Uma história de ladrões e telenovelas: Paulo Laureano fala-nos da chegada da internet a Portugal

Joana Santos
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Published in
7 min readJun 14, 2023

No âmbito da unidade curricular de Projeto Web do mestrado em Comunicação e Tecnologias Web, foi-nos proposta a realização de uma entrevista, e posteriormente a escrita de um artigo sobre a mesma. Ao longo deste semestre temos vindo a explorar a história da internet e todas as mudanças e implicações que com ela vieram. Assim sendo, tive a oportunidade de conversar com Paulo Laureano, um pioneiro nesta área, e uma das pessoas que contribuiu para que a internet em Portugal fosse o que é hoje.

Estudou direito, mas porque não sabia o que queria fazer no futuro e achou que era fácil. No entanto, desde novo que vive no meio da tecnologia, tendo começado a programar jogos com 14 anos, idade em que o pai lhe ofereceu o primeiro computador. Desde a criação de jogos para BBS no quarto da casa dos pais, até aventuras mais ambiciosas como o tempo que passou na Esotérica, o primeiro internet service provider privado em Portugal, a informática sempre foi a sua verdadeira paixão. Mais tarde foi responsável pelo primeiro website de comércio eletrónico da Fnac, e ironicamente, hoje em dia trabalha para uma empresa rival, a Worten, onde é diretor de IT e moderniza os sistemas da empresa. Ah, e sabem o cartão do cidadão que todos os portugueses têm? Também fez parte da equipa que desenvolveu o software do mesmo.

Durante a nossa conversa abordámos vários assuntos, desde os primórdios da internet em Portugal, passando por vários projetos importantes dos quais Paulo fez parte, até aos momentos mais caricatos. Refletimos sobre a evolução da internet, e terminámos com alguns conselhos para as gerações futuras. Uma conversa enriquecedora, que nos faz querer voltar ao século passado para podermos presenciar momentos que foram tão impactantes e mudaram o país.

Reportagem Sic/Expresso (2008) sobre os primeiros hackers em Portugal — Paulo Laureano de camisola cor de laranja

A chegada da Internet a Portugal — da desconfiança inicial à revolução tecnológica

Foi no início da década de 90 que esta coisa chamada internet, por muitos um conceito ainda desconhecido, chegou a Portugal. Mas não se enganem, em nada tem a ver com a internet como a conhecemos hoje. O primeiro embate com esta tecnologia dividiu a população portuguesa. Se por um lado tínhamos os utilizadores de BBS e as pessoas que estavam inseridas no mundo académico, que se moveram em massa para a internet, num momento muito aguardado pela maior parte, por outro lado tínhamos a população mais velha, que não tinha nem vontade nem curiosidade de perceber de que tal coisa se tratava.

Foi nesta época, mais concretamente no ano de 1994, que um grupo de rapazes, aos quais Paulo mais tarde se juntou, acabadinhos de sair da universidade tiveram a ideia de criar a Esotérica: o primeiro internet service provider privado em Portugal. A ideia que os moveu? Queriam vender aos portugueses acesso à internet, para que esta pudesse finalmente chegar ao público em geral, fora de contextos organizacionais e académicos. Na época em que decidiram levar este projeto para a frente, conta-nos Paulo, “a expectativa para um negócio como este era muito baixa”, ainda havia uma grande parte da população que não via um futuro na internet, e os bancos não estavam interessados em financiar projetos desta índole. Mas todos estes jovens tinham algo em comum que os levou ao sucesso: a paixão pela tecnologia, uma atitude aventureira e muita vontade de mostrar aos portugueses as maravilhas da internet.

A Esotérica estabelece-se em Lisboa, e para um negócio que à partida estava já condenado, as coisas pareciam estar a correr muito bem. De um dia para o outro, os portugueses começaram a interessar-se pela internet e a sentir vontade de participar na mesma. Mas a que se deu esta súbita mudança de ideias? Por mais estranho que pareça, uma telenovela brasileira.

Paulo conta-nos que por volta de 1996, começou a ser transmitida uma telenovela chamada “Explode Coração”, em que uma rapariga e um rapaz se conhecem a partir da internet, e começam uma relação virtual. É muito interessante analisar este fenómeno de fora e pensar como pôde uma telenovela ter um efeito cultural tão significativo para Portugal. “A ideia de que havia possibilidade das pessoas se ligarem a uma rede e conhecerem outras pessoas gerou uma massificação do interesse na internet”, a probabilidade de isso realmente acontecer era pouca, mas não desmotivou os portugueses, que agora queriam a todo o custo fazer parte do fenómeno.

