IV. Réquiem de Flauta para o Defensor Peruano

Fábio Ochôa
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10 min readNov 14, 2016

A noite foi longa e ele já não era tão jovem. Era incrível como essa sentença simples se tornava mais real e palpável dia após dia.

Fu fi fu fi fu fi.

A gravidade parecia maior, o corpo cada dia mais pesado. As botas também. O tacape era cada vez mais escorregadio e algumas gramas mais pesado. E a flauta, sequer conferia leveza às coisas como antigamente. Antes era aventura. Hoje, somente fardo. A se equilibrar sobre seus ombros, qual o peso do mundo.

Fu fi fu fi fu fi.

Estava seguindo a pista noites a fio, mas desde que Tânia havia sido internada no hospital, elas haviam esfriado bastante. Não queria admitir para si mesmo, mas as coisas simplesmente não estavam andando.

Fu fi fu fi fu fi.

Chegou no asilo que cheirava a criolina, um pouco mais o sol se ergueria, um titã de cada manhã, já era hora de tirar a fantasia e o cansaço do corpo.

Tânia.

Os olhos fundos dela, levemente umedecidos ao ver que ele se prestara a visitá-la doeram no seu coração. Dormiria um um pouco, faria nova visita hoje, cuidaria do antebraço também, achava que não estava quebrado. Apanhara bastante, é verdade, mas ainda assim, nada mal, afinal, eram três jovens e ele já contava com 57 anos. Três derrubados no chão, um fugira, tinha quase certeza que cegara o outro. O dedo entrou mais fundo do que esperava. Acontece. Sentiu um ligeiro calafrio ao relembrar o choque percorrendo seu braço, o grito desesperado do rapaz. Entrou no quarto, tirou a máscara e a capa e engoliu o coquetel de analgésicos enquanto o tacape empapado e pegajoso de sangue despencava ao chão.

A verdade, a verdade verdadeira, a verdade que não queria admitir é que o tempo estava passando. Qualquer noite, seria a última, sabia. Qualquer caso, o último.

Uma ganguezinha fuleira. Delinquentes. Cruzara com eles por pura sorte — ou azar deles. Bom. Estava cada vez mais comuns as noites em que circulava sem trombar com nada. Já tentara circular de táxi, mas as poucas vezes que fez isso decididamente não deram em coisa alguma além de uma despesa alta. O melhor era circular a pé, mesmo isso sendo extremamente trabalhoso.

Fu fi fu fi fu fi.

O antebraço ainda estava dolorido, o golpe que recebeu com a barra foi certeiro, mas sim, tinha razão, não estava quebrado. Com vagar tirou a roupa. Joelheiras. Saqueira. Caneleiras e capacete, que salvaram sua vida uma vez ou outra, mas a bem da verdade, mais atrapalhavam que ajudavam. Deitou na cama e ouviu os passos no corredor. Igualmente pesados e cansados. Era o Grande Tomás, a cadência era inconfundível.

- Tomás? — perguntou, seu sotaque peruano, quase perdido, lhe traindo.

Fu fi fu fi fu fi.

Tomás, um negro grande, pesado, olhar amarelado e barba esbranquecida, cuja roupa era semelhante a um tapapó de ferreiro, com luvas que ocultavam soqueiras de metal, se pôs a porta.

- Como foi a noite? — perguntou.

- Uma gangue. Quatro moleques. E a sua?

- Nada. Todo o centro. Nada. — suspirou exasperado.

- O caso andou alguma coisa?

- Estou em outro agora.

O peruano se recostou na cama.

- Houve um novo sorteio? Porque não me avisaram?

- Eles vão. — Falou Tomás se preparando para sair — Bom dia, Raul.

- Tomás!

Parou e voltou.

- O que foi?

- Sabe onde anda o Fernando?

- Fernando…

- O Vitoriano.

- Ah!

- Ele está sumido faz duas semanas.

- O nome dele é Fernando? Ele nunca me disse.

- Sim, sim.

- Ele está fora, do país, até, acho. Investigando alguma coisa.

- Ele não tava no caso do roubo dos cartões?

