Qual foi o melhor dia da sua vida?

Ellen Neuschwanstein
365 dias com ela
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49 min readOct 26, 2018

Eu nunca fui muito boa em fazer escolhas. Não sei se é a geminiana dentro de mim ou a facilidade (ou seria necessidade?) de compreender todos os lados, pra mim nunca é fácil achar só um caminho possível, escolher uma coisa só.

Quem cresceu nos anos 90 deve se lembrar dos famosos caderninhos de perguntas que passavam de mão em mão nas salas de aula. Até mesmo os mais inocentes eram um pesadelo pra quem não consegue ter uma cor, país, filme, comida ou insira-aqui-qualquer-outra-coisa favorita pra colocar lá. Eu lembro de evitar o fardo da escolha respondendo o primeiro que me viesse a cabeça, e de me torturar de um jeito pesado, ainda que infantil, por não ter dado a minha melhor resposta, o melhor de mim. Era entregar o caderno respondido à caneta pra lembrar de uma resposta melhor. De um favorito mais favorito que o favorito escolhido.

Qual é a sua música favorita?

Beautiful, Christina Aguilera.

É uma das poucas escolhas que faço há muitos anos sem nem titubear. É a música que vou tatuar um dia. É a primeira música que aprendi a tocar. É uma das poucas em que a Christina, em nome da arte e da mensagem, se permite quase semitonar. É a primeira da parceria dela com a Linda Perry. É a música que a Pink achava que seria dona, que a Linda não queria dividir com ninguém, e que a Christina provou ser a melhor pessoa pra cantar. É o single que rendeu Grammy, performances lendárias em apresentações humanitárias, ajudou a consolidar uma carreira promissora e entrou pra lista das músicas que um monte de filme, série e cantor quer regravar.

Beautiful, Christina Aguilera — Direção: Jonas Akerlund

É a música cujo clipe foi censurado em diversos países por representar e abraçar as minorias que na época a mídia ainda queria esconder. Virou hino. Virou lenda. Virou símbolo de resistência não só dessas minorias, mas de todos que precisavam ouvir que eram bonitos, mesmo quando parecia impossível de acreditar.

E nada disso importa. Ou melhor, importa e muito. Mas nada disso tem a ver com a minha resposta direta, sem nem titubear.

Qual é a sua estação favorita?

Era junho ou julho, inverno de 2003. Acho que, de certa forma, eu era grata por tudo coincidir com essa época do ano. O frio era quase como um aliado, obrigando todo mundo a sair de casa pra fazer somente o necessário, e permitindo que a volta pra casa, pro quarto, pra cama, pra debaixo das cobertas fosse praticamente incentivada. Era ali que eu passava a maior parte do meu tempo. Em casa, no quarto, na cama, embaixo das cobertas. Gostosinho, não?

Inverno me lembra a infância. Me lembra o vapor que embaçava o box do banheiro no final dos dois banhos muito quentes que meu pai tomava quando estava em casa, no intervalo de alguma das incansáveis longas viagens que ele costumava fazer. Me lembra a alegria dele ao se enrolar em algum moletom felpudo trazido de um dos países frios que ele acabou de visitar, e na, até então, popular gola rolê, que com o tempo e com a ditadura da moda acabou por se aposentar. Me lembra as sopas que minha avó fazia. Caçarolas com caldos de feijão, legumes, carne com batata, frango, grão de bico, lentilha, caldo verde, qualquer uma que ajudasse a esquentar. Me lembra que minha mãe contava os dias pra essa época chegar ao fim. Meu pé não esquenta!, ela dizia. Era uma meia grossa cobrindo outra mais fina. Era um calça de punho apertado pro vento não passar. Banho quente e cobertor pra não dar tempo do corpo esfriar. Uma tradição que eu acabei de perceber que até hoje tenho o hábito de preservar. E o frio? Continuava lá. Engraçado pensar que o frio era uma das poucas coisas com a qual ela se incomodava. Ela não se irritava fácil, com quase nada. Até mesmo o inverno, uma hora ou outra, ela acabava deixando pra lá. Pelo menos até o outro ano, quando a temperatura voltasse a cair e as pontas dos dedos voltassem a congelar.

Em 2003 foi diferente. Em 2003 ela não passou frio. Não teve meia fina com meia grossa, calça de punho, banho quente e cobertor, pontas dos dedos que não esquentam e que uma hora ela ia deixar pra lá.

É impressão minha ou no passado o clima era mais regulado? As estações mais definidas? É o aquecimento global que tem feito sol, chuva, vento, frio, calor, umidade e secura estarem todos juntos no mesmo dia e no mesmo lugar? Ciência, definitivamente, não é meu forte, então me permito perguntar. Eu tenho a impressão de que nos anos 90 as estações do ano ainda funcionavam e a gente sabia o que esperar. 2003 ainda era assim. Talvez. Na minha memória era. E é da minha memória que eu preciso falar.

Em 2003 ela não passou frio. Não teve meia fina com meia grossa, calça de punho, banho quente e cobertor, pontas dos dedos que não esquentam e que uma hora ela ia deixar pra lá. Não teve inverno. Não pra ela. E não teria mais.

Era junho ou julho, inverno de 2003. Ela estava morta. Eu tinha 12 anos e uma vida pra continuar. Eu ainda estava viva. Eu ainda estava lá. Em casa, no quarto, na cama, embaixo das cobertas. Gostosinho? Não.

Era ali que eu ficava todo o tempo que podia. Luzes apagadas, TV desligada, silêncio e vazio.

Como uma criança enterra a mãe sem desejar que a cova seja mais larga, pra se enfiar num cantinho, pra ir junto, já que ela não pode ficar? Como fechar os olhos sem parecer que a imagem dela no caixão está tatuada do lado de dentro das pálpebras, e por mais que você queira, não dá pra parar de enxergar? Como sair de casa, do quarto, da cama, das cobertas? Ou pior, pra quem voltar?

Qual é a sua máscara favorita?

As pessoas não sabem lidar com o luto. E eu sou uma pessoa, então eu também não sabia. Não sei ainda.

Black Mirror — Temporada 3, Episódio 1: Nosedive

Hoje em dia se fala muito das redes sociais e da falsa felicidade que se divulga nelas, contraposta ao quanto se esconde a tristeza e, de fato, não tem como discordar. A felicidade é pública, a tristeza é privada. Mas em algum momento, além do movimento expressionista ou do romantismo literário, a tristeza foi celebrada? Em algum momento as pessoas foram ensinadas ou souberam, ainda que de forma autodidata, a lidar com a tristeza? Se tirarmos os clichês, os pêsames, a culpabilização do outro, as máscaras sociais, as frases de efeito do tipo "vai passar, tudo passa", “há males que vem para o bem” ou qualquer outro comentário pouco empático que comece com “pelo menos…” e cuja única função é te fazer sentir culpado pela sua dor, o que nos resta? Nada. Ou quase nada. Resta o silêncio desconfortável. Resta o desespero. Resta a impotência. Era isso que restava. Isso ou a máscara. Eu escolhi a máscara.

Como você está?, era o que me perguntavam com uma ou outra variação. Ninguém quer ouvir mais que um ou dois monossílabos quando pergunta isso. Ninguém queria ouvir a verdade. Eu não achava que quisessem, porque nas poucas vezes em que eu falava, as pessoas não sabiam como reagir. Restava o silêncio desconfortável, o desespero, a impotência. Eu não queria que restasse isso. Não queria porque em todo o resto já não me restava nada.

