II. Fim do tempo, malandro!

Fábio Ochôa
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9 min readOct 7, 2016

Cê é de Berlim, malandro? Que curioso, pra ver como as coisas são não é mesmo? Eu, eu tô de boa, ainda mais dito o que vou fazer, né? Porra, eu sei, eu sei, é suicídio mas é de boa. Puta história maluca. Esse nosso mundo é uma caixa de surpresa malandro. Eu não fazia ideia.

Não fazia a mais puta ideia. Tá ligado aí esse K7? Muito vendi disso na Alemanha. Na parte lá dos oriental, não é tão ruim quanto falam não. Mas eu só queria estar aqui, onde tô agora. Perna esticada, solzão do Rio de Janeiro, Bud na mão. Um homem precisa de pouco pra ser feliz.

Tá gravando? Porra, liga aí que a história é boa. E esses dedo aí do teu amigo? Esclerose? Foda, malandro, meu pai tinha isso também, sabe? Bom, vamos lá.

Meu nome é Firmino. Firmino Sorriso, Firmino Colgate, não é o nome, mas é como todo mundo me chama, né? Acho que é porque eu vivo rindo, malandro. Sou do Bope, quem olha nem diz. Ninguém é uma caixinha, né malandro? O homem é uma multiplicidade de coisas, li algo assim uma vez, é uma verdade, malandro, uma puta duma verdade. Acho que quando chega um ponto da vida que tu vê muita coisa, tanta coisa, tu acha que tem que encarar tudo com um sorriso. Sorriso triste, falso, sincero, foda-se né. Sorriso antes de virar sorriso de caveira, né? É minha filosofia, malandro, o pessoal estranha, mas é minha filosofia. Tô no Bope faz já 5 anos malandro. Essa porra tá gravando mesmo? Pô, vendia, mas fazia tempo que não via um funcionando. Tem como ouvir depois? Bom, eu dou aula de kickboxer na comunidade. A gente faz o que pode. Pro pessoal carente, né? É um meio de tirar a bandidagem do caminho, sabe, levar criança pro bom caminho. Se o governo não faz, a gente faz. É Brasil né malandro? Fui um tempinho também um dos Caveira de Cristo, grupo cristão lá do pessoal, mas não fiquei muito tempo lá não. Nada contra.

Bom, tudo começou com o Caçamba, malandro, ele tinha esse nome porque era gordo da porra, sabe? Ele tinha feito um monte de merda, não era cara mau até, mas tinha feito bosta. Não deu, ficou marcado. Entrou pra lista de abate. Sim, tem lista, ela rola. É foda, mas fato da vida. Eu não concordo nem desconcordo, malandro. Eu só sorrio. Bom, a gente tinha a dica, eu e o Croco, puta cara, um armário, sinistro, um armário de más intenções malandro e armamos pro Caçamba. Demos uns treme nele, o cara não arregou, era boludo, tenho que dizer, o Croco vacilou feio e levou coronhada na cara, Caramba, correu, malandro, já viu gordo correr? Eu não sei você, eu acho engraçado pra caralho, mas eu sou eu. Tem gente que não gosta que ria dessas coisas.

E que gordo que corre, desgraçado, na hora da morte todo mundo tem asa no pé. Não aquele tipo de asa, bom, você entendeu. O Croco tava putaço e quando ele fica putaço vira bicho, não vê mais nada, começou a atirar às cegas. O Caçamba não pensou duas vezes, enfiou o pé na porta de um barraco e entrou, a gente meteu duas balas, uma sei que pegou, a outra não. Baita griteiro malandro. A gente chegou na porta, o velhinho que morava ali, parado, branco, colado na parede, puro cagaço, também né? O Caçamba se arrastou até a outra peça, dava pra ver pro rastro de sangue, aquele corpo grande pendurado na porta, caído, eu disse que o tiro tinha pego, modéstia à parte, bom, mas não é sobre isso a história. A história é sobre o que tinha do outro lado da porta.

Berlim, malandro. Tinha Berlim do outro lado da porta. Assim, a porta tava aberta, Caçamba no chão estrebuchando, e do outro lado da porta, onde deveria ser uma saletinha qualquer, um quarto, qualquer coisa, tinha um outro apartamento gigante que dava para uma rua. Uma rua mesmo. Céu azul cinza, prédio cinza, casa velha, bloco de apartamento velho. É, isso mesmo.