- Tava, mas você sabe, o novo sorteio…

- Aquele que eu não fiz parte.

Tomás suspirou.

- Tudo bem, Tomás.

- Eu sinto muito, Raul, eu só sigo as regras.

- Tudo bem, Tomás.

Fu fi fu fi fu fi.

- Descanse um pouco, Raul. Descanse um pouco. O dia está chegando.

E então ele saiu.

Raul esticou as pernas inchadas na cama e pensou sobre Cronópio, o — tosse — “Mestre do Tempo”, fazia semanas também que ele não dava as caras. Nos últimos dias antes do seu desaparecimento andava preocupado com a, como é que é mesmo? “Tessitura temporal da realidade” ou algo assim. Dizendo que este contínuo não era mais correto, que o Muro de Berlim havia caído, coisa que todo mundo sabia que de fato ocorrera. Mas o Muro estava em pé, Raul concordava apenas por educação. Mas o que realmente o preocupava não era tanto o desaparecimento de Cronópio — ok, isto sim, mas não apenas isso — mas o fato de mais ninguém do asilo esboçar qualquer reação ao seu nome. Como se ele nunca tivesse existido. Como é que ele vivia dizendo?

Uma vez que você muda o tempo, os efeitos…

Fu fi fu fi fu fi.

O fato de ter ficado de fora do sorteio o magoou mais do que esperava.

Fu fi fu fi fu fi.

No último sorteio — último que ele participou ao menos fu fi fu fi fu fi — caiu para ele investigar o caso de uma menor, Ana. Através de Ana ele descobriu uma rede gradualmente crescente de prostituição. Sempre eram os casos mais difíceis e demorados para desembaraçar. Muitas variáveis, muitas cabeças para quebrar, mas trato é trato, não que estivesse reclamando. Ana estava salva — ou ao menos salva para o que o destino a reservasse — mas porque parar por aí? Porque não desbaratar o resto da operação? Não era isso que heróis faziam? Tânia era uma puta de rua, foi quem ajudou ele a achar o rastro, onde ninguém mais queria se meter. Internada no hospital essa semana. Soropositiva. Como é que ela não sabia?

Onde todos viam uma puta acabada, ele via alguém que ele conversava de vez em quando, que filava cigarros e que o ajudou a avançar em um caso muito grave. Era sua maior qualidade e seu maior defeito: sempre via o melhor nas pessoas. Azar. Fazia tempo que ele veio do Peru para a cidade grande no Brasil. No pequeno vilarejo de Tocopila, lugar rico em duas coisas: sonhos partidos e lendas. Uma das que mais gostava era a da Caveira Peruana da Morte, que habitava a pirâmide perdida de Chupacigarro.

É um tanto vergonhoso assumir, mas essa foi sua principal motivação para aprender a tocar flauta. O tédio também teve sua parte nisso. Ele só sabia tocar aquelas poucas notas fu fi fu fi fu fi. Gostava do tom triste, de elegia nelas. Fazia sentido para ele. Bom, ele era um flautista, não precisava ser necessariamente um virtuose. Os quadrinhos também ofereceram uma boa dose de escapismo. E também o defensor mascarado da vila. Cada vila tinha um. Com fronteiras borradas entre o que eles realmente faziam e o que era puro mito.

Se pegava pensando cada vez mais no passado, o que era um inequívoco mau sinal. Haviam, claro, os antigos amigos que não via a décadas, a primeira mulher que teve, como ele pouco mais que menina ainda, Sondra, pensava nela eventualmente, nos caminhos que a vida lhe reservou. Não era tanto ela em si, era mais um desvelo pelas possibilidades nunca cumpridas. A ideia original era um tanto tacanha, mas foi assim que começou a carreira como defensor do vilarejo. Sua ideia era ter uma música de assinatura, de flauta, uma música que qualquer vilipendiador ao ouvir saberia que seu fim estava chegando. Uma música que qualquer inocente ao ouvir, saberia que a justiça estava feita.

E claro, uma música que poderia vender bastante CDs e fitas K-7 por seus significados. Ok, era um plano de marketing meio falhado, mas muitas pessoas que fazem MBA não conseguem pensar em nada melhor. No fim virou algo mais. A vida tem dessas coisas.

