Por que eu (ainda) preciso que você goste de mim?

Ellen Neuschwanstein
365 dias com ela
Published in
10 min readJun 22, 2018

Qual mês do ano mais combina com você?

Vi esse teste pela internet outro dia. Mesmo amando compulsivamente essa mistura de aleatoriedade e clickbait, não precisei clicar pra saber a resposta. Não sei se é a expectativa infantil de fazer aniversário, o começo do inverno, as quermesses regadas a vinho quente e quentão, ou se é a tradição capitalista e romântica de dia dos namorados, por algum motivo sempre gostei do mês de junho.

Orange is the New Black, minha série favorita da vida e minha maior inspiração como roteirista, normalmente estreia em junho. Tirei foto com o elenco em uma das pré-estreias em junho. Assisti The Color Purple, na Broadway, em junho. Minha viagem para o Maine, a mais inusitada que já fiz, foi feita em junho. O Pride Month, mês do orgulho LGBTQI, acontece em junho. Foi há 8 anos, num fim de semana frio do final de junho que comecei a namorar aquele que se tornaria meu porto seguro. Esse ano, meu aniversário daria início ao meu ano pessoal 7, um dos mais promissores para alguém que escreve… óbvio que em junho! E junho desse ano ainda tinha algo muito especial: o resultado dos escolhidos como semifinalistas do FRAPA, um concurso de roteiro que seleciona pilotos de série e longas.

A ansiedade me faz atropelar o tempo, ignorar a cronologia, acelerar o futuro sem explicar o passado.

Pausa.

Há quase um ano, estávamos eu e meu namorado numa noite de sábado, parados na calçada, logo após o jantar. Era a última apresentação da peça de um dos melhores amigos dele, seguida de uma possível comemoração. Era a terceira vez que ele tentava ir. Ele não podia faltar.

“Você vem?”. Ele me perguntava enquanto pedia o uber.

Compromissos com horário pra começar e sem horário pra acabar. Algo que a minha ansiedade não me deixa encarar.

“Você vem?”. O motorista estava a caminho.

Quem vai estar lá? Com quem vou ter que interagir? E se eu quiser ir embora, mas não quiser incomodar? E se eu não souber o que fazer ou o que falar? E se tiver que comer e eu quiser vomitar? E se eu tiver um enjoo e o Vonau acabar?

“O motorista já vai chegar”.

Decisões são um pesadelo pra quem sofre de ansiedade. Ainda mais quando não há intimidade. E nunca há. Era sábado à noite, eu não queria ficar sozinha, queria companhia, mas não queria aceitar.

“Eu não vou”. Respondi. Ou melhor, ela respondeu.

O motorista chegou. Entramos no carro. Ou melhor, eu entrei. Ela só veio junto, como sempre vem, mesmo sem ninguém convidar. Eu ainda não sabia se deveria descer. Recusar. Recuar.

Confesso que não gostei muito da peça, mas tudo bem, descobri no final da noite que nem mesmo os atores gostavam tanto. Descobri também que ele, o amigo do meu namorado, um estranho pra mim, tinha mais em comum comigo do que eu sequer imaginaria. Descobri que um conhecido poderia se tornar um amigo. E se tornou. Descobri que desconhecidos também poderiam. Eu estava ali, no meio de desconhecidos, artistas desconhecidos. Artistas. E eu me sentia em casa.

A ansiedade é uma porta tão grande e te tranca por tanto tempo do lado de fora, que significa muito se sentir em casa.

Ele me convidou para escrever o roteiro de um teaser de 5 minutos pra uma web série pro canal dele no YouTube. Algo pequeno, modesto, simples. Eu aceitei. Assim, simples assim. Eu disse sim.

Eu nunca digo sim. Não sem antes pensar. Não sem antes pedir permissão pra ela. E ela sempre diz não.

Fim da pausa.

Lista de semifinalistas do FRAPA.

Meu roteiro de piloto de série de 42 páginas que deixou de ser um teaser de 5 minutos, cinco minutos depois de eu conhecer os outros cinco atores e me apaixonar, não estava lá. Eram os semifinalistas. E não estava lá. Era junho, o meu mês, e não estava lá.

Por que eu acreditei que estaria lá?

“Você escreve tão bem”. Eu ouvi muito ao longo da vida. Mas não estava lá. Os atores leram, amaram, riram, choraram. Mas não estava lá. Meu namorado, que sempre achou ficção um tédio, estava envolvido com a história, com os personagens, dando ideias e animado. Mas não estava lá. Uma das atrizes abriu uma produtora de captação, se tornou produtora executiva, recrutou uma equipe sem dinheiro algum, totalmente colaborativa, se emocionou a cada reunião em que eu explicava o roteiro enquanto a história se repetia. Mas não estava lá. Uma amiga de uma amiga leu e quis saber a continuação. Um conhecido de um amigo tinha um personagem favorito. A diretora de arte chorou com uma das cenas. A editora se identificou muito com o protagonista. Minha coach de escrita sempre ria de algumas piadas específicas. Uma das atrizes levou metade da sala às lágrimas no primeiro ensaio, e eu não pude deixar de me arrepiar. Uma amiga não quis saber um spoiler porque queria acompanhar. Mas não estava lá.