Estamos a falar de uma altura em que ainda tínhamos de nos ligar à internet através dos telefones fixos, e quando se iniciava o Windows, no ecrã aparecia um relógio, para contabilizar o tempo de utilização. Paulo relembra que chegou a receber telefonemas de pessoas que se ligavam à internet e se queixavam que nada acontecia, que estavam à espera de encontrar algo interativo e nada se passava. A verdade é que as pessoas tinham muita vontade de participar nesta tecnologia, mas ainda não estavam informadas o suficiente sobre como o fazer.

Apesar da falta de informação do público geral, aconteceu o que os pioneiros da Internet mais ambicionavam: o início de uma nova era tecnológica.

Foi no decorrer deste projeto que Paulo se viu envolvido num episódio, no mínimo, caricato. Nesta época a Esotérica tinha cerca de uma dúzia de trabalhadores, conta-nos, e não havia financiamento para um sistema de alarmes, então Paulo decidiu desenvolver o seu próprio sistema. Todas as noites haveria alguém responsável, e se se passasse alguma coisa com os servidores, essa pessoa seria notificada através de um pager. Claro que no dia em que Paulo estava responsável, o pager tocou, e como jovem responsável que diz ter sido, ignorou tal aviso e continuou a dormir. Entretanto chega outro aviso, e outro, e outro… até que tem finalmente de assumir a sua responsabilidade e se desloca até ao escritório em Benfica. Para seu espanto, depara-se com a sala que outrora tinha dezenas de servidores, completamente vazia. Como rapaz sensato que era na altura decidiu ligar a um dos seus colegas, Mário Valente (também ele um verdadeiro pioneiro da internet), que lhe diz “Estamos a ser assaltados, e provavelmente os ladrões ainda estão aí”. O resultado da situação: ladrões presos, servidores recuperados e uma noite de “re-decoração” pela frente. Mas se quiserem saber esta história com mais pormenores, aqui fica o relato contado na primeira pessoa.

Após a saída da Esotérica, um novo desafio surgiu: a MrNet, uma empresa cujo objetivo era colocar outras empresas na internet. Desafio é a palavra correta, porque ainda havia muitas dúvidas sobre lançar uma empresa neste novo mundo. Muitos não acreditavam que a internet teria algum futuro, enquanto outros ansiavam estar presentes na mesma.

Um dos seus primeiros projetos na MrNet foi construir o primeiro website de comércio eletrónico da Fnac, e mais tarde conseguiu convencer a TAP a comercializar bilhetes de avião online. Um negócio que antes funcionava muito à base de agências de viagens mudou radicalmente, e Paulo foi um dos responsáveis por essa mudança que se reflete até hoje: a esmagadora maioria de bilhetes de avião é comprada através da internet.

Anos mais tarde, esteve envolvido no processo de desenvolvimento do middleware do cartão do cidadão, que veio também revolucionar o país. Este software é o que nos permite usufruir das funcionalidades eletrónicas do nosso cartão, por exemplo, como assinar documentos digitais através da Chave Móvel Digital.

Hoje em dia trabalha na Worten, a modernizar sistemas para que esta empresa portuguesa possa vir a competir com outras empresas de retalho altamente evoluídas, como por exemplo a Amazon. Diz que este projeto foi “como voltar aos velhos tempos da MrNet”, a modernizar e a lançar empresas na internet.

Do passado para o futuro

Para Paulo, a palavra que define a evolução da internet é “amadurecer”. Assistiu ao amadurecimento de algo que era “incipiente e cheio de potencial”, e hoje em dia vê a internet como uma jovem de 20 e poucos anos, que já nos salvou e fez a sua primeira grande boa ação durante a recente pandemia da Covid-19. Basta refletir sobre este acontecimento para percebermos a dimensão global e o papel crucial que a internet teve durante esta altura de crise: ajudou uma grande parte da população a manter uma certa normalidade nas suas vidas. Permitiu que continuasse a haver aulas, permitiu que nos continuássemos a comunicar uns com os outros e ofereceu serviços essenciais como compras, consultas médicas virtuais e entrega de alimentos e medicamentos. Acredita piamente que se a internet é agora uma jovem brilhante, mais tarde será “uma mulher e peras”.

Para jovens que estão interessados em explorar profissionalmente o mundo da tecnologia tem um conselho principal: não deixar que a tecnologia comande as nossas vidas. Não esquecer que existe um mundo além dos nossos ecrãs, que existem pessoas cuja companhia temos de aproveitar e preservar.

Referências

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