A escolha de roupas era um constante problemas, com as intempéries do ofício elas se desgastavam muito rápido e era realmente difícil manter um visual padrão. Teve uniformes azuis, vermelhos, verdes, escuros, às vezes tudo junto, de acordo com os danos que as roupas sofriam ou sua condição de sujeira. Assim, a letra que ostentava no peito também mudava, às vezes era conhecido como o Flautista Peruano, Defensor Peruano, Flautista da Morte, Homem de Tocopila, Flautista Lendário de Chupacigarro, com o tempo, coisas como a nomenclatura certa deixaram de importar. Nem ele mesmo ligava mais para isso. O que importava era o que ele fazia e o que significava.

Fu fi fu fi fu fi.

Sua trajetória chegou até a virar filme, de tão curiosa e idiossincrática, Flautista Peruano Begins. Raul ficou preocupado ao saber da equipe envolvida, um filme poderia revelar o seu segredo, dizer que o flautista da praça era também o vingador mascarado noturno — oh, céus, tão óbvio quando você pensa a respeito — seus inimigos — os poucos que tinha, ao menos — poderiam saber do seu paradeiro, mas a história foi modificada a tal ponto que se tornou irreconhecível — meu Deus, Raul, com sua aparência de índio Tucumán virou Antonio Bandeiras no filme, Antonio Fucking Bandeiras! — uma parte de Raul suspirou aliviada e divertida, outra, se sentiu vagamente desapontada. Desgostara bastante do tom de farsa irônica e comédia com que sua história fora tratada. Ele era apenas um homem que queria fazer o bem à sua maneira. Isso não era nada engraçado.

Reparou que o martelo e o arame farpado que sempre carregava estavam esparramados pelo quarto. Depois arrumaria. Sentia o efeito dos analgésicos, aquele torpor quente e suave, levemente enjoado, invadir seu grande corpo. Apagou gradualmente como uma lâmpada que se esvai.

Acordou do sono quente e febril lentamente, o Vitoriano, com seu casaco sempre limpo, cartola e monóculo, estava sentado aos pés da cama. Todas as ferramentas de trabalho já estavam guardadas, como típico da obsessão por ordem que o Vitoriano tinha. Falou qualquer coisa, mas não conseguiu discernir o que exatamente. O sono voltou a reclamar seu corpo.

Naqueles dias morava no asilo especial. Não era qualquer um que podia entrar ali, era um asilo dedicado a velhos vigilantes ou heróis em dificuldades. Ao quarto ao lado estava O Pregador, ex-pastor evangélico que limpava as ruas usando pregos e martelos. Muitos pregos. Muito bom no que fazia, mas todos evitavam ele. O Grande Tomás também, no quarto adjacente, que passeava às noites com sua corda e sua marreta. Tomás devido ao seu porte e à semelhança com o livro de Harriet Stowe. Ele alegava ser um escravo liberto. Muitos duvidavam, mas vai saber. Era um mundo fodidamente estranho. O Senhor Legal no andar de cima. Resolver questões legais? Ele dava assessoria de graça. Com o inconveniente de usar uma máscara, mas tudo bem. Em caso de perder a ação ele usava recursos ilegais, como incêndios, terrorismo e espancamentos.

E claro o Cronópio. Cronópio, o viajante do tempo, nunca mais visto. Ninguém mais se lembrava dele. Exceto Raul. Ele sempre foi legal com o peruano, meio chato e autoimportante com seu papo de defensor do continuum, mas inegavelmente legal. O que todos tinham ali era um modelo louco de vida, mas você se acostumava. Quem comandava era o Gigante Monolito, diziam que ele era um milionário recluso que já havia lutado com Ted Boy Marino e perdeu tudo quando passou a febre do Telecatch, não importava muito. O fato é que para ficar ali tinha que seguir determinadas regras. Uma delas era salvar uma vida por semana. Você recebia uma caixa e um sorteio era feito. Dentro de cada caixa, um papel com um nome. Aquela era a pessoa a ser salva. Do que, frequentemente nem você sabia, daí as longas jornadas de observação. Às vezes dava certo, às vezes não, às vezes alguns casos trocavam de mão. Existiam maneiras piores de ganhar um teto, comida e medicamentos a cada dia.