Tô indo, melhorando. Melhor. Tô bem até…, era o que eu respondia. Eu não, a máscara. E aí sim a conversa fluía. Elogios à minha força, resiliência, coragem, maturidade, capacidade de compreensão. “Uma fortaleza essa menina.”. Eu? Eu não, a máscara. Todo mundo gostava de alguém assim, queria estar perto de alguém assim, queria ser como alguém assim. Inclusive eu. Mas não era eu. Era ela, o tempo todo, a máscara.

E quanto mais eu precisava dela pra existir quando alguém estava por perto, menos era eu quem existia. Quanto mais eu usava a máscara, mais ela grudava na minha pele, se fundia, não saía. Chegava alguém e lá estava ela, mesmo quando eu não queria. Usar a máscara era tão cansativo que aos poucos eu preferia estar sozinha. Não, preferir não é a palavra certa. Eu escolhia estar sozinha, ainda que essa escolha me deixasse cada vez mais próxima de uma nova companhia: a ansiedade. E com ela, o TOC, o trauma, o pânico, a depressão.

Era junho ou julho, inverno de 2003, e era isso que me restava além da solidão.

Qual é a sua oração favorita?

Eu não tive uma criação religiosa e nem mesmo muito espiritualizada, então eu não costumava rezar. Mas naquele inverno eu rezava. Em junho ou julho de 2003 eu rezava. E eu mal acreditava em qualquer coisa, mas eu rezava. Eu odiava Deus ou quem quer que fosse esse ser supremo que as pessoas cultuavam e que decidiu que eu deveria passar por aquilo. E mesmo odiando, eu rezava. Era tudo culpa dele, então ele me devia algo, certo? E por isso, mais e mais, eu rezava. “Deus sabe o que faz, foi melhor assim.”. Os mais religiosos diziam. Eles não estavam sentindo a minha dor, eles não sabiam de nada.

'Til It Happens To You, Lady Gaga — Oscar (88th Academy Awards)

Til you’re walking in my shoes, I don’t wanna hear nothing from you, 'cause you don’t know…, já diria Lady Gaga. Mas era junho ou julho, inverno de 2003, naquela época sequer existia Lady Gaga. Existia uma criança indignada e devastada, que só rezava, rezava e rezava.

Na primeira noite eu fui dormir tão dopada que eu ainda rezava pra que fosse um sonho, um pesadelo, pra que eu apertasse os olhos e soltasse aos poucos pra ver se assim acordava. Eu acordei, ainda estava escuro. Será que Deus ouviu minhas preces? Fui no velório. Não era sonho, não era pesadelo, não havia misericórdia, não restava nada. E aí que eu ainda rezava. A mesma menina desesperada que pedia pra acordar na esperança do pesadelo acabar, agora também queria que o pesadelo acabasse, mas o caminho era outro, o pedido era outro, o pesadelo era outro: era ter que acordar. E eu rezava e pedia pra que não tivesse outro dia, dormia o mais cedo que podia e rezava compulsivamente, pedindo pra no outro dia não acordar.

Como morrer sem dor?

O Google ainda estava engatinhando, pelo menos na minha vida, na periferia, afastada, com internet discada e provedores que quem viveu essa época certamente deve lembrar. E era isso que eu pesquisava. Alternando entre o peso insuportável do luto e da solidão, e a culpa por não ter coragem de continuar.

Eu vi minha mãe lutando um ano contra uma doença terminal com a força de quem nunca vai se entregar. Ela perdeu o apetite, então descobriu novas comidas e começou a cozinhar. Ela perdeu o cabelo, então descobriu os lenços e nunca deixava de sair e de se arrumar. Ela perdeu algumas manhãs pra quimioterapia, então fez amigos que frequentavam o mesmo hospital, no mesmo dia. Ela perdeu mais de 15 quilos, perdeu órgãos, perdeu a autonomia, perdeu a liberdade, perdeu a capacidade de sobreviver sem morfina pra injetar. Então ela continuou tentando. E sorrindo. E planejando como seria depois de se recuperar.

Ela foi enterrada com 30 quilos depois de um ano de muita, muita, muita luta, e eu não lembro de uma única vez em que tenha visto ela querer desistir. Então, como não sentir culpa e vergonha quando eu não pensava em nada além de me matar? Ela queria viver, mas não podia. Eu podia viver, mas não queria.

Lá estava a tela do Google e a cama. E eu, alternando entre uma e outra. Dia após dia. Esperando acabar.

Qual é o seu álbum favorito?

Era junho ou julho, inverno de 2003. Além da internet, na periferia a TV aberta também era ruim de sintonizar. Esponjas de aço na ponta da antena, posições específicas, movimentos que ninguém podia fazer, aparelhos que funcionavam na base do tapinha e que, uma vez que desse certo, ninguém poderia mais encostar. Quem viveu na periferia naquela época deve se lembrar.

Uma das poucas distrações que eu tinha, quando não estava sozinha, era ligar na MTV, ver os clipes do dia e cantar. Era mais um dia, só mais um dia, em que fazia frio do lado de fora, as luzes estavam apagadas, a porta fechada, o Google estava aberto, a cama com o desenho do meu corpo me abrigando, e eu alternando entre lá e cá. O dia todo sozinha no mesmo lugar, exausta de tanto tentar dormir e não ter mais nenhum sono pra recuperar. Liguei a TV, na MTV, sem muita expectativa do sinal funcionar.

Don’t look at me.

O sinal funcionou. Era a MTV. Um clipe que eu nunca tinha visto acabava de começar. Normalmente eu não me importaria, porque nada me importava. Mas não dessa vez.

Don’t look at me.

Ainda não era a música, não tinha instrumento, não tinha nada. Só uma voz que dizia exatamente aquilo que eu não parava de pensar.

Don’t look at me.

A música começou. E ela estava lá. Sozinha, num quarto vazio, portas fechadas, num canto, isolada. Assim como cada um dos outros personagens que o clipe decidiu acompanhar.

Every day is so wonderful
Then suddenly, it’s hard to breathe
Now and then I get insecure
From all the pain, I’m so ashamed

Naquele instante pareceu que ela me conhecia. Era como se ela estivesse lendo dentro da minha cabeça. E como se dentro dela, ela sentisse o mesmo. Mais alguém sentia o que eu sentia. Quer dizer, ela sentia, não? Ela não me disse, mas sentia. Estava ali, não estava? Em cada uma das palavras cheias de culpa, dor e vergonha que ela dizia.

To all your friends you’re delirious
So consumed in all your doom
Trying hard to fill the emptiness
The piece's gone, left the puzzle undone
Is that the way it is?

Ela também tinha um vazio, uma peça perdida. Ela também tinha pessoas em volta que não entendiam. Ela também estava sendo consumida pela própria desgraça. Ela era como eu. E eu não conhecia ninguém como eu. Só que diferente de mim, ela falava. Ela cantava. Então com ela era diferente, com ela eu podia falar.

We are beautiful, no matter what they say
Words won’t bring us down
We are beautiful in every single way
Words can’t bring us down
So don’t you bring me down today

Ela disse nós. Mais de uma vez, eu ouvi, eu tinha certeza, ela disse nós. Era a primeira vez em muito tempo em que eu me sentia parte de algo, com mais alguém, e sem a máscara. Ela dizia em voz alta aquilo que eu gostaria que a ansiedade ouvisse, que a depressão ouvisse, mas que sozinha eu não era capaz de dizer. Ela cantava e parecia tão forte, ainda que fragilizada, que a menina órfã dentro de mim se sentia acolhida só de poder ouvir, fazer parte daquilo, pertencer. Ela não me conhecia, mas ela foi a única capaz de dizer as palavras que quem me conhecia não soube dizer. Ela foi a única que não me pareceu desconfortável, desesperada ou impotente. A única com quem a máscara não precisava grudar na minha pele, a única com quem eu me permitia sofrer.

