própria firma de escolta e segurança.

Foi quando recebeu o grande contrato.

Era de um político carioca, influente. Jamais concorreu nas eleições, mas sempre tinha um cargo de confiança em alguma secretaria. Seu filho tinha sido torturado por um dos chefões do tráfico, o tal Baythor. Ele conhecia alguém, que conhecia alguém… Que conhecia o Juarez e o serviço que prestava. Era mais dinheiro do que ele jamais ganharia na polícia e, mesmo para os padrões do seu “emprego paralelo”, era muito bom. Viagem para o Rio paga, pelo tempo que precisasse. Só precisava se certificar de que Baythor estivesse morto antes de voltar para São Paulo.

Juarez aproveitou cada minuto de sua estadia e, quando finalmente armou a emboscada para Baythor, ele não estava sozinho. Estava com o irmão e a cunhada.

Baythor era um cara comum, magro, cheio de tatuagens de prisão, olhos fundos e poucos dentes. Levou um tiro no pescoço e, enquanto tentava colocar o sangue de volta no buraco com as forças que lhe restavam, o irmão fugia, desajeitado, tentando equilibrar seus 110kg de gordura em cima das pernas desajeitadas. Deixou que corresse.

A cunhada caiu sentada, uma bela loura, alta, corpo de modelo e rosto de atriz de novela. Era inacreditável, mas Juarez descobriu depois que ela era dançarina de um programa de auditório. Quer dizer, o que diabos aquela mulher estonteante estava fazendo com o irmão de um traficante, um gordo desajeitado e asqueroso? Sabia que tinha de ir embora, mas não resistiu ao ver os olhos dela, de um azul calmo como o céu, emoldurados por cabelos perfeitamente lisos e dourados. Estendeu a mão para ela, pedindo que se acalmasse, que tudo ia ficar bem e que não tinha intenção de machucá-la. Ela segurou a mão dele com um sorriso mágico, tímido.

Foi a primeira vez que sentiu a mão doer. Achou que fosse amor, mas era o primeiro sintoma da artrite reumatoide. De qualquer forma, uma chama se acendeu entre eles, e ele a chamou para voltar com ele. Não se importou com o namorado gordo, com o traficante morto, com a própria segurança, nada. Disse pra ela quem era e o que fazia. Queria levá-la para São Paulo a qualquer custo, tirá-la daquela falsa vida de falsas esperanças e falsos futuros.

“Mas eu não consigo ficar longe do mar”, ela disse.

Ele não se importou. Levou-a consigo para Praia Grande, no litoral de São Paulo. Não ficaria longe demais da capital, ela ficaria perto do mar e, com o tempo, começaria a fazer novos contratos ali mesmo. Aquela bela cidade litorânea precisava de alguém como ele. E assim foi.

E assim viveram (por alguns meses).

As dores nas mãos foram piorando, a dificuldade cada vez maior em cumprir os contratos, a falta de dinheiro, a insatisfação da bela mulher que ele conhecia apenas pelo nome artístico: Regyelle Chrislaynne. Não que ela fosse artista, longe disso. Mas sentia que largara toda uma carreira promissora no showbussiness por um sonho que nunca se realizava. Ao contrário, parecia cada vez mais distante.

Numa bela noite, estavam na frente da TV, assistindo o Jornal Nacional. Não se falavam direito já fazia três ou quatro dias, não sabia ao certo. Intimamente, tornaram-se dois estranhos. Não havia mais paixão nem glamour. William Bonner anunciou, com sua voz de âncora de telejornal (que é o que ele realmente era, na verdade): “Foi preso no Rio de Janeiro o traficante Fat Boy, sendo levado para o hospital regional. Líder do Comando Vermelho, desde a morte de seu irmão, Baythor…”

- É o meu marido — deixou escapar RC (não consigo escrever o nome dela de novo).

“Seu marido meuzovo”, pensou Juarez. “Seu marido sou eu. Esse é só mais um que vou dar baixa”. Era uma fera. Com garras de artrite. E agarraria sua esposa com elas, e não a soltaria.

A viagem para o Rio de Janeiro sairia cara, mas precisava acabar com aquele saco de banha desgraçado. Não podia haver espaço para dúvida na linda cabecinha loura de RC. Entrou no hospital e viram suas mãos deformadas. Encaminharam-no para reumatologia. Não queria ir, só precisava achar o quarto de Fat Boy e voltar para Praia Grande, mas também não podia levantar suspeitas. Aquele gordo covarde que corria igual uma vaca assustada por um raio não ia roubar a mulher — que provavelmente já tinha roubado de alguém antes.

Pediram que Juarez preenchesse uma ficha. Não conseguia segurar a caneta direito, se atrapalhou e deixou a arma cair, disparando. Os seguranças do hospital pularam em cima dele para contê-lo, temendo que fosse uma tentativa de resgatar o prisioneiro internado. Ninguém foi ferido, mas, durante a confusão, homens do Comando Vermelho entraram no hospital e resgataram o prisioneiro internado. Juarez foi levado à delegacia para prestar depoimento e liberado logo em seguida (sem sua arma). Fat Boy estava foragido. Sem alternativa, voltou para o apartamento na Praia Grande, torcendo para ainda ter algum dinheiro. RC não estava. Deixara um bilhete.

“Voltei para o Rio. Não leve a mal, não é que eu ame o Fat Boy… Mas minha carreira como dançarina está toda lá, e ainda posso ser manicure nas horas vagas. Além do mais, seus dedos enroscam no meu cabelo. Machuca um pouco. Os dedos de Fat Boy parecem bobes, sabe? Daqueles de fazer permanente. O cabelo desliza! Fique bem. Adeus.”

Nunca mais se viram, pelo tempo que lhe restava para viver. A pior artrite, pensou Juarez, é a do coração, que impede as pessoas de serem gratas e submissas a quem lhes ofereceu tudo.

Pegou uma long neck e descobriu que não conseguia mais abrir sozinho. Precisou quebrar o gargalo da garrafa na parede. Foi encontrado morto, dias depois, com um pedaço de vidro entalado na garganta. Tentou escrever na parede, com próprio sangue, uma despedida para a amada, mas morreu antes de terminar de escrever o nome dela. Devia ter escrito apenas “RC, sua biscate… Quem vai abrir cerveja pra mim agora?”, como tinha planejado, mas a vida tem dessas coisas, a morte também. Por que não? Somos todos dedos com artrite nessa sociedade, afinal.

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Raul Kuk
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