Na porta, sempre havia o grande samurai de espada em punho a vigiar. Segundo ele, guardava o lugar contra o Dragão da Maldade. Sem nunca arredar pé, dia após dia. Às vezes parecia que todos ali tinham um ou dois parafusos fora do lugar. Ou uma caixa inteira até. O próprio Grande Monolito era um exemplo disso. Ele próprio sabia que era um dos membros dos Sete Magníficos, grupo que fez bastante em sua época, mais de duas décadas atrás. Essa era a armadilha: ele se lembrava que fez parte do grupo, mas não de qual dos sete ele era. Esse era o custo da vida que levavam. Mas não era hora de pensar nisso. Havia uma rede a desbaratar. Uma visita a Tânia. Muita coisa para fazer. Pouco tempo. Sempre pouco tempo.

Fu fi fu fi fu fi.

Acordou de novo, sentindo o corpo ainda baqueado. Estava cada vez mais difícil. Sentado na cama estava Vitoriano. Tomás estava na porta.

- Oi. — disse com a voz grogue de pouco sono.

- Oi. Respondeu o outro. Examinando o próprio chapéu.

- Você andou sumido.

- Missão. Você sabe, o último sorteio.

- O que eu não participei.

- Eu estava fora do país.

- Onde?

- Peru.

Raul ficou tenso.

- Você sabe qual é o acordo, Raul. Salvar uma vida. Esse é o preço da estada aqui.

Vitoriano passou a caixa que estava em seu colo para ele, a caixa onde era feito cada sorteio.

- E essa é a caixa do seu sorteio.

Tomás e Vitoriano olhavam para ele, atentos. Devagar e desconfiado, apanhou a caixa. A abriu. Havia uma passagem para Tocopila. Uma foto de uma mulher, que ele achou vagamente familiar.

E o nome da pessoa que ele deveria ter salvo naquela semana, caso participasse do sorteio. O seu próprio. Raul Montero.

- Sondra ainda mora em Tocopila, Raul. Essa foi a minha missão. Não foi muito difícil de encontrar.

Respirou fundo, como fazia de vez em quando.

- Existe pouca coisa que eu não encontro. Ela passou por coisas difíceis, mas está lá ainda.

Os dedos brincavam no chapéu, seus olhos não paravam de estudar Raul.

- Talvez fosse bom para os dois se encontrarem. Digo, nessa altura da vida de vocês.

Puxou do chapéu o papel que havia retirado no sorteio da última semana, virou o papel para o homem sentado na cama. O homem a ser salvo. O nome de Raul também estava no papel do Vitoriano.

- Eu.. tenho uma vida para salvar… — balbuciou Raul.

- Eu sou um herói… — não soube porque disse isso, nem o que isso acrescentava à conversa, soou como um protesto desarticulado.

- Você está se machucando cada vez mais, Raul.

- Mas o caso que estou trabalhando…

- Está com Tomás agora.

- Eu tenho uma vida para salvar…

- Então faça isso. — deu dois tapas de leve no joelho dolorido de Raul — Salve uma, amigo. Ou duas, talvez.

- Você não entende, aquelas pessoas contam comigo… — protestou de novo, baixinho.

Vitoriano e Tomás pegaram sua mochila com ferramentas e lentamente saíram do quarto. Nenhum recado poderia ser mais claro que este gesto, amargo, ainda que bem intencionado. Desejaram boa sorte a ele. A flauta havia ficado. Sentou e olhou a foto e a passagem. Uma foto e uma promessa.

No fim a escolha ainda era a mesma de sempre: decidir se salva ou não uma vida. O rosto distante lhe olhando através do continente, o nome em um papel pesado como chumbo. Pesado como seu corpo. Pesado como a existência. Mas ele era um herói.

Ele sabia o que fazer. Ele era um herói. No fim das contas, a verdade verdadeira é que não havia o que escolher.

Fu fi fu fi fu fi.

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