Eu não sabia muito sobre a Christina Aguilera até então, mas conhecia o nome, algo que qualquer um que não tenha vivido debaixo de uma rocha naquela época também iria conhecer. E agora conhecia Beautiful. E agora tinha uma música favorita.

Era junho ou julho, inverno de 2003. Eu estava na cama, mas dessa vez sentada. Eu sequer me lembro quando me sentei. Essa é a minha primeira lembrança de não querer morrer. Eu me lembro da sensação e era a primeira vez em muito tempo que eu realmente precisava estar viva, eu valorizava estar viva, eu queria estar viva, nem que fosse pelos próximos quatro minutos, pra ouvir até o final da música o que mais ela tinha pra dizer.

A partir desse momento, eu nunca mais usei o Google pra pesquisar formas de morrer. A partir desse momento, eu pesquisei Beautiful, a letra, o clipe, o ao vivo. Eu pesquisei todas as músicas dela e ouvi uma por uma, os singles, os lados B, o álbum inteiro.

Stripped fez aniversário essa semana. Happy Sixteen, Stripped!

O Stripped. Meu álbum favorito. Minha Bíblia. Minha melhor companhia. Minha salvação.

Qual é a sua cantora favorita?

Com a Christina Aguilera eu aprendi a maior parte das coisas que me formou e que me fez quem eu sou. Eu aprendi sobre diversidade, gênero, bullying e amor próprio em Beautiful.

Dirrty, Christina Aguilera — Direção: David LaChapelle

Eu aprendi sobre sexualidade feminina e sobre ter coragem de quebrar as expectativas pra ser honesta em Dirrty.

Can't Hold Us Down, Christina Aguilera — Direção: David LaChapelle

Eu aprendi sobre feminismo e sororidade before it was cool, enquanto a maioria das cantoras só falava de encontrar namorado, em Can’t Hold Us Down.

Fighter, Christina Aguilera — Direção: Floria Sigismondi

Eu aprendi sobre força, luta e sobrevivência em Fighter.

The Voice Within, Christina Aguilera — Direção: David LaChapelle

Eu aprendi sobre a minha voz interna em The Voice Within.

Sobre individualidade e auto aceitação em Soar. Sobre traumas em I’m OK. Sobre coragem em Oh Mother. Sobre amor em Save Me From Myself. Sobre aparências e solidão em Welcome. Sobre relacionamentos abusivos em Walk Away. Sobre liberdade em Get Mine Get Yours. Sobre luto em Hurt. Sobre resiliência em Keep on Singin’ My Song.

Eu aprendi que o que eu visto não define quem eu sou depois de alguns tapetes vermelhos que ela fazia questão de subverter.

Like a Virgin: Madonna, Christina Aguilera e Britney Spears — Video Music Awards, 2003

Eu aprendi que tudo bem beijar outra mulher depois dela beijar a Madonna no VMA, e fazer questão de reforçar a normalidade do que tinha acabado de acontecer.

Eu aprendi a não ficar calada diante do machismo quando vi como ela lidava com Fred Durst, Adam Levine, Eminem, com a mídia e com a sociedade toda.

Ela foi meu maior modelo, a referência de figura feminina que normalmente uma menina adolescente costuma ver na irmã mais velha ou na mãe. Aquilo que eu perdi e que eu tanto precisava ter.

Eu não sei se é justo ou grandioso o suficiente dizer que ela é minha cantora favorita. É, é claro que ela é, e a música tem esse poder sobrenatural e incomparável, digno de dar inveja a todas as outras artes, mas pra mim ela foi muito mais que uma vocalista, uma performer, uma artista, um ídolo, um ícone, uma lenda da música. Ainda que involuntariamente, por pura coincidência, sorte, ou total aleatoriedade, ela foi a minha espécie de heroína sem super poderes. Ela salvou minha vida, mesmo que sem querer e sem saber. Ela me ajudou a escolher estar viva. Ela me fez renascer.

Qual é a sua cidade favorita?

Definitivamente não é Detroit. Mas preciso andar novamente no tempo pra que se possa entender.

Foram 15 anos, desde o inverno de 2003, ouvindo os mesmos álbuns repetidamente. A mesma cantora. E 15 anos sonhando com o dia em que uma das suas turnês viesse pra São Paulo. Ou pelo menos pro Brasil. Nunca aconteceu.

Eu nunca entendi muito bem as pessoas que esperam em porta de hotel por horas pra tirar selfies. Quer dizer, o que isso realmente quer dizer? Uma selfie? Que você e outra pessoa estiveram por alguns minutos, ou melhor, segundos no mesmo lugar? Que esses poucos segundos com alguém aparentemente tão significativo a ponto de valer uma fotografia foram gastos com os olhos de vocês nos botões do celular? Isso não é um julgamento, é uma curiosidade mesmo. Eu já tirei selfies e eu acho que queria registrar a memória, mas não sei se faria isso com alguém tão, tão importante. Eu não queria uma foto com a Christina saindo de um hotel. Eu queria um show ao vivo, eu queria ouvir e cantar junto cada uma das músicas que me criaram, que me formaram. Eu queria que a gente cantasse e revivesse Beautiful, eu queria voltar para aquele momento em que surgiu essa conexão.

Não teve show. Não no Brasil. E depois de ter filhos ela nunca mais entrou em turnê, então esse sonho foi ficando cada vez mais no lugar dos sonhos: inalcançável, impossível, quase coisa de outra vida, como trazer alguém de volta do mundo dos mortos. Outro sonho que nunca aconteceria.

Até junho ou julho, inverno de 2018. Novo disco. Novo clipe. Nova turnê.

Antes mesmo da expectativa de que acontecesse algum show no Brasil, eu já tinha tomado uma decisão que, com 12 ou 13 anos, quando tudo começou, eu jamais poderia tomar.

Vou no show. Onde quer que seja.

Você precisa encerrar esse ciclo. Encontrar essa conexão com o passado, reviver, ressignificar. Esse show pode ser isso. Você precisa ir nesse show. Era a voz da minha terapeuta me dando consolo pra uma decisão aparentemente irresponsável e inconsequente.

É muito doido pensar em como minha relação com a Christina, com o Stripped, com Beautiful caminha junto com a minha relação com a ansiedade. Fazem aniversário juntas, essas relações, por assim dizer. Apesar disso, eu não procurei terapia com o mesmo afinco que procurei cada um dos álbuns e músicas dela. Acho que eles foram minha terapia até onde puderam ser. Eu não sabia que poderia ter mais. Terapia era coisa de louco ou de rico. Uma coisa eu não queria, e a outra eu não podia ser.

Tantos anos sem terapia e cultivando com o maior empenho os transtornos que me acompanham tornaram o trabalho da terapeuta muito mais complexo. E o meu também. Mesmo entendendo racionalmente tudo que a ansiedade significa, tudo que precisa mudar, e como mudar, a razão não tem voz quando a ansiedade chega. Ela nasceu numa outra terra fértil dentro de mim, numa outra nação, nesse outro lugar. Ela não responde à razão, a razão não é tão forte e poderosa quanto ela. Mas quem é, então? Que lugar é esse onde ela reina sem nenhum adversário? Uma pergunta que, inconscientemente, me faço há anos, e conscientemente desde que entrei na terapia. Nenhuma resposta. Meus muros mais altos que aquele construído pelos alemães na Guerra Fria parecem impossíveis de escalar. De ver do outro lado. De atravessar até o lado de dentro. Ultrapassar. Destruir. Mais um sonho pra lista dos sonhos impossíveis.

