Como você se sente no seu aniversário?

Ellen Neuschwanstein
365 dias com ela
Published in
6 min readJun 19, 2018
Melhor presente de aniversário. Elas prestam atenção em mim. E isso significa muito.

Como você está se sentindo com 28 anos?

A mensagem chegou logo quando acordei. Era meu pai. Ele sempre me perguntava algo do tipo nos meus aniversários. Pelo menos é o que me lembro depois de não morarmos mais juntos. Ele tinha me visitado no dia anterior. Já tínhamos falado sobre a sinusite, o antibiótico, o anti-inflamatório, o corticoide, o soro, o banho e tosa da Chelsea, minha shih tzu, a bronquite do Hércules, meu corgi, o trabalho, o bate volta pra Detroit, o preço do dólar, o frio, a falta de ônibus aos finais de semana, a distância entre as nossas casas. Mas nada sobre como eu estava me sentindo.

Como você está se sentindo com 28 anos?

Fechei o Whatsapp. Não sabia ainda o que dizer. Visualizar e não responder, o dilema moderno. Para alguém como eu, uma notificação mental: tem algo que você precisa fazer e ainda não fez. As notificações mentais não vão sumir, só vão se acumular.

Meu namorado acordou e me perguntou o que eu queria fazer. É meu aniversário, meu dia de escolher. Sorri e não respondi. Para alguém como eu, uma notificação emocional: hoje tem que ser um dia feliz e você não sabe nem por onde começar. A angústia não vai sumir, só vai aumentar.

Escolhi começar esse blog nessa data porque, para mim, aniversários estão muito ligados à minha relação com o tempo. Ou melhor, com a ausência dele. Não por causa daquele velho clichê de envelhecer e ainda não ter sucesso ou riqueza para acumular. Aniversários não me lembram do que eu ainda não tenho, mas do que eu tenho e posso perder. Me lembram do que eu já perdi. A ansiedade tem dessas coisas.

"A Chegada" e a linguagem alienígena.

Quem já assistiu “A Chegada” viu como a ideia de tempo se altera conforme a perspectiva de quem está enxergando. É como se a ansiedade fosse uma nova língua, um idioma que te coloca numa torre de babel, bagunça os ponteiros, pega a areia da ampulheta e espalha na mesa, fora do vidro. Como num círculo, você transita do futuro pro passado e do passado pro futuro sem sair do lugar. Tudo em nome de satisfazer uma busca insaciável por um presente que nunca chega.

Não me lembro do meu primeiro aniversário, mas sei que meus pais fizeram uma festinha. Tenho as fotos num álbum antigo. Depois disso, não foram muitas as festas, mas minha mãe fazia questão de ter um bolinho. Éramos eu, ela, minha vó, meu pai, que tentava estar presente quando não estava viajando, e algumas amigas da vizinhança. Nos aniversários maiores dava até pra chamar os tios, primos e os outros avós. Sempre tinha um que não podia, mas minha mãe, minha vó e o bolinho, esses eu sabia que estariam lá. O tempo passou e as pessoas passaram.

Eu enterrei minha mãe três semanas antes de fazer 13 anos. Logo depois, minha vó. Enterrei com elas meus aniversários. Não lembro se tive bolinhos depois disso, mas lembro de receber pela primeira vez uma nova convidada, uma que nunca mais deixou de vir: a ansiedade. Ela estava sempre acompanhada do trauma, do pânico, do vazio, da solidão, do TOC, da depressão. Todos eles se revezando, mas ela não. De todos os convidados, ela era a única que eu sabia que estaria lá. A ansiedade virou minha melhor amiga. Quando ninguém sabia o que dizer, o que fazer, como lidar, era o momento dela brilhar. Nos espaços deles, ela crescia. No meu vazio, ela me preenchia. Um abismo começou a nascer. De um lado eu e ela, do outro todo mundo.

Como você está se sentindo com 28 anos?

Há um mês e meio, meu namorado e eu ganhamos uma viagem para um resort all inclusive em Porto de Galinhas. Em uma das noites temáticas, um karaokê juntava brasileiros e argentinos, animados pelos drinks, pela bela paisagem e por clássicos da música popular. Enquanto meu namorado cantava uma atrás da outra, eu preferia o coro da plateia. Não tinha nada que eu realmente quisesse cantar. Quer dizer, eu queria muito cantar, mas não o que tinha lá. Lembrei que em breve seria meu aniversário. Eu poderia comemorar no karaokê. Eu adoro karaokê. Estava decidido, esse ano teria festa no karaokê!