Meu ego e minha vaidade não sabem o que fazer, o que falar. Minha insegurança sabe exatamente quem chamar. A ansiedade.

“Você é uma fraude”. Ela repete pra mim.

Abro as redes sociais. Me conecto porque quero me desconectar. Me convenço de que ali vive a verdade. Como num episódio de Black Mirror, o Nosedive, vou contando as estrelinhas de cada um. Estrelinhas em formatos diversos: de sorrisos encomendados a likes arduamente barganhados, de conquistas compartilhadas às derrotas escondidas, de felicidade ostentada à simplicidade perdida, de amigos realizados maquiando seus fracassos às opiniões protegidas pelas bolhas de aplausos. Eu vejo os talentos de cada um. E a minha falha. Eu vejo as conquistas de cada um. E a minha falha. Eu vejo a capacidade de ser feliz de cada um. E a minha falha.

“Eu sou uma fraude”. Eu repito pra mim.

Eu gosto de biografias. E de artistas. Acho que eu gosto de gente. Olhar pros outros pra não olhar pra ela.

Outro dia, pouco depois de comprar ingressos pro show da Demi Lovato, mesmo sem conhecer quase nada do repertório dela, resolvi dar play nesse documentário.

Tem o documentário inteiro no YouTube e vale o clique.

O Simply Complicated é quase uma redenção. O abandono do pai, a adolescência perdida, a solidão travestida de raiva, a carência disfarçada de rebeldia, o bullying, as tentativas de suicídio, o distúrbio alimentar, a dependência das drogas, a relação conflituosa com a fama, a pressão do sucesso, a reabilitação, a exposição, a perda de um grande amor, a inabilidade de ser suficiente para ela mesma, a baixa auto-estima, a insegurança, a necessidade de ser aceita, o medo de não ser amada. É a Demi Lovato. É a porra da Demi Lovato! E ela está mal. Ela tem uma série de álbuns lançados, milhares de discos vendidos, 68 milhões de seguidores no Instagram, e no youtube mais de 13 milhões de inscritos. E ela está mal. A carreira que ela sempre sonhou, turnês com shows lotados, prêmios na estante, singles em todas as rádios. E ela ainda está mal. Nas redes sociais ela parece feliz. Mas ela ainda está mal.

Maybe if I don’t cry, I won’t feel anymore

Abro o YouTube para rever uma apresentação dela que tem me deixado viciada. Ouço a voz dela e ela está mal. Vejo a performance dela e ela está mal. Presto atenção na letra. Ela está mal. Será que é tão sensível, tão honesto, tão bonito, tão grandioso e tão genial, exatamente porque dá pra ver que ela está mal? Não sou só eu. Ela está mal.

Será que tá todo mundo mal?

Você que eu sigo e que me segue, que eu leio e que me lê, que eu imagino e que me imagina, que eu desconheço e que me desconhece, que eu engano e que me engana, que de olhos fechados, assim como os meus, eu acho que vejo, e não sei se me vê. Você também é uma fraude? Você também tá mal? Você também precisa que te digam que você vale algo? Você também precisa dos outros te lembrando quem você é? Você também não é o suficiente pra você?

Eu escrevo porque amo. Publico porque preciso.

Eu comecei isso por mim. No post passado, na noite passada, no ano passado, no século passado, na vida passada que vivi ainda nessa encarnação. Por que, então, estou perguntando algo pra você? É sobre mim, e não sobre você.

Eu escrevo porque preciso. Publico porque amo.

A palavra. O aplauso.

De quem eu preciso? Quem eu amo? Quem é maior, a necessidade ou o amor?

“Você acha meu roteiro bom?” Pergunto pro meu namorado. Uma longa conversa nos leva à minha maior referência como artista, a Christina Aguilera, e a um youtuber estilo vlogger que detesto.

“Por que você gosta dela?”. Ele me pergunta. Minto. Ressalto todas as qualidades técnicas e o talento excepcional que o tal youtuber não tem.

“Por que você gosta dela?”. Ele repete.