O velho tinha Berlim em casa. Explicando melhor, dentro daquela sala, ela levava direto pra Berlim, um apartamento blocado, você tava no morro, abria a porta, tava em um apartamento em Berlim. Não sei explicar, malandro, só sei que era assim. Não sei se alguém sabe explicar, o velho apenas disse que isso apareceu lá um dia. Nosso mundo é uma caixinha de surpresa malandro.

Se fosse filme de ficção, a gente ia dizer que aquele velho tinha um portal espacial dimensional o caralho, ali, no quartinho de casa. Se fosse ficção, não a realidade. Bom, né, se livramos do Caçamba, entramos num acordo com o velho, se é que tu entende e fizemos o que qualquer brasileiro faria nessa situação. Começamos a pensar num meio de lucrar em cima disso.

Era a Berlim da época do muro, tá ligado? Um puta muro dividindo. Todo mundo já leu uma coisa ou outra sobre isso. É um conceito meio maluco. Mas o que que não é nesse mundo? Teve um caso famoso de um guri que tentou pular o muro, tem um documentário sobre isso. É. Eu comecei a ler mais coisa sobre a Alemanha, sabe como é. Peter alguma coisa, Peter Frampton, acho. Isso. Ele pulou, foi alvejado e ficou pendurado no muro. Não caiu em nenhum dos lados. Sangrou até morrer. Nenhum dos lados fez nada. É um mundo cão malandro. Mundo cão pra caralho. A gente fez a limpa nos briques, né? Disco de vinil, fita K-7, vídeo, fita VHS, tudo que pudesse juntar que não tinha lá. Os alemães compravam tudo. Muita coisa que a gente passava pra lá ia parar numas lojas lá, Delikat, Exquisit etc. A gente até aprendeu a arranhar um pouco do idioma. Os gringo pagavam bem, pena que tudo marco né? Coisa que não vale nada hoje em dia. Mas valeu pela molecagem, sabe?

Mas o fato era que a gente tava sentado no que era a maior coisa de todos os tempos e a gente não sabia muito bem o que fazer com isso. Dinheiro, dinheiro, a gente viu que não ia dar. E era bloco comunista, né? Clima de noia, a gente tentava não dar muita bandeira, não fazer muito turismo porque sabe como é que é. Algumas das fitas que a gente vendia, o pessoal se reunia em igreja para escutar, escondidos. Igrejas tocando rock. Estas coisas são muito malucas, vê só. Mas não cheguei na parte mais maluca ainda. Essa é boa.

Sabe como funciona a viagem no tempo? Mesmo? De uma maneira muito esquisita. Eu tenho até uma teoria pra isso. É assim, você abre a porta e entra naquele apartamento alemão. Mas aí dá três, quatro segundos, você ouve um clique, malandro.

Você se vira, e isso é impressionante. Você vê você mesmo, abrindo a porta de novo e entrando. Vocês se olham, e cada um vai fazer o que tem que fazer. Até o outro você ficar transparente e sumir da sua vista. Entende? Te ligou no que acontece?

É assim, malandro, isso é viagem no tempo. Você sempre passa pela porta em direção ao passado. Isso cê já entendeu. Mas sempre abre a porta no MESMO instante do passado, tá ligado? Você sempre viaja para o exato instante em que abriu a porta pela primeira vez. Você entra no passado e por algum lag bizarro do tempo, você entra de novo. E de novo. E de novo. Quantas vezes abrir a porta aqui no presente. Só que no passado, parece que para o próprio tempo se organizar, para não dar confusão, você volta três segundo de cada vez. É assim, ó, eu sei que é meio complicadinho, mas vamos lá, abri a porta hoje, entrei aos 12 segundos da meia-noite do dia 3 de fevereiro de 1987. Abri a porta daqui a três horas, saio lá aos 09 segundos da meia-noite do dia três de fevereiro, abri a porta amanhã, saio aos 06 segundos da meia-noite.. e assim por diante.

Por uns poucos segundos, todas nossas versões dividem o mesmo lugar. Depois disso, cada um vai para sua própria linha temporal, ou seja, cada vez que a gente vai pro passado, cria uma linha temporal diferente, tá ligado? Eu sei que é complicado de entender. Bom, eu tirei isso de um gibi de ficção científica. Mas acho que é isso mesmo que acontece. Vai saber se o autor também não cruzou com um desses portais, né? Depois de tudo que eu vi eu não duvido de nada.