Não teve festa no karaokê.

É que alguns amigos não gostam de karaokê. Uns odeiam o barulho, outros odeiam cantar. Uns não podem pagar entrada, outros moram muito longe e não conseguem chegar. Uns já tem compromisso, outros ainda vão marcar. Uma das minhas melhores amigas acabou de ir pro Canadá. Outra, uma das mais animadas, está na Rússia. Outros, eu não sei se tenho intimidade pra convidar. É domingo. Está muito frio. É dia de ficar com a família. Teve jogo do Brasil, época de Copa. Ninguém vai querer, ninguém vai poder, não quero incomodar. Desculpas para não admitir que, no fundo, eu só acho que ninguém vai se importar. A ansiedade me consome. Ela precisa de mim, e quanto mais eu me entrego pra ela, mais distante de todo mundo ela me faz ficar. A ansiedade não me deixa confiar. Eu não confio nos outros, eu não confio nas relações, eu não confio em mim. Eu não consigo me conectar.

Como você está se sentindo com 28 anos?

Essa foi a primeira de muitas mensagens. É estranho e doloroso saber que as pessoas tiraram um tempo do dia pra me escrever, me ligar, pra lembrar. Eu deveria me sentir amada, mas só consigo sentir a culpa de existir, de atrapalhar. “Você não é importante. É ridículo se sentir importante. Você é um peso pra todos eles”. A ansiedade faz questão de me lembrar. Tem mensagens pra responder, um dia inteiro pra planejar.

Olho pro meu namorado que parece animado. Ele quer que eu tenha um dia feliz. É meu aniversário. Eu não posso ter um dia comum, banal, mediano, comer nos mesmos restaurantes, ficar em casa, ver as mesmas coisas na TV, falar dos mesmos assuntos, não fazer nada especial. Eu preciso ter um dia feliz. Mas o que é feliz? O que isso quer dizer?

Uma das minhas séries favoritas, “Bojack Horseman”, acompanha um cavalo fracassado, ex-ator de sitcom, que lança um livro, um filme que sempre sonhou em fazer, e ganha o Oscar, e nem assim consegue se sentir feliz.

Bojack Horseman — Netflix

Como você está se sentindo com 28 anos?

Como o Bojack Horseman. E o dia estava passando.

Atrasei a ração dos cachorros, o antibiótico e as mensagens que eu deveria retornar. Lavei o cabelo e demorei pra secar. Almoçamos na padaria do lado de casa, enquanto eu me convencia de que tudo bem, ainda tinha um jantar que poderia ser bom o suficiente pra compensar. A ansiedade não te deixa viver o presente. Ela toma o controle, mina sua segurança, distorce seus sentimentos, anula quem você é, não te deixa parar um segundo sequer de pensar. Mesmo quando ela não é tão intensa a ponto de te paralisar, ela é como um corte, uma ferida mal cicatrizada, uma dor de cabeça constante que não te deixa esquecer que está lá.

Esqueci de ir no mercado, de carregar o celular, de levar os cachorros pra passear. Troquei de roupa e demorei pra me arrumar. Jantamos em um restaurante mais caro do que eu poderia pagar. A comida era… Era como meu aniversário. Não era ruim. Não era boa. Em alguns momentos, era quase como se eu não estivesse lá.

Como você está se sentindo com 28 anos?

“Me sinto a mesma”. Respondi meu pai.

Lavei o rosto, arrumei a cama dos cachorros, dei boa noite pra cada um deles, cumpri todos meus rituais noturnos, tomei meu antibiótico atrasado, apoiei o copo de água e a xícara de chá de gengibre no criado mudo, me enrolei no cobertor de fleece e terminei de beber pra poder deitar.

Como você está se sentindo com 28 anos?

Meu namorado estava lá, de braços abertos, com um espaço no travesseiro pra eu me encaixar, pronto pra me abraçar até o sono ser mais forte que eu, e meu olho começar a se fechar. Esse foi o momento mais feliz do meu aniversário.

A verdade é que passava da meia noite. Já não era mais meu aniversário. E é como se finalmente eu pudesse voltar a ficar em paz, pelo menos enquanto a paz for capaz de durar.

--

--