Eu não pensei nesse show como uma ferramenta pra ansiedade. Era só um sonho. Só… Por que eu faço isso comigo? Por que trato as coisas que mais me importam na vida com tanto desprezo? Por que seria irresponsável e inconsequente ir até esse show? Realizar um sonho requer irresponsabilidade e inconsequência? Por que eu saio de casa quase todos os dias pra ir aos mais diversos lugares, muitos deles por obrigação, e não acho inconsequente ou irresponsável comigo mesma desprender meu tempo e energia com algo que não quero, mas acho isso de algo que me faria bem, de uma paixão? Quando internalizamos essa necessidade de viver nossas vidas dessa forma, com esses medidores? Quando os bens que compramos receberam autorização de custar caro, mas o nosso bem estar não?

Ingressos à venda. Turnê americana. Eu não tenho dinheiro para ir aos Estados Unidos. Eu não tenho como pagar passagens, hospedagem, comida, transporte, dólar alto.

Ingresso comprado.

Assim, sem pensar, no impulso. Das poucas vezes em que agi na emoção. “Eu vou dar um jeito de pagar.”, era o que eu sentia e acreditava. Das poucas vezes em que tive fé, assim, sem mais nem menos, sem explicação.

Detroit, here I go! Detroit era minha segunda opção de lugar, logo depois da única data fora dos Estados Unidos, na cidade de Orillia, Ontario, no Canadá, onde o dólar canadense, mais barato que o americano, iria ser mais fácil de comprar. Esgotados os ingressos de Orillia em menos de 5 minutos depois da Ticketmaster liberar, Detroit voltou a ser a cidade com os ingressos e o custo de vida mais baratos que eu consegui encontrar. Fui descobrir o motivo quando cheguei lá. Cheguei não, chegamos. Por que o plural? Hora de voltar de novo no tempo pra explicar…

Qual é o seu assento favorito?

Eu sempre sento na janela quando viajamos de avião, eu e meu namorado. Ele é um cara do corredor, mas acaba cedendo e sentando do meu lado, no assento do meio, porque sabe que preciso do máximo de conforto no vôo. Não, não estou falando de conforto espacial, mas emocional. A janela me isola. Me acalma. Me protege da sensação claustrofóbica de estar no meio ou da exposição do corredor. E saber que ele está no meio, do meu lado, cria um muro entre mim e o mundo. Coisas da ansiedade, do TOC, das manias.

Viajar sozinha com ansiedade é muito difícil. Qualquer coisa sozinha com a ansiedade é muito pesada, muito exaustiva, assustadora. Eu não pensei nisso quando comprei esse ingresso porque eu não pensei em nada. Eu senti. Eu comprei com a emoção, eu voltei a ter 12 anos e, de novo, éramos só nós, eu e ela, e aquela conexão.

Eu poderia escrever um livro com tudo que passou pela minha cabeça quando me dei conta do que tinha feito. Eu precisava ir pra outro país completamente sozinha, numa espécie de bate volta por causa do trabalho, enfrentar mais de 15 horas de avião porque vôos diretos eram impensáveis pro meu bolso que não sabia ainda como iria pagar sequer os ingressos, muito menos como iria bancar todos os outros custos dessa situação.

Vou vender o ingresso.

Não, não posso fazer isso comigo. Eu consigo fazer isso sozinha.

Não, eu não consigo.

É o meu sonho, preciso disso, esperei por 15 anos.

É uma loucura, há 15 anos a ansiedade não te controlava, hoje ela controla.

Perdi a conta de quantas vezes ouvi essa discussão dentro da minha cabeça. Abri o site da Ticketmaster e decidi vender. Tinha um ingresso mais no centro, mais na frente e parecia disponível. Era o lugar perfeito. Eu precisava mudar meu assento. Vender? Nunca, já desisti. Tentei no site, tentei no chat, tive que ligar. Duas horas de telefone alternando entre falar inglês e ouvir a Pink cantando What About Us na linha de espera, um erro de sistema e uma troca de assento feita errada pelo atendente depois, acabei tendo que voltar pro meu assento inicial.

Main Floor 4, Row M, Seat 411. Não era ruim. Poderia ser melhor.

The best is yet to come. Essa frase não significava nada, mas ainda iria significar.

Vou viajar com você. Meu namorado disse. Ou algo do tipo. Ele sabia o quanto isso tudo significava e viu o quanto eu estava disposta a encarar. Acho que, de alguma forma, ele se sensibilizou e decidiu ir. Um peso enorme saiu das minhas costas. Eu não estava mais nessa sozinha. Eu não tinha mais as vozes em guerra na minha cabeça. Eu não tinha mais porque desistir.

Muitas contas e cortes de gastos depois, compramos as passagens pelo Canadá, o trajeto mais barato. De lá, de carro, chegaríamos em Detroit. Marcamos os assentos. Nós dois juntos rumo à realização de um dos meus maiores sonhos, aquele que estava na lista dos inalcançáveis e impossíveis. Eu na janela, ele no meio. Eu e ele. Meus assentos favoritos.

Qual é o seu show favorito?

Você vai no show comigo?, perguntei pra ele diversas vezes conforme a data se aproximava. Ele ainda não tinha essa resposta. Foi tudo muito rápido nos últimos dias e estávamos um pouco ocupados com o casamento. Sim, o casamento.

Não vou dizer que eu tenho completa indiferença à ideia de casamento, mas acho que minha relação com o tema sempre foi oposta a da maioria das pessoas que sonha com esse dia. Eu nunca tive o sonho de casar, nunca me preocupei com o pedido, nunca procurei o modelo do vestido, não estipulei a idade limite pra ter um marido, não faço ideia da maquiagem, das joias, do cabelo, nunca tive a menor vontade de tomar cada uma das exaustivas decisões inúteis sobre guardanapos e flores, nunca me importei com nada exceto com o que vai ter pra comer e, claro, que músicas vão tocar. Por outro lado, diferente da maioria das pessoas, eu gosto de conviver, eu gosto da companhia, eu gosto de pensar junto, decidir junto, morar junto, cozinhar junto, sair junto, voltar junto, viver junto. E isso a gente já fazia. Quando decidimos pelo casamento no cartório não teve convite, não teve festa, não teve um anúncio, um pedido, um evento ou qualquer outra coisa tradicional e romântica, foi mais uma formalidade que traria uma série de benefícios. E tudo bem. Pronto, estava feito. Papéis assinados, fomos viajar.

Você vai no show comigo?, perguntei em Toronto, um dia antes das 5 horas de estrada que nos aguardavam entre os dois países, Estados Unidos e Canadá. Ele ainda não sabia. Normalmente eu me incomodaria de ir sozinha, quer dizer, eu não, a ansiedade, porque ela não faz nada sozinha, mas nesse caso eu não sentia o que normalmente sentiria. Eu perguntei e perguntava porque achava que seria um show que ele gostaria, mas que se eu tivesse que ir sozinha, eu iria, sem nem pensar.

O que foi? O que você tá procurando?, perguntei quando descemos do ônibus no último ponto, relativamente longe de onde a gente tinha decidido se hospedar.

Ele acabava de perceber que tinha perdido a carteira. Não era possível, nunca aconteceu antes. Reviramos os bolsos e a memória, mas nada da gente encontrar. Voltamos pro ônibus, pro começo do dia, pra todos os lugares onde estivemos, procurando sem parar.

Calma, a gente vai refazer os caminhos e vai estar em algum lugar. Era o que eu dizia pra ele.