Ele me conhece. Ele sabe que estou mentindo, que é a ansiedade fechando as portas, trancando ele pra fora da minha prisão. Ele sabe que a verdade é que ela disse o que eu precisava ouvir, como eu precisava ouvir, quando eu precisava ouvir. Ela sabia todas as minhas senhas. Ela tinha as palavras mágicas. Ela não sabe e talvez, muito provavelmente, nunca saiba disso. Mas muito intimamente a gente se conectou. A ansiedade já existia, mas num piscar de olhos a gente se conectou. A intimidade já era um sonho distante, e mesmo assim a gente se conectou. Eu não digo isso pra ele porque ele sabe. Mesmo assim, ele me mostra que o youtuber que eu tanto desprezo talvez seja a Christina Aguilera de alguém. Ele me mostra que o meu roteiro, algum dia, com um pouco de fé, sorte, sonho, e as devidas proporções, talvez seja a Christina Aguilera de alguém. Já foi. Numa escala muito menor, mas foi. Pra cada um que eu já citei nesse texto, pros meus atores, pra quem está trabalhando apaixonadamente nesse projeto de graça, pra quem chorou ou sorriu, ainda que só um pouquinho, já foi.

Mas por que eu preciso ser alguém para alguém?

Eu esperei 6 anos pelo novo álbum da Christina Aguilera. Dia 15 de junho (sim, junho!), o Liberation chegou e, mais uma vez, era tudo que eu precisava ouvir. O conceito de se libertar que permeia o disco fala diretamente comigo. Enquanto luta pra encontrar a Maria — o nome do meio dela que aqui representa sua versão mais genuína, a menina que cantava porque amava, porque precisava, porque era a única forma de suportar uma infância num lar abusivo, ela tenta suportar a vida solitária que criou nessa busca incessante por aprovação.

So tired of painting all this makeup ’cause it won’t hide my deep cuts
Eyes open, but can’t see, mouth open, but can’t speak
I’m facing the mirror, where is Maria?

Onde está a MINHA Maria?

Por que eu preciso ser alguém além dela?

Por que eu preciso ser alguém além de mim?

Um dos livros que mais me marcou foi um presente que ganhei de aniversário em junho do ano passado. Já disse que amo o mês de junho?

Tem na Amazon. :)

É o Unbearable Lightness, a biografia da Portia de Rossi. Já disse que amo biografias? O livro narra a jornada dela de quase morte lutando contra um distúrbio alimentar severo. Em uma discussão sobre ser rica ou ser pobre, ainda criança, Portia ouve da mãe que ela não é nenhuma das duas coisas, que ela está na média.

Na média. Average, no original.

Não tinha palavra que ela odiasse mais que essa. Ela poderia ser rica ou pobre, ser boa ou ruim, ter sucesso ou fracassar, ser bonita ou feia, ser a melhor ou a pior, ser amada ou odiada, ela só não poderia ser média.

Média. Morna. Comum. Banal. Indiferente. Average. Eu odeio essa palavra.

Extremos são lembrados. Nós nos lembramos de Stalin e de Jesus Cristo. Ninguém se lembra de quem está na média. Quem está na média é esquecido.

Quando minha mãe morreu, depois de acordar no dia seguinte e perceber que o gosto amargo não era dos litros de chá de boldo que controlou minha gastrite ou do calmante que me enfiaram goela abaixo, um medo improvável e, ainda assim, assustador me atingiu: E se eu me esquecer dela? Se eu me esquecer do rosto, do sorriso, da voz, do jeito dela? E se eu esquecer o sabor da pizza que ela pedia? Se ela preferia massa grossa ou massa fina? Eu não sei essa resposta. Eu sabia que esse dia chegaria.

Por que eu preciso tanto ser alguém?

Por que eu não quero ser esquecida.

A história da Portia, tão dissociada da minha, a partir dali me fazia tanto sentido que inspirou até uma das personagens do meu roteiro, aquele que eu inscrevi no concurso, o FRAPA. Aquele que foi rejeitado. Aquele que eu queria que meu namorado dissesse se achava mesmo bom.

“Você precisa admitir que quer ser amada por todo mundo”. Ele repetia pra mim.

É verdade.

Eu preciso que você goste de mim. Eu ainda preciso que você goste de mim. Você que tá lendo e me vê todo dia. Você que mal me conhece, que nunca me viu. Você que vai ver minha série, vai ler os meus textos, vai odiar ou nem vai ligar. Você que eu nem sei quem é, mas que eu quero desesperadamente convencer a me aprovar. Me validar. Me aceitar. Me amar.

Eu admiro a coragem da Demi Lovato de estar onde está. Eu admiro a coragem da Portia de Rossi de se aceitar. Eu admiro a coragem da Christina Aguilera de se libertar. A ansiedade é uma prisão, e eu luto todo dia pra estar onde estou, aceitar o que sou, e principalmente, pra me libertar.

Ainda é junho. Junho é um mês bom. Junho é o meu mês. E eu não vou deixar ela estragar.

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