Lista de mercado

Ellen Neuschwanstein
365 dias com ela
Published in
6 min readSep 14, 2020

Eu nunca imaginei que fosse chorar com a lista de mercado. A lista de mercado.

Uma das poucas coisas que sobraram nessa quarentena, pelo menos pra quem está respeitando o isolamento social. O mercado.

Sou eu que vou no mercado. E quando digo eu, eu quero dizer que entre nós, na nossa divisão, o mercado é meu. Nós…

A palavra fica ali, pendurada, balançando no ar. Pequena, monossilábica. Como dentro dela cabe tanto?

Deus, TANTO…

Eu nunca imaginei que fosse chorar tanto olhando pra lista de mercado.

Você encontrou um app chamado Notion onde dá pra criar uma lista de mercado conjunta. E você criou. E colocou uma foto de capa. E botou os quadradinhos pra ticar depois de colocar no carrinho. E dividiu por categorias. E escolheu um emoji pra cada uma.

“O que você acha do milho?” – você perguntou sorrindo.

“Que?” – eu disse imersa em algum trabalho que eu provavelmente não queria fazer.

“Pras coisas da zona cerealista”.

Você estava orgulhoso. Um emoji pra cada categoria. Um cubinho de gelo pra geladeira.

Eu reclamei que estava demorando e que precisava da lista porque queria ir logo no mercado. No meu tom agressivo e impaciente, aquele que eu uso quando lembro da ferida que carrego, negligenciada e mal cicatrizada. O tom do qual eu me arrependo ainda no meio da fala. Eu já te disse isso? Que eu sempre me arrependo?

O mais perto que você chega do mercado nessa quarentena é essa lista. A asma te coloca no grupo de risco.

Risco… Eu tenho vontade de vomitar só de pensar em arriscar viver num mundo que não tem você. Quando a pressão pra voltar ao trabalho presencial começou a acontecer, e o medo de te expor virou uma possibilidade, eu não tive nenhuma dúvida, eu jamais arriscaria perder você.

E pra não te perder, que ironia…

Não tinha nada de errado com a sua lista de mercado, muito pelo contrário. Ela era linda, organizada, meticulosamente delineada, muito acima da média, feita pra se destacar, especial, perfeita mesmo com as imperfeições. Como tudo que você faz. Como você.

Das muitas coisas que me lembram a sua forma única, fascinante e inusitada de ver o mundo, quando eu ia imaginar que a que mais me faria sentir esse buraco seria a lista de mercado?

Deitada no escuro, eu não tenho coragem de levantar e acender a luz. No escuro, eu não vejo os porta-retratos, os quadros, os bonequinhos, os móveis bonitos que você escolheu. A louça que poderia ser um objeto de arte se eu não tivesse trincado um pedacinho, que agora fica ali, chamando atenção.

Tipo nós. Trincados.

A louça trincada continua sendo usada, mas tem que tomar cuidado quando lava, quando esfrega, quando corta, quando come, quando pega… o trincado pode virar rachadura, e a gente pode passar o dedo sem querer e acabar se cortando. Até que a gente corta. E arde. E a gente solta um som gutural do fundo da garganta. E fica vermelho. E a linha se forma, a pele se rompe, se separa, se espalha, abrindo caminho pros pontinhos de sangue que agora se formam, se juntam, aumentam, pingam e formam um caminho no chão. Tudo isso por causa de uma louça trincada. Um detalhe, quase nada.

Mas quase nada pode ser muito. E a gente sangra.

O que vai ser dessa comida na geladeira? Tudo isso da lista de mercado? Eu sei que o corte é fundo quando a fome passa. Quando eu passo o dia com uma torrada.

O escuro não desvia minha mente do seu sorriso. Não o sorriso que você não consegue dar agora porque está machucado, mas aquele que vive há anos na minha memória. Aquele que começa com uma mexidinha no canto da boca e vai criando covinhas e vai revelando seus dentes brancos e alinhados. Aquele que quebra a tensão, que parece um cobertor macio e quente num dia de frio. Aquele que você dá quando está num bom dia, quando a gente vê algo bobo, mas muito engraçado. Tipo a menina preocupada com a certidão de nascimento de madrugada. O sorriso que você não consegue conter até ter falta de ar de tanto deixar ele escapar.