“Essa é a carteira que tinha tudo. Os poucos dólares que conseguimos comprar, sem eles como vamos comer? Os documentos, sem eles como vamos cruzar a fronteira? A CNH, sem ela não tem carro, temos que ir pros EUA, como vamos chegar? O show! Sem ela não tem mais show. Sem ela não dá.”, era o que minha mente dizia pra mim.

Essa inversão entre nós era novidade. Ele sendo o mais preocupado, eu tentando acalmar. Minhas mãos não suavam frio, minhas pernas não tremiam, meu coração não estava acelerado, minha mente não produzia catástrofes repetidamente, meu estômago não doía, meu corpo não formigava, minha visão não estava embaçada, eu não tive sensação de desmaio e eu não senti a típica vontade de vomitar. O que estava acontecendo comigo? Onde estava a ansiedade? Onde estavam os sinais de que ela iria se instalar? Não sei, não sabia a resposta. Mas ela definitivamente não estava comigo. E precisávamos achar a carteira, ou fazer um boletim de ocorrência e refazer os planos, então eu não tinha muito tempo pra pensar. Eu só sabia que em dois dias o show aconteceria. E, depois de 15 anos de espera, de algum jeito eu estaria lá.

Ela estava lá! A carteira estava lá, intacta, com todos os documentos e todos os dólares nas mãos da segurança do metrô de Toronto. Alívio e felicidade não cabiam em mim, nem nele. Fomos andar pela cidade, fazer tudo que era possível em algumas poucas horas e que não precisasse pagar. Ele comemorou comprando canetas coloridas. Ele adora papelaria. Eu estava fazendo companhia, quando avistei um caderno pink e prata de paetê, que de tanto que brilhava, eu não conseguia parar de olhar.

Você já tentou escrever uma carta e mandar pra Christina?, me veio à tona a lembrança da pergunta ouvida na terapia.

Eu nunca tentei. Me parecia bobo e infantil. Algo pra adolescente de 12 anos, não pra uma adulta de quase 30. Eu costumo estabelecer minhas próprias ideias, meus métodos, e é com eles que eu tenho tentado me curar. Por 15 anos é a voz julgadora de dentro da minha cabeça que eu ouço, e é ela também que veta as ideias dos outros. Por 15 anos é ela que eu sigo, e tudo que eu consegui com ela no comando foi fracassar, buscar pela cura e nunca encontrar.

Comprei o caderno. 5 dólares. Decidi escrever a carta lá, afinal, eu tinha mesmo muito o que dizer, uma vida pra agradecer, uma história inteira pra contar. Quem sabe assim eu volte pro passado, com a minha ferramenta mais natural — a escrita, feche o ciclo e possa recomeçar? Eu não sabia ainda como faria o caderno passar pela segurança que não permite bolsas grandes, muito menos como chegar até a Christina, mas estar mais perto do palco, no meu novo assento, o Main Floor 4, Row E, Seat 403, iria facilitar. Parece que mais de duas horas de telefone novamente, intercalando entre conversas em inglês e a Pink cantando What About Us — sim, não mudaram a música da linha de espera, tinha valido a pena e me ajudaria a entregar minha carta. A sorte voltou a nos acompanhar. Será?

O que foi? Que tanto você não sai desse celular?, ele perguntou antes de pegarmos o carro e a estrada pra sair do Canadá.

Estendi o celular sem saber o que falar.

Mentira? Você tá zuando?! Mentira! Não acredito. É sério?, ele repetia.

Ela estava doente, sem voz, o show de Orillia, aquele que não consegui comprar ingresso e que deveria estar acontecendo naquele momento, naquele dia, tinha sido cancelado. A fonte? A própria Christina tinha acabado de postar.

Foram mais de 5 horas de Toronto até Detroit. Tomei sol de um lado do corpo. Senti o vento gelado do outro. Passei calor com o aquecedor do carro ligado. Passei frio nas paradas na beira da estrada. Vi arranha céus e a natureza, vi curvas acentuadas e estradas planas e cinzentas que pareciam não acabar. Vi placas de Sortie virarem Exit, quilômetros virarem milhas, a noite escondendo o dia, vi o sol aos poucos se retirar. Ouvi o novo álbum inteiro. Ouvi o Stripped até cansar de tanto cantar. Ouvi o silêncio da estrada. Ouvi o barulho do vento. Ouvi o silêncio dos vidros fechados, ouvi o barulho do lado de dentro de mim. Ouvi o oficial da fronteira e senti na pele a chuva molhando enquanto ele decidia se nossa história era real o suficiente pra deixar a gente entrar. Sorri, vez ou outra, pra me distrair do pensamento que estava comigo todo o tempo e que se negava a me largar.

Amanhã é o show, será que ela vai cancelar?

Meu namorado repetia pra eu parar de pensar negativo ou pelo menos parar de pensar. Eu fazia piadas e fingia que não estava tão preocupada, dizendo que se ela cancelasse, iria até o próximo show em Chicago, ou em Denver, ou em Oakland, em algum momento a voz dela ia ter que voltar.

Quem já foi pra Detroit, saberia me dizer o que exatamente foi fazer lá? Eu já tinha lido sobre a criminalidade, mas confesso que esse é o tipo de coisa que não costuma me preocupar. A cidade era deserta, as poucas pessoas que transitavam pelas ruas pareciam perdidas em seu próprio mundo, difícil de explicar. Casas e mais casas abandonadas, ruas arborizadas e largas, escuras e molhadas, como num filme de terror, como se alguém estivesse à espreita, pronto pra vir nos assustar.

Se a hospedagem que encontramos não tivesse saído praticamente de graça, o banho morno no banheiro gelado e o aquecedor quebrado numa madrugada com a sensação térmica de 2 a 3 graus seria um pouco pior de suportar.

Menos de 24 horas pro show. O frio incomodava bem menos que o medo constante de ter feito tudo isso e o show ser cancelado. Meu namorado dormia. O caderno de paetê reluzia. A chuva do lado de fora deixava a madrugada ainda mais fria. As canetas coloridas dele sobre o criado mudo me convidavam a escrever. As canetas, o caderno, a chuva, o frio, a angústia, o silêncio, o medo e a melancolia.

Escrevi.

Era uma carta pra ela. Era um mergulho em mim. Era sobre estar ali, em Detroit, sem saber o que aconteceria, sem saber se eu fui à toa até lá. Era sobre estar em 2003, na cama em frente à tela do Google, sem saber o que aconteceria se Beautiful não começasse a tocar. Era sobre a figura feminina que a vida me tirou. Era pra figura feminina que a vida resolveu me dar. Era sobre reconhecer meus monstros. Era sobre não ter medo da minha sombra. Era sobre me aceitar. Era sobre reconhecer minhas fraquezas, minha vulnerabilidade, e o quanto eu precisei, quando não tinha ninguém, de alguém como ela pra me resgatar. Era uma carta pra ela, mas acima de tudo era uma carta pra mim.

Dia do show. Meu dedo já estava cansado de tanto atualizar o feed do Instagram. Nenhum post, nenhuma notícia, nenhum spoiler do que ia acontecer. Segui os bailarinos, os músicos, o crew, os perfis de fãs, o teatro, a Ticketmaster e os perfis oficiais. Um post novo, não dava pra acreditar.

Ela vai fazer! Uma das dançarinas acabou de postar! A sorte voltou a nos acompanhar.

Meu namorado ficou tão feliz, mais do que eu imaginei que ele ficaria. Ele sabia o que significava pra mim. Fomos pra casa pra eu me vestir, me maquiar. O aquecedor milagrosamente voltou a funcionar. A água morna aos poucos ficou mais quente. O sol do lado de fora secou a rua, me deixou ver as flores, as folhas, os esquilos pequenininhos, tinha até gente simpática passando pra lá e pra cá.

