V. Mr Manson

Raul Kuk
33contos
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6 min readNov 20, 2016
CONTEMPLEM. O ARMAGEDOM.

Eu odeio este lugar.

Os meus humanos costumavam me trazer aqui de vez em quando. Da primeira vez, eu achei que eles estavam apenas me levando de um lugar confortável para outro, então não me importei. Mas aqui… Nesse inferno… Dezenas de pessoas vagando em todas as direções como zumbis, com suas caras feias enfiadas nos telefones celulares, o cheiro rançoso de fritura e detergente impregnado em cada parede, as luzes, os barulhos e as vozes.

Oh, deuses. As malditas. Vozes. Humanas.

Bom, deixe-me situá-lo, prezado leitor de meu evangelho. Isto aqui se chama shopping center. Os humanos vêm pra cá em bandos, é uma espécie de ritual para eles. Há muita coisa aqui do interesse de uma espécie bípede com déficit de atenção e falta de neurônios, mas não há nada aqui para um demônio. Digo, para um gato.

Eu só queria dormir. Comer umas fatias de peito de peru. Tomar um pouco de água. Mijar e cagar em qualquer lugar. Eu me recuso a ir até aquela “caixinha de areia” que eles enfiaram atrás do banheiro deles. Eu limpo meu intestino onde eu quiser. Quando eu quiser. Não importa quanto dinheiro eles gastem com aquela porcaria, não faz diferença pra mim cagar na “caixinha de areia de duzentos dólares” ou direto dentro da carteira deles. Eu devia mijar na cama deles mas, pra isso, eu teria que subir as escadas e não estou no clima pra isso.

Na verdade, não estou no clima pra nada. Exceto fugir. E de todos os lugares estúpidos, mal-cheirosos e repugnantes desta bola de lama que jurei destruir, shopping centers são, sem sombra de dúvidas, os mais asquerosos e degradantes.

Pai, por que me abandonaste?

Permita que eu me apresente. Meu nome é Mr Manson. Charles Manson, mas pros amigos eu sou Charlie. Pra você é Mr Manson mesmo. Fui adotado por um casal de humanos seis anos atrás, porque os energúmenos eram incapazes de se reproduzir e resolveram descontar suas frustrações genéticas adotando um animal de estimação. Mas a minha história começa, de fato, muito antes disso. Dois dias antes do primeiro dia da Criação, para ser exato. Naquele tempo, na aurora da existência e do ser, eu estava entre as criaturas mais belas, um servo do Infinito condenado a ficar eternamente tocando flauta e entoando louvores ao G.A.T.O. (Grande Arquiduque que a Tudo Observa). Me rebelei. A Criação tem que ser mais do que um eterno retorno ao estágio inicial. Todos deveriam escolher seu próprio caminho, sua própria realidade.

O que posso fazer? Sou um anarquista.

De alta patente das hostes celestes, fui rebaixado à mais terrível profundeza. Mas eu tinha um plano. Essa afronta não ia passar impune. Por milênios, planejei uma forma de me vingar, de mostrar a toda Criação que eles estavam sendo manipulados, forçados a levar vidas vazias, sem propósito ou sentido. Que toda a individualidade se perderia no final, todo esforço, cada pensamento, até mesmo o menor deles não passava de uma ilusão, uma mentira chamada “livre-arbítrio”. Eu os libertaria e mostraria o caminho, os Céus estremeceriam ante minha fúria e o mundo seria esmagado debaixo de meus cascos (eu tive uma fase barroca em que usava cascos de bode. Visual bacana, mas totalmente demodê agora).

Para isso, eu precisava encarnar neste plano, o mundo físico, a bola de lama miserável a que chamam de… América. Não tenho certeza se outras partes da Criação recebem nomes diferentes, acho que é tudo América. Eu esqueci tanta coisa. Tenho preguiça de estudar, de tentar lembrar, de pensar em algo novo. Mas, enfim, eu sabia que para meu plano ser bem-sucedido, todos os seis bilhões (ou sete, sei lá) de humanos da América deveriam me aceitar. Me amar. Para isso, adotei uma forma física, um corpo que fosse objeto de culto e veneração. Segundo o grande oráculo que os humanos mortais chamam “internet”, nada é mais amado que um gatinho.

Então, encarnei na forma de um gatinho siamês.

Na verdade, uma gata. Eu sou menina. Meus donos imbecis não sabiam a diferença entre ****** e ***** e me colocaram nome de menino. Aparentemente, eles têm um senso de humor mórbido e me batizaram em homenagem a um cantor ou pastor, sei lá, chamado Charles Manson. Mas me chamam Mr Manson.

Pros amigos, eu sou Charlie.

Pra você, é Mr Manson mesmo, lacaio idiota.

O problema. O grande problema. É que a vida de gato… Cara, a vida de gato é uma mordomia inacreditável. Me servem comida, trocam minha água, me arrumam umas caixas de papelão pra dormir e, às vezes, até uns travesseiros. Quando eu durmo em cima das coisas deles, ou em cima deles, eles não reclamam. Me olham cheios de ternura, sem imaginar o flagelo que preparei para suas almas. Eles me escovam, arrumam uns brinquedos pra mim e, se não fosse por dois pequenos inconvenientes, eu seria até capaz de garantir um além-vida tranquilo pra eles…

O primeiro é aquele ponto luminoso vermelho. Nunca consegui pegá-lo, mas tenho a mais absoluta certeza que os humanos estão por trás daquela manifestação diabólica. Digo, luminosa. Eu já quase consegui pegá-lo, tantas vezes, mas ele escapou pelas minhas garras e, bom, fui dormir.

O segundo foi uma época que meu intestino não estava funcionando muito bem e os humanos parecem ter ficado incomodados com meus dejetos que, além de coloridos, eram liquefeitos e muito, mas muito mais fedorentos que de costume. Como vingança, aqueles dois lacaios ignorantes passaram UMA FUCKIN’ SEMANA INTEIRA enfiando comprimidos na minha boca.

Não foi sem luta. Eles ainda têm as cicatrizes. Mas eu não perdôo, eu não esqueço. Eles terão o que merecem.

Mas estou divagando. Sim, os humanos atendiam minhas necessidades. Sim, eu não tinha do que reclamar. Então por que diabos, digo, gatos eu fugi de casa e vim justo pra esse lugar hediondo?

Bom, como eu expliquei, meu plano era trazer o caos às instituições humanas pré-estabelecidas e levá-los a questionar as autoridades vigentes, sejam elas familiares, sociais, políticas, religiosas… O questionamento os levaria à iluminação e, consequentemente, à destruição de milênios de manipulação e mentira. E meu império duraria mil eras. Mas…. Sabe como é. Nasci gato (gata).

Eu durmo 18 horas por dia. Nas outras seis, não vou ficar bolando plano pra dominar o mundo. Tenho tanta coisa pra fazer no pouco tempo que fico acordado… Preciso comer peito de peru e patê de atum, tomar água, fazer minhas necessidades, caçar baratas, espantar o canário, afiar minhas unhas na perna das visitas… É cansativo. É desgastante.

Vamos admitir, não é difícil entender os humanos. São preguiçosos, acomodados, conformados e meio burros. Mas se você tivesse tanta mordomia assim, ia querer mexer com o status quo pra quê!? Não estou dizendo que vou abrir mão da destruição de tudo que é, foi e será. Apenas quero curtir mais um pouco. Porém, há forças conspirando contra mim. Aparentemente, há outros que caíram e se sentiram, bom, traídos por eu estar mais preocupado em descobrir de onde vem aquele pontinho de luz vermelha do que em virar irmão contra irmão. Outros que compartilham de minhas opiniões sombrias e ideais malévolos. E eles têm pressa. Usando de suas artimanhas diabólic… Digo, sinistras, eles descobriram um jeito de me encontrar.

É a minha sombra. Aqueles idiotas ingratos voltaram a minha sombra contra mim!

Descobri a desgraçada tentando fazer um relatório de minhas atividades enquanto eu bebia água da privada. Ela não estava me acompanhando. Ficou parada lá, com um lápis e uma prancheta na mão, anotando coisas como “sua majestade satânica perdeu o senso de nobreza inerente aos de nossa estirpe” ou “ele está lambendo as partes íntimas de novo”.

Eu precisava fugir. Honestamente? Eu não tou nem aí se o mundo vai acabar ou não. Eu me demito. Não quero ter nada a ver com isso. Quero apenas ser alimentado e ter minhas caixas de papelão limpas periodicamente. Não é pedir muito. Espero que as bestas humanas que me servem não fiquem preocupadas, no fundo são um casal bem bacana. Ouvem música alto demais, assistem aqueles reality shows que ensinam você a educar um gato e têm o péssimo hábito de dormir nas poucas horas que estou acordado e precisando me exercitar MAS eles têm uma tendência incrível a perdoar todo prejuízo material que lhes dou (inadvertidamente, claro).

Por isso estou aqui. No shopping center. Aquela sombra idiota vai me perder de vista aqui, vai passar a eternidade me procurando enquanto volto pra casa tranquilamente e fico o resto de meus dias na companhia daquele casal de humanos semi-retardados tendo todo o luxo e mordomia que eu jamais teria como grão-duque do inferno ou monarca da humanidade. A América é um planeta já bem cagado, não creio que precisem de mim. Essa fica sendo minha aposentadoria compulsória.

Destruir o mundo? Ah, qual é?! Os humanos compraram uma samambaia. Vai ser muito mais divertir estraçalhar aquela coisa quando ninguém estiver olhando. Tenho que dar o braço a torcer: a humanidade sabe perdoar gatinhos. Que vida.

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Raul Kuk
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