Se eu tivesse no meu leito de morte, – e quem me conhece sabe o quanto essa frase me guia -, é esse som que eu queria ouvir. O seu sorriso. É isso que eu queria fazer você sentir, vontade de sorrir.

E ainda assim, hoje nós vamos chorar. Eu, deitada no escuro, olhando pra lista de mercado.

Eu aprendi a amar o seu senso estético, e a admirar o seu olhar certeiro pra beleza. Você sabe embelezar tudo aquilo que toca. Seu cabelo, suas roupas, suas joias, seus móveis, suas fotos, sua voz, sua afinação, seus eletrônicos, seus talheres, suas toalhas, seus sapatos, seu pijama, suas tatuagens, seu trabalho, suas planilhas, suas palavras, suas relações, sua personalidade, sua confiança, sua inteligência, sua coragem, seu controle, sua perspicácia, seu poder de percepção, sua honestidade, sua generosidade, seu crescimento, sua fé, sua evolução…

A cada dia que passa eu vejo mais e mais o quanto de beleza há em você e em tudo que te cerca.

Até na sua lista de mercado.

Mas eu também vejo as suas feridas. E as minhas. E a beleza que eu vejo em você, eu já não vejo em mim. Não vejo há muito tempo. E talvez essa seja a maior ferida, a que fica latejando, ardendo, pele rasgando, sangue pingando, escorrendo, trincando tudo que estiver no caminho, fazendo rachaduras em toda a beleza que você tem, que você é, que nós já fomos.

Me impedindo de ver que o emoji de milho ficou perfeito na zona cerealista.

Me impedindo de conter as lágrimas quando olho pra lista de mercado.

Uma ferida que é como um câncer que se espalha e destrói tudo que toca. Contamina.

Eu já perdi muito pra uma metástase na vida, e eu não posso deixar esse tumor alegórico destruir todas as células saudáveis, únicas, perfeitas, e incomparáveis que a gente ainda tem.

Eu não posso. Eu não vou. E vai doer profundamente, e eu vou chorar até secar olhando pra uma lista de mercado. Mas alguma coisa dessa nossa lista vai sobrar. Talvez muita coisa, talvez as melhores coisas ou as mais importantes ou as que a gente sabe e consegue ser. Como quando a gente vai no mercado e falta um ingrediente. Talvez esse ingrediente seja essencial e a gente tenha que trocar a receita, mas a gente ainda vai achar alguma coisa pra fazer com o que sobrar, e um não vai deixar o outro morrer de fome.

Não é?

Porque a gente, lá no fundo, é isso. Nós…

E eu não preciso explicar porque eu sei que você sabe o que eu quero dizer. Você sempre soube, sempre sabe, sempre vai saber. Como nO Homem Bicentenário, ou em Fleabag, ou como almas gêmeas.

“Unless it’s with you” – você disse no palco com a Christina Aguilera, e hoje, outra vez.

“O grande amor da minha vida” – as palavras que você escolheu, e que dizem exatamente o que eu queria dizer.

Se isso fosse um roteiro, aqui é onde os personagens suspirariam, longa e profundamente. Como quando a Eve e a Villanelle ficam de costas na ponte. Mas isso não é um roteiro, e a gente não pode resolver digitando um final diferente. É a realidade, e com o peso dela, nós também suspiramos, longa e profundamente.

Eu releio esse texto de um jeito que nunca faço. Não releio meus textos pessoais. Não gosto de refações. As imperfeições também fazem parte da história. Mas mesmo assim, eu releio, e com isso, chego em duas conclusões.

A primeira é que eu releio pra me agarrar nas palavras, nas memórias, na sensação falsa de que posso consertar o que não tem conserto, de que se esse texto não terminar, talvez a gente ainda não tenha acabado, talvez eu não tenha que lidar com mais um ponto final.

E a segunda é que eu escrevi um texto com emoji de milho, referências de biologia, e almas gêmeas que agora me lembraram a cena final da novela Alma Gêmea. Isso não vai fazer sentido pra ninguém, mas eu sei que vai fazer pra você.

E, mesmo chorando, você vai rir. Que nem Phoebe Waller Bridge. E Chaves.

Você está sorrindo, não está? Depois de doze anos, nem precisa responder.

Você está sorrindo.

E era isso que eu queria.

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