Você vai no show? Ele ainda não sabia.

Vou até a porta, se tiver ingresso e for bem barato, então vou comprar.

Sentei na cama, encarando a janela enquanto o sol fraco do fim de tarde riscava o chão, deixava o piso de taco dourado, preenchia o quarto, tocava minha pele, iluminava meu rosto, aquecia o colchão.

Quinze anos depois. Vai acontecer. O sonho vai se realizar.

Abri o Instagram, tinha um novo post. Era o perfil oficial dela.

Ela ainda estava doente. Ainda estava sem voz. Por ordens médicas, tinha que cancelar.

Quinze anos depois. Não vai acontecer. O sonho não vai se realizar.

Qual é o seu amigo favorito?

Sabe qual é a parte mais difícil da frustração? A expectativa. Durante quase 15 anos eu soube que aquilo não era pra mim, que estava muito distante. Eu não tinha dinheiro, contatos, acesso, sorte, eu não tinha a mínima chance de fazer esse sonho se realizar. Eu não tinha expectativa, então não tinha frustração, só me restava aceitar. Pelo menos até ali, até esse dia chegar. Nadar e morrer na praia é pior do que morrer por não saber nadar. Eu passei mais tempo da vida sonhando com isso do que sem sonhar. Eu aprendi cada música do CD, eu ouvi e cantei sem parar. Eu revivi o Stripped, eu voltei no tempo, eu não conseguia parar de pensar. Eu comprei o ingresso, eu liguei, esperei, falei inglês e expliquei, teve erro no sistema, Pink por horas na linha de espera, teve chat, teve e-mail, ligações intermináveis, assentos pra trocar e destrocar.

Destroçar. Uma palavra desconexa que tomou meu pensamento.

Eu comprei passagens sem ter dinheiro, achei hospedagens de graça, trouxe meu namorado comigo, e mesmo odiando dirigir, ele dirigiu 5 horas sem parar. Eu fui atrás da carteira, cruzei a fronteira, tomei chuva, passei frio, tomei banho sem aquecedor, escrevi uma carta que não tinha mais chance nenhuma de entregar. Eu voei 11 horas, fiquei sem dormir, comi o que tinha, e ignorei o medo da gastrite atacar. Eu lutei com a ansiedade, eu não estava sozinha, mas se meu namorado não fosse, eu estaria, e mesmo assim eu estava disposta a tentar. Eu estive tão perto. Tão perto. Não estava mais. Era hora do sonho acabar.

Silêncio.

Eu não chorei. Não senti vontade de chorar. Não senti raiva ou nada que pudesse explicar. Só silêncio dentro de mim. Não era só um show, era a chance de voltar no tempo, de reviver o passado, de ressignificar minha memória, de reescrever minha história, de encontrar com o meu luto, de deixar ele vir, de aceitar que ele existe, de viver essa dor, era um fio de esperança de me curar.

Silêncio. Só silêncio.

Onde é o próximo show que você falou? Meu namorado me tirou do transe e perguntou. Ele já tinha dito outras coisas, mas estava tão distante que nem consigo me lembrar.

Chicago? Ele voltou a perguntar. É muito longe? Como a gente faz pra chegar lá?

Não tínhamos dinheiro nem pra comer, tínhamos perdido os ingressos, não temos conta em banco americano, ainda não sabia nem se teria reembolso. Precisávamos devolver o carro, trocar de hospedagem, liberar a casa, sair de lá. Levaríamos mais de 5 horas até Chicago, e depois teríamos que dirigir por mais de 10 horas seguidas, contra o fuso horário, pra voltar pro Canadá. A gasolina estava no fim. Os estacionamentos eram caros. Não sabia quantos pedágios teríamos que pagar. Não tínhamos o que vestir e a chegada de uma frente fria (mais fria?!) não ajudava em nada, só aumentava a quantidade de roupa pra lavar. Não tinha como irmos pra Chicago. Não tinha como comprar os ingressos restantes que eram bem caros. Não tinha onde a gente se hospedar. Não sabia nem por onde começar.

Eu tenho uma coisa pra te contar. Ele me disse, decepcionado. Eu tinha comprado ingresso pra primeira fila. Era surpresa. Eu ia com você no show, chegando lá te contaria e trocaria com você de lugar.

Eu não sei o que mais doía. A delicadeza da surpresa estragada ou saber que eu ia ver na primeira fila, apoiar meu caderno no palco, onde ela ia ver, pegar e guardar. E agora, nem surpresa, nem show, nem caderno, nem fileira M, nem fileira E, nem fileira A. Sorri pra doçura dele. O primeiro sorriso depois dela cancelar.

Acho que acabou. Foi a primeira coisa que consegui dizer.

Ele me perguntou se eu já tinha falado pros amigos mais próximos o que tinha acontecido. Uma mensagem ou outra de um ou outro que já sabia, mas eu não queria falar. Eu não queria conversar. De volta no tempo, era junho ou julho, inverno de 2003, quando eu aprendi que ninguém quer ficar desconfortável, que eu não posso ser a vítima, dividir os problemas, pedir socorro, esperar ajuda, porque ninguém vai querer ou saber como ajudar. Eu faço sozinha, sinto sozinha, supero sozinha, finjo sozinha, escondo sozinha, mas nada de me desarmar.

Fala com a sua terapeuta. Ele insistia. Ela vai saber o que falar.

O simples fato de estar ali, depositando nesse show a chance de voltar pro passado, de ressignificar toda minha vida e de reencontrar a minha ansiedade ainda recém nascida, antes dela se consolidar, já contradizia tudo que eu sempre fiz. E foi isso que me deu o impulso de tentar. Se, pelo menos uma vez, eu me permitir ouvir os conselhos dos outros, onde é que isso vai me levar?

Mandei uma mensagem pra ela, dividi meu dilema: ir pra Chicago ou desistir? Correr o risco de não ir e perder a chance de tentar me curar, ou correr o risco de criar uma dívida sem a certeza de que a saúde da Christina iria melhorar?

Toda decisão envolve risco e traz alguma perda. Os prós e contras estão lá, tanto de ir, como de ficar. Eu acredito que o melhor caminho é pensar em qual das perdas é mais difícil de suportar. De qual decisão você vai se arrepender mais se tudo der errado? Ela não tinha as respostas, mas sabia fazer as perguntas certas.

Eu prefiro não ir, não realizar meu sonho, morrer na praia, e depois de tudo, desistir desse processo de cura e aceitar? Ou eu prefiro tentar, saber que eu fiz de tudo, e se der errado, pelo menos eu não desisti de nadar?

Eu preciso ir pra Chicago. Eu preciso dar um jeito. Eu preciso chegar lá.

A decisão estava tomada, então era hora de fazer as contas e descobrir o tamanho da dívida que estava prestes a nascer. Nesse momento eu já não me perguntava mais se estava sendo irresponsável e inconsequente, eu tinha certeza da minha escolha, e não iria voltar atrás. Falei com todas as pessoas que de alguma forma poderiam estar envolvidas, com todos que eu precisei e que poderiam pensar em formas de me ajudar. Ali eu não podia manter meu modus operandi de resolver sozinha, de não dividir, de não pedir ajuda, de vestir a máscara de quem está bem e vai superar. Eu precisava ser honesta, dividir meu problema, incomodar as pessoas, ouvir as ideias, contar com o apoio delas, ser fraca e permitir que elas me dessem força, reconstruir os laços e as relações, aprender a voltar a confiar.

Era junho ou julho, inverno de 2003. Só que dessa vez não. Não. Não era mais. Era outubro em Detroit, outono de 2018. Era outra pessoa, outro tempo, outro lugar. Eu não vou deitar na cama, não dessa vez. Dessa vez, eu vou levantar.

Era a garotinha de 12 anos, frágil, mas bancando a forte, que tinha acabado de ficar órfã e ainda não sabia o peso do mundo que ela escolheu carregar. Só que dessa vez não. Não. Não era mais. Eu cresci, eu não preciso suportar sozinha, eu já sei o peso do mundo e eu posso pedir pra alguém me ajudar. Eu não sou mais a garotinha, eu não preciso bancar a forte, eu tenho uma força, mas ela não é essa força encenada, essa força fingida, essa mentira. Ela é a coragem de pedir socorro e saber que demonstrar fraqueza e precisar das pessoas exige mais força do que simplesmente negar.

Eu deixei de ser a criança fragilizada pronta pra desistir. Eu sou a mulher adulta que vai atrás de quem tiver que ir, que não vai se permitir perder sem esgotar as possibilidades de ganhar.

E eles ouviram. Cada uma das pessoas com quem falei, pra quem gritei meu pedido de socorro, pra quem pedi qualquer ajuda que pudessem me dar, eles ouviram. Eles ficaram. Eles ainda estavam lá. Eles não estavam desconfortáveis, desesperados, impotentes, esperando pela máscara que eu sempre escolhi usar. Eles estavam me mandando mensagens em caixa alta, repetindo fortemente o quanto eu estava fazendo a coisa certa, e que eu PRECISAVA TENTAR. Eles repetiam que, não importa o que acontecesse, a pior das consequências, eles me ajudariam a levantar. Eles me ofereceram compaixão, otimismo, tempo, um ombro amigo, abrigo, até mesmo dinheiro pra me ajudar a pagar a dívida que eu ia criar. Eles me ofereceram ajuda mesmo quando não sabiam o que fazer, mas só pra eu saber que eles queriam de algum jeito ajudar. Eles pararam tudo pra falar comigo. Eles estavam devastados comigo. Eles estavam pensando em soluções comigo. Eles estavam sendo fortes comigo. Eles estavam preocupados comigo. Eles estavam se importando comigo. Eles estavam ali, sem que eu precisasse fingir, sem que eu precisasse me esconder, sem que eu precisasse da máscara, eles estavam comigo. Cada um deles, do seu jeito, estava lá. E aí, pela primeira vez, eu quis chorar. E não era pelo show cancelado, porque isso eu ia resolver com a coragem que eu tinha e a força que cada um deles estava disposto a me dar. Era a ficha caindo. Está dando certo.

Você precisa ir nesse show. A voz da terapeuta ecoava na minha cabeça.

Ela tinha razão. Não era só o show. Era tudo. Era o peso emocional de realizar um sonho, eram os obstáculos que eu teria que enfrentar. Era encontrar com essa nova versão de mim e perceber que a menina de 12 anos não tinha mais lugar.

Está dando certo. Eu comecei a andar no caminho da cura. Depois de 15 anos, finalmente, eu comecei a ressignificar.

Qual é o seu hotel favorito?

Créditos: Chris Harnish Photography

Você não vai acreditar! Meu namorado me disse enquanto eu fazia as contas, tentando diminuir os gastos, tirando daqui e de lá. Ele estava falando com a chefe (e amiga) por mensagem, sobre o próximo salário, sabendo se tinha como adiantar.

Ela vai adiantar?

Ela vai, mas não é isso. É muito mais. Ela quer dar os novos ingressos e pagar pelo hotel em Chicago. Ela disse que a gente precisa tentar.

Era inacreditável. Isso seria muito caro, meu primeiro impulso foi sentir uma certa vergonha de aceitar. Eu não gosto de tirar proveito das pessoas, mas parecia um sinal de que as coisas estavam se encaixando. E isso diminuía os custos de um jeito que era impossível recusar. Era incrível ver a quantidade de pessoas que estava se envolvendo e se oferecendo pra ajudar.

Em meio às incansáveis ligações pra todos os lugares burocráticos que tivemos que ligar, entre estender locação de carro, avisar todos os afetados, checar aviso viagem e limite dos cartões, e intercalar conversas em inglês e a boa e velha What About Us da Pink tentando saber se o reembolso ia ou não rolar, eu tive que lembrar meu namorado que ele odeia dirigir e seriam 5 horas pra ir e mais 10 horas pra voltar. Não era o sonho dele, era o meu. Eu não queria ser egoísta. Eu tinha que perguntar. Além disso, eu sei que um dos maiores medos dele na vida é criar uma dívida e não conseguir pagar.

A gente veio até aqui, a gente não vai desistir. Agora a gente vai até o fim. É o seu sonho, é uma vez na vida. A gente precisa tentar.

E aí, pela segunda vez, eu senti vontade de chorar. Era o meu sonho, mas eu não estava sozinha. Ele estava comigo. Ele sempre está.

As mais de 5 horas entre Detroit e Chicago foram muito mais tranquilas que as primeiras 5, de quando viemos do Canadá. Comemos barato, com o pouco dinheiro que tínhamos, mas foi um dos melhores cafés que eu já pude tomar. Com uma porção generosa de bacon crocante, waffle de chocolate e avelã, ovos mexidos com queijo fundido, e blues ao vivo, mesmo sendo de manhã. Ouvi as mesmas músicas, os mesmos álbuns, mas por algum motivo a voz negativa não estava na minha cabeça tentando me sugar. Estava frio, mas não senti tanto frio a ponto de me incomodar. O sol batia forte no carro, e ás vezes até me obrigava a ficar de olhos fechados, mas sentir o calorzinho no corpo era reconfortante, eu não tinha do que reclamar. Paramos pra ir no banheiro e beber água, mas não estávamos cansados o suficiente pra ficar um tempo na beira da estrada pra descansar. Foram as mesmas horas, mas tinha uma leveza e uma felicidade que há muito tempo eu não encontrava, talvez eu nem conhecesse, talvez nem soubesse que pudesse sentir. Vimos o pôr do sol e o nascer da lua, mas não teve fronteira, não teve chuva, não teve cidade com casas abandonadas, não teve angústia, só o brilho das luzes dos pisca-pisca distribuídos pelos restaurantes de Chicago, uma cidade com tanta luz, que parecia um cenário montado pra impressionar. Era como se estivéssemos vivendo nosso próprio filme e as luzes cenográficas fossem dispostas de forma milimetricamente calculada, iluminando o caminho pra gente passar. Eu nunca pensei em ir pra Chicago, mas assim que cheguei, sabia que não iria querer sair tão fácil de lá.

Meu Deus! É um negócio que eu nunca ia ser capaz de pagar!

Chegamos no hotel, localizado na mesma rua que a Prada, a Louboutin e a Louis Vuitton. Entramos no quarto, eu deitei na cama e apoiei o corpo cansado, ainda tentando processar. O aquecedor ligado, a temperatura controlada, ia ter banho quente, dá pra acreditar? Eu esperava um lugar simples, qualquer um onde desse pra tomar banho, dormir e descansar. Um hotel 5 estrelas não passou nem perto da minha cabeça, era tão luxuoso que tinha coisas que eu não sabia nem mesmo como usar. Um lounge no quarto, uma área de trabalho, chuveiro embutido no teto, com roupões felpudos e espelhos dos mais variados, uma cama king, obras de arte e projeto de iluminação. Uma parede toda de vidro com vista pro Lake Michigan e pra cidade iluminada, um andar bem alto e pra ligar e desligar as coisas não tinha interruptor, era um outro tipo de botão. Era engraçado, o envelope de check-in vinha com uma lista de pontos próximos, entre eles os melhores restaurantes, bares e cafés da região. Acho que não ia rolar, porque apesar de ostentar um hotel de luxo, a gente ainda estava no esquema menos de 10 dólares por refeição.

The best is yet to come. Estava escrito em um dos quadros do quarto. The best is yet to come.

Qual é a sua parte favorita do show?

Você conhece o setlist? Você sabe a ordem das músicas? Você decorou? Meu namorado perguntou, preocupado, logo depois de sentarmos nos nossos lugares. Há algumas horas ele estava lutando com uma suposta intoxicação alimentar, uma diarreia persistente, e ficou agradecido por estarmos perto do banheiro, porque estava planejando, vez ou outra, ter que levantar. Sim, estávamos lá. Eu e ele, no Chicago Theatre, devidamente sentados, esperando o show começar. Eu imaginei que estaria eufórica, mas depois de todos os altos e baixos, acho que precisava dela no palco pra finalmente poder acreditar.

See you tomorrow, Chicago! ❤. Ela postou no Instagram no dia anterior ao show. Eu nunca ganhei na loteria, mas sempre imaginei um sentimento parecido com o que senti. Não foi à toa. Valeu a pena passar por cada um dos percalços, superar cada um dos obstáculos. Estávamos chegando na praia depois de muito nadar e adivinha? Ela recuperou a voz e estaria lá! Depois disso, a felicidade inexplicável só se completaria quando tivesse certeza de que nenhuma outra surpresa iria mudar o rumo da história.

The best is yet to come. Lembrei do quarto, lembrei do hotel, lembrei dos amigos, lembrei do quadro. Parece que a sorte tinha voltado a nos acompanhar. Será?

O telão se acendeu. A imagem de um relógio preto e branco no maior estilo Hugo Cabret deu lugar ao lettering anunciando que em 5 minutos o show iria começar.

Era real. Eu estava lá. Ela estava lá. Depois de quinze anos a gente iria se encontrar. Ela não sabia disso e provavelmente não iria perceber, mas tudo bem, esse sempre foi o nosso jeito de se conectar. Ela fazia as músicas, escrevia as letras, cantava as melodias, falava o que sentia, sem medo do que iriam pensar, enquanto eu ouvia, me identificava e conseguia me apropriar.

O telão piscou. 3 minutos. Quantos minutos cabem dentro das 10 horas que dirigimos pra encontrarmos com ela em Chicago? Quantos minutos cabem dentro dos meses que passei ouvindo as vozes da minha mente se degladiando, tentando me fazer desistir de viajar? Quantos minutos cabem dentro dos 15 anos que esperei pra esse sonho se realizar?

O som do piano. A luz se apagando. Um vídeo no telão. Os gritos de uma plateia que esperou cada um dos 10 anos em que ela esteve longe do palco, ansiosos por esse retorno, pra ouvir aquele vozeirão. Quem conhece os álbuns da Christina Aguilera, sabe que ela gosta de contar histórias. Cada álbum tem o seu conceito, começa com uma intro pra gente se ambientar, e as músicas vão costurando a história, com os interludes, até o álbum acabar. Era a intro do álbum. Era a intro do show. Era a intro de uma nova era. Uma nova ela. Uma nova eu.

Começou.

Era ela no palco. Meu Deus… Ela estava mesmo lá. Eu podia ver. Eu podia ouvir. Se esticasse um pouco o corpo, talvez com certo esforço, eu pudesse até tocar. O timbre que me acompanhou por quinze anos, o timbre que eu reconheceria até se perdesse quase toda a audição, o timbre que me acalmou a alma, me aqueceu o coração, o timbre que me fez sair da cama, o timbre que salvou a minha vida, o timbre que me fez continuar. Estava ali, na minha frente, finalmente, ela estava lá. Eu podia ver. Eu podia ouvir. Era quase como se aquela voz tomasse todo o espaço, me abraçasse como tantas vezes me abraçou, e pudesse me tocar. A voz que por 15 anos me tocou, estava ali outra vez pra me tocar.

Ela abriu o show com a minha música favorita do novo álbum. Acho que esse negócio de escolher favoritos foi ficando mais fácil com o passar do texto, com o passar dos anos, com o passar dos álbuns. Maria.

How was I supposed to know that it would cost my soul?
Nothin’ is free outchea, I wanna breathe outchea
How am I supposed to face this lonely life I’ve created?
Is that the price that I’m payin’?
I wanna feel the day

All my life’s been given
Was too young to know the difference
How did I get so low? When did I turn so cold?
Inside of my own mind, I believe my own lies
I’m facing the mirror

Where, where, where is Maria?
Why, why, why don’t I see her?
I, I just wanna see her
Why, why, why don’t I see her?
I, I just need to see ya, Maria…

Maria, a versão mais genuína da própria Christina escondida e perdida dentro de si. A música sobre a busca dela por ela mesma. A música sobre a minha busca pela parte de mim que a ansiedade sufocou, que por tantos anos eu perdi. Depois de 10 anos, a Maria dela estava de volta aos palcos. Depois de 15 anos, a minha Maria estava voltando pra mim.

Eu poderia descrever cada pedacinho, cada letra, cada nota, cada belting, cada grave preciso, cada novo arranjo, nova melodia, nova firula, cada melisma impecável que só uma diva como ela consegue entregar.

Eu poderia ir de novo e de novo, todas as noites, virar roadie, gravar e por no repeat pra ouvir sem parar. Eu poderia falar da admiração que tenho por vê-la no palco, totalmente entregue, mesmo que ainda com tosse, com dor e doente, cantando ao vivo, se recusando a dublar. Eu poderia falar da delicadeza de cada uma das baladas, da energia das músicas agitadas, do discurso feminista e da triste e real atualidade de letras como a de Can’t Hold Us Down ou Fall in Line.

Eu poderia falar dos figurinos, do respeito com que ela trata os dançarinos, da alegria dos backing vocals vendo a felicidade dela no palco, depois dos shows que ela teve que cancelar. Eu poderia falar das drag queens que ela convida pra subir no palco e da diversidade que ela faz questão de celebrar. Eu poderia falar da humildade de uma das maiores lendas da música se desculpando por não estar com perfeita saúde, e pedindo pra plateia ter paciência e compreensão no caso dela errar alguma coisa, da voz dela falhar. E claro, no final da performance, obviamente não ter nada, nem uma única notinha fora do lugar.

Eu poderia falar da alegria dela sorrindo, se superando, vendo que mesmo doente conseguiu acertar. Nossa, como eu poderia falar, falar, falar, falar e falar…

Quinze anos esperando por tudo isso, e eu sempre me perguntei como eu iria me comportar. Chorar? Tremer? Desmaiar? Eu não sabia ainda. Eu só estava lá, completamente entregue e feliz, como há muito tempo, como talvez há quinze anos, eu não tenha me permitido estar. Chegou o momento mais esperado do setlist. Beautiful. A música que me salvou. E eu sempre me perguntei, como eu iria me comportar?

Créditos: Javier Villarroel

Eu não desmaiei. Eu não tremi. Eu não chorei. Não fiz esforço algum, eu só não senti vontade de chorar. Era Beautiful, o momento mais emocionante, e eu não tinha nenhuma lágrima pra derramar.

Eu voltei no tempo. Era junho ou julho, inverno de 2003. Beautiful estava tocando. Eu e a Christina, estava tudo certo, a gente estava lá. E, diferente