E isso que leva ao uso que a gente deu depois. Linhas do tempo diferentes, entendeu? Foi isso que deu o estalo. Teve uma operação que deu errada e a bola caiu pra gente. Sumir com cadáver. Senão dava merda, malandro. Se lembra do que eu falei da questão da linha do tempo diferente? Pois é.

Teste científico. Que melhor lugar para esconder o que ninguém tem que achar, que no passado? Ainda mais numa linha do tempo paralela?

Tá vendo a beleza da coisa? Não deu outra. Desovamos o cadáver lá. Dia seguinte, abrimos a porta de novo, para teste, pra ver se ia tá lá o corpo ou não. O apartamento vazio. Nada de defunto. Sucesso. Entramos.

Deu três segundos, ouvimos o clique. E vimos a gente entrando com o corpo enrolado, que nem fizemos no dia anterior. Nos vimos, fiz joinha pra dizer que tudo ia dar certo e começamos a lentamente desaparecer, como era de se esperar, cada um indo para sua linha temporal. E nada mais de cadáver no presente. Sucesso absoluto, malandro. Descobrimos um tremendo novo ramo de negócios.

Foi um corpo desovado com sucesso. Depois, claro, foi outro, outro e outro. Infelizmente é assim que o ser humano funciona, né? Nunca para enquanto tá por cima. Mas claro que sempre tem o dia que que dá caô. Sempre.

Teve um que o Croco ficou de trazer. Cobriu ele de porrada, achou que matou, por bobagem, roubo de bicicleta de um parceria dele, sem galho, a gente desaparece. Um a mais, um a menos, foda-se né? Só que ele não tava bem morto, malandro. A gente virou as costas e o filho da puta pulou a janela, erro primário, coisa de amador. Já viu como é Berlim? Mal-iluminada pra caralho. O maluco se mandou, a gente tentou pular a janela mas bateu medo, foda, sei, é que o outro tava desesperado e com nada a perder, né? Eram três andares. Descemos a escada, demoramos uma vida.

E o filho da puta sumiu malandro. Ainda demos volta na quadra e nada. Pensamos, que se foda, deixa o babaca aí no passado. Ele nunca ia voltar mesmo.

E deixamos ele lá. Foi aí que a coisa começou a dar merda, malandro. Merda feia.

O muro tá lá de volta. Chapa. Que merda. Com micro-ondas e sensores sísmicos e uma caralhada de coisa. Eu não sei que porra aquele maluco fez no passado, mas o muro tá de volta. Eu não sei que foi. O tempo é como uma cascata, tá ligado? Tudo se espalha e uma coisa leva a outra. As coisas acontecem em cadeia. Linha do tempo paralela é o caralho.

Mas se fosse só pelo muro tudo bem. Fodam-se eles. O foda era minha mina a Ana. Trabalhava na ABIN, morava junto comigo. A minha casa tá vazia, malandro. Procurei desesperado. Ela mora na Rússia. O avô dela nunca veio para o Brasil.

Cerveja Polar, uma lá do sul que eu tomava sempre aqui, não existe. Já viu um filme chamado Gladiador? Russel Crowe e tal. Amava. Não existe mais. O tempo, malandro. O tempo e suas ramificações fodendo tudo. Efeito cascata. Sei lá quanta merda eu fiz sem querer malandro. Um segundo, sempre o mesmo momento e fodeu com tudo, malandro.

Eu não sou mau sujeito, malandro. Dou aula de kickboxer pra molecada, tento fazer do mundo um lugar melhor. Como dá, claro. Eu tenho noção de responsabilidade, né? Por isso eu vou voltar pra lá, malandro. Vou abrir aquela porta e esperar 4 segundos, 8 segundos, 12 segundos, quantos segundos for.

E quando eu abrir aquela porta, pela primeira vez, eu vou apontar, malandro. Eu vou engatilhar, apontar, vai se ouvir um trovão e nada desse monte de merda vai acontecer, vai ser um mundo com Ana, cerveja Polar e Gladiador. Vai ser suicídio, mas vou morrer fazendo o bem, então vou morrer sorrindo, né?

É por isso que me chamam de Firmino Colgate, né?

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