Memórias digitais: explorando a era dos BBS e FidoNet, na perspetiva de Fausto de Carvalho

Resumo

Fazemos uma viagem no tempo, e regressamos aos finais dos anos 70 e anos 80, uma época em que apareceram os computadores pessoais e começaram a popularizar-se os modems, que foram instrumentais para as pessoas conseguirem começar a conectar-se a servidores onde existia informação e abriram a possibilidade de trocar mensagens e participar em chats online, ainda que maioritariamente de forma assíncrona. Neste sentido, é muito difícil para as novas gerações conseguirem imaginar um mundo em que a Internet praticamente não existia, ou era muito pouco comum, e como as comunicações online eram realizadas.

Assim sendo, com este artigo pretendo revelar algumas das experiências, memórias e episódios que Fausto de Carvalho viveu, dentro do panorama das principais comunidades online, antes da popularização das redes sociais, nos primórdios da Internet.

BBS e FidoNet

Para iniciar esta conversa, o nosso convidado começou por fazer uma contextualização da realidade das comunicações e das comunidades na época que antecedeu a explosão da Internet. Estamos a falar de uma altura em que não existiam redes sociais, e que a única forma de as pessoas conseguirem partilhar atividades tecnológicas à volta de eletrónica e computadores era feita através de grupos com encontros presenciais. Pode considerar-se que, nesse contexto, o aparecimento das comunidades online aconteceu de forma natural, com a chegada dos modems e dos computadores pessoais.

Essas ferramentas tecnológicas permitiram que as pessoas conseguissem conectar-se via linha telefónica a servidores que disponibilizavam informação, ficheiros, mensagens interpessoais e também a possibilidade de participar em chats assíncronos, uma vez que cada pessoa ligava à vez, pois era bastante raro existirem BBS com mais que uma linha telefónica.

Este sistema informático tem o nome de Bulletin Board System (BBS). De forma simplificada, é um servidor dedicado, com uma interface semelhante a uma página web, em que a ligação era realizada através do modem, via uma linha de telefone convencional com custos de ligação associados. Nos Estados Unidos as chamadas locais eram gratuitas, e, portanto, isso contribuiu para um maior crescimento do BBS, mas na Europa já não se verificava o mesmo, restringindo mais o número de utilizadores deste serviço. Atualmente, o que se aproxima mais desta realidade na Internet será o Reddit, mas o BBS tinha uma dimensão muito menor, o que permitia que toda a gente se conhecesse. Segundo o entrevistado, ter uma comunidade grande em Portugal, nessa época, seria ter algumas dezenas de pessoas.

Neste contexto surge a FidoNet, explicada como uma rede amadora de BBS, que permitia a troca de mensagens pessoais entre utilizadores e mensagens públicas em grupos temáticos (conferências), aumentando assim o alcance a nível mundial. Começou a ganhar notoriedade em 1985 e alcançou o seu apogeu em 1995, com cerca de 40.000 sistemas. A arquitetura da rede baseava-se numa hierarquia em que os sistemas trocavam pacotes de mensagens: recebiam o que se destinava aos utilizadores locais e aos dos sistemas abaixo, e enviavam o que deles vinha para ser enviado para outros destinos. É importante notar que os BBS e a FidoNet não são antagónicos, complementam-se. A Fidonet dava uma dimensão mundial aos BBS que tipicamente apenas tinham utilizadores locais, portanto com ligações telefónicas mais económicas. Os custos associados às ligações regionais e internacionais eram sucessivamente suportados pelos Sysops (System Operators), administradores dos sistemas voluntários, que assim permitiam o acesso de toda a gente à informação.

Rede 361

Desde jovem, Fausto sempre esteve ligado à música, especialmente na vertente tecnológica e começou a criar música em casa usando MIDI quando comprou o seu computador pessoal. Nessa altura, na década de 80, o acesso à informação era muito limitado, comparativamente com a realidade atual, visto que não existia a web e, portanto, Fausto teria de aceder a bibliotecas e pesquisar livros e revistas que fossem do seu interesse.

Numa dessas revistas, Fausto encontrou uma referência a um clube MIDI sediado em Midwest City, Oklahoma, EUA, ao qual endereçou uma carta explicando a sua situação, que tinha gosto por esta vertente musical, mas não tinha como ter acesso a grande parte deste tipo de cultura. As ligações para os EUA ficavam bastante dispendiosas, e por isso, Fausto teria de arranjar uma alternativa. Conseguiu passar a receber uma atualização mensal do backup do sistema, em formato de disquetes (muitas, de 5”1/4), que lhe permitia manter uma réplica atualizada do conjunto de ficheiros e mensagens do IEMUG — International Electronic Musicians Users Group. Acabou assim por instalar uma segunda linha telefónica em casa e criar um BBS dedicado a música, com o nome de “MIDIThru”, e assumiu uma delegação do IEMUG que ligava o conjunto de entusiastas portugueses ao mundo global.

Entretanto, a par da evolução tecnológica, Fausto continua a envolver-se cada vez mais e naturalmente acabou por aderir à FidoNet, vindo a ser o responsável pela gestão da rede norte (NC — Network Coordinator) em Portugal, a rede 2:361. Ligado profissionalmente às telecomunicações, no Centro de Estudos de Telecomunicações (mais tarde PT Inovação e hoje Altice Labs), acabou por conseguir autorização para ter uma linha com os custos suportados, que permitiu, mais tarde, que Fausto se tornasse responsável pela ligação diária internacional, em que se ligava a Inglaterra para receber o pacote de mensagens que tinha como destino Portugal e para lá enviar as mensagens nacionais destinadas ao resto do mundo. Mais tarde esteve envolvido na evolução para a utilização de transporte dos pacotes de mensagens Fidonet via Internet.

Impactos culturais destas comunidades

Estes tipos de redes juntavam pessoas que partilhavam interesses e nem só o lado tecnológico era importante. Por exemplo, em Portugal, uma das conferências que teve grande expressão foi sobre “Esperanto”, em que as suas mensagens eram escritas nessa língua. É um bom exemplo para perceber o paradigma da informação nessa época. Em tudo se assemelha ao que presenciamos atualmente, mas na altura, com uma dimensão menor. Fausto afirma que “no fundo acabava por ser uma escola”. Através da FidoNet, era possível juntar pessoas de uma área geográfica muito maior, à volta do mesmo tema, trocando dicas, iniciando discussões, colocar questões, no fundo existia muito a partilha de conhecimento. Isto potenciou a globalização da informação, ao dar às pessoas a possibilidade de conectividade com as comunidades certas e permitiam trocar impressões com os melhores. Uma das pessoas que Fausto conhece desse tempo, e com quem ainda hoje mantém contacto, é um dos primeiros a ter figurado no Internet Hall of Fame.

Essas redes foram igualmente vinculadas a movimentos contraculturais e políticos, abarcando as minorias, que encontraram nessas plataformas as condições ideais para formar uma comunidade e estabelecer comunicação. A FidoNet permitiu igualmente a existência de canais alternativos de comunicação para contornar restrições impostas por alguns regimes. Mesmo com o advento da Internet, estes canais mantiveram-se ativos durante mais alguns anos, precisamente com essa finalidade.

Privacidade e segurança

“Não se podem tirar muitas lições” relativamente à privacidade e segurança da época. As comunidades de BBS tinham aspetos imaturos, dependendo principalmente da ética dos Sysops. O encaminhamento dos pacotes de mensagens, compactados, mas sem encriptação, era feito automaticamente, todavia, por vezes, era necessário intervir manualmente aceder a algumas mensagens, para verificar o seu endereçamento e encaminhá-la corretamente. A falta de mecanismos formais de controlo e segurança era evidente. Apesar disso, haviam regras para lidar com abusos e fraudes. Para esse efeito existia a FidoNet Policy, que era um esquema montado para lidar com este tipo de situações. Fausto conta que esteve envolvido num processo em que teve de desagradavelmente decidir pela expulsão de um nó, que violou as regras de conduta.

Evolução das redes online

Fausto considera que a “evolução é natural”. A principal diferença que distingue as duas gerações é essencialmente a escala, mas, em tudo são semelhantes ao que eram os grupos associados a BBS e FidoNet. “Antigamente, uma comunidade mundial com 100 ou 200 utilizadores era considerada grande, por exemplo no domínio da música”. Atualmente, esta conceção já se alterou, e possuir uma comunidade com esses números já é considerada pequena.

Devido às reduzidas dimensões das comunidades nessa época, Fausto confirma que acabava por conhecer as pessoas que participavam nessas redes. Conta um episódio interessante, em que se deslocou até São Francisco, EUA, em 1995, para participar numa conferência. Na lista de participantes reconheceu o nome de uma pessoa: o programador principal do software de BBS que usava. E sem nunca ter visto uma fotografia da pessoa em causa, encontrou-o através do seu badge de identificação, acabando mais tarde por ter um cicerone de luxo para uma visita à cidade. É muito curioso este episódio e é importante para percebermos o tipo de proximidade que existia entre as pessoas na época, mesmo sem nunca se terem visto.

Conclusão

Na minha opinião, este momento de entrevista é uma oportunidade única para eu poder escrever na Internet informações e experiências tão relevantes de uma comunidade que está cada vez mais a ser esquecida pelas gerações mais recentes. Por falta de conhecimento ou simplesmente pelo passar do tempo, muitos nem imaginam que já existiu um tempo sem Google, sem Discord, sem Reddit…

Logicamente que não consegui, através deste artigo, escrever sobre todo o conhecimento e experiência que Fausto me passou com a entrevista concedida. Mas foi extremamente enriquecedora, permitiu-me mergulhar no passado e explorar os primórdios das comunicações online, e testemunhar em primeira mão como essas redes moldaram a vida e o pensamento daqueles que as vivenciaram.