A internet em 1997 — Terràvista

Amarilis Dias
(+351) Bug Report
Published in
5 min readJun 9, 2023
Terràvista (imagem de Jonasnuts)

Em 2023, basta um telemóvel para aceder e contribuir com conteúdo para a internet. Em 1997, um computador, modem, linha telefónica e muita determinação.

Esta é uma das histórias de quem desbravou caminho e contribuiu para o ínicio da internet em Portugal. Entrevistei Eduardo Pinto, que teve a oportunidade de observar e participar de perto nos primórdios da Internet no nosso país.

Quando era praticamente impossível encontrar e alojar conteúdo na internet em Português, o Ministério da Cultura promoveu uma iniciativa gratuita que tornava possível o alojamento de sites em língua portuguesa.

O caminho nem sempre foi fácil, nem linear, mas o projecto chegou a bom porto. Esta é a história do Terràvista.

O início do Terràvista

No início da internet em Portugal, poucos ou nenhuns conteúdos estavam disponíveis em língua portuguesa na internet. Segundo Eduardo Pinto, “a escassez era tal, que um dos best sellers da altura era um pequeno roteiro em papel que elencava a lista dos sites existentes em Portugal”.

Foi neste contexto que surgiu o Terràvista, um projecto do Ministério da Cultura que promovia o alojamento de sites em língua portuguesa. Sendo um projecto pioneiro no contexto português, rapidamente chegou a quase 100 mil utilizadores entre Portugal e Brasil.

A comparação com o norte-americano Geocities, lançado em 1994, é inevitável. No entanto, num cenário onde a literacia digital da população portuguesa era pouca ou nenhuma, o Terràvista inovou pela criação de “Estaleiros”, espaços físicos de acesso gratuito com 4 ou 5 computadores onde a população poderia se dirigir para construir as suas páginas e aprender HTML.

Foi, aliás, na inauguração de um desses Estaleiros que se desenrolou um episódio caricato e característicamente português no qual “o padre da localidade decidiu benzer os computadores com eles ligados à corrente, o que provocou o pânico generalizado”.

Fila de computadores com monitores CRT
Fotografia de um Estaleiro Terràvista (imagem providenciada por Eduardo Pinto)

A lição número um dos primeiros tempos do Terràvista foi “a consciência de que o nosso trabalho se destina a um utilizador final e que os utilizadores são pessoas com experiências e personalidades muito diferentes”. Era normal passar horas a ler os emails enviados pelos utilizadores com reclamações e sugestões.

Estar em contacto directo com os utilizadores foi “essencial na minha formação e tomada de decisões tecnológicas. Saber que cada linha de código iria ser usada por milhares de indivíduos fez-me usar padrões que previam os piores cenários e os maiores abusos, frequentemente inconscientes pelos utilizadores”.

Desenvolver para a internet em 1997

Comparativamente à experiência atual, onde maior parte das decisões de arquitectura são abstraídas para segundo plano e os servidores vivem na cloud, lançar um serviço em 1997 era radicalmente diferente.

Quando o Terràvista foi lançado, havia um único servidor debaixo de uma secretária no Ministério da Cultura. Se fosse necessário fazer um restart ao servidor, era necessário deslocarmo-nos fisicamente à sua localização, independentemente da hora do dia. Fazer um restart às tantas da noite com um casaco sobre o pijama não era invulgar, diz Eduardo Pinto. Tudo para que os utilizadores não ficassem sem os seus sites ativos.

As limitações de largura de banda, RAM, storage e capacidade de processamento levavam a manobras mirabolantes para contornar estes obstáculos. Com o pouco, tentava-se fazer muito.

Desenvolver um produto em 1997 implicava uma grande criatividade dos engenheiros e arquitectos envolvidos no processo, e sobretudo um cunho pessoal que se torna difícil encontrar nos dias de hoje. A capacidade de resolução de problemas era exponencialmente maior, porque todos estes developers teriam de ser fullstack e ter uma compreensão profunda sobre como a internet funcionava “debaixo do pano”. TCP/IP, DNS, latências e timeouts eram o pão nosso de cada dia.

Socialmente, a internet também era vista como um “produto da carolice”, sempre que esta era mencionada pela imprensa nacional seria na sequência de algum evento caricato ou grotesco. Apesar de alguns já adivinharem o impacto que estaria teria nas épocas que viriam, ainda estávamos muito longe de presenciar o verdadeiro boom em Portugal e no Mundo.

O fim de uma era

O Terràvista acabou por ser encerrado em 2004, depois de uma série de aquisições por parte de empresas estrangeiras. O Geocities, o seu irmão norte-americano, também acabaria por encerrar mais tarde, em 2009. Foi o fim de uma era onde todos os utilizadores poderiam ter o seu espaço na internet de maneira fácil e gratuita, dando lugar a uma internet dominada pelos grandes monopólios.

26 anos depois, “para o bem e para o mal, mudou tudo”.

Onde antes a internet era vista como algo trivial, talvez meio geek, agora temos o inverso. Governos e comunicação social temem o poder da internet, tomando decisões que impactam o dia a dia dos utilizadores. A inteligência artificial tornou-se o tema do ano e discute-se o seu impacto não só no futuro da internet, mas também o da humanidade.

Tecnologicamente, os generalistas são raros. “Cada vez menos encontramos profissionais que tenham uma visão global do edifício tecnológico em que trabalham”. O que antigamente tinha de ser feito “à unha”, agora é abstraído por frameworks. Embora isto tenha o efeito positivo da diminuição do tempo de desenvolvimento de um produto, o desconhecimento das várias camadas tecnológicas de um produto web são um impedimento na resolução de problemas.

As frameworks também contribuíram para a especialização dos profissionais, trazendo uma “padronização no desenvolvimento, com os seus defeitos e virtudes”. Os produtos que desenhamos hoje têm uma escala muito maior do que os que desenvolvemos há 20 anos atrás, o que explica em parte a adopção em massa de frameworks, mas por outro lado esta padronização oferece menos oportunidades criativas aos developers, e menos “rasgos de individualidade”.

Para Eduardo Pinto, a capacidade de resolução de problemas deriva muito deste know-how mais generalista. “Por mais padronização que exista ou programação por copy/paste, os problemas vão acontecer e frequentemente a capacidade de resolução depende do conhecimento periférico à nossa especialidade. Não sendo essencial, é importante que o condutor saiba um pouco de mecânica e sobretudo, o seu inverso.”

Ao longo destes mais de 20 anos, a internet transformou-se numa commodity, num recurso essencial sem o qual não conseguimos funcionar. Passámos do domínio da “carolice”, de meia dúzia de pessoas ligadas à internet sem grandes expectativas de retorno, mas com muita determinação e paixão sobre a área. A paixão deu lugar ao capitalismo e ao crescimento desmensurado para responder à ambição de uma elite. Isto é perigoso, porque o controlo silencioso da internet e do seu conteúdo pode ter consequências devastadoras.

O que podemos retirar da internet de 1997?

“Manter a irreverência dos primeiros tempos. (…) Num mundo tão competitivo, a neutralidade do acesso à rede e a literacia digital (especialmente no que diz respeito à importância das fontes de informação) ainda são os valores mais críticos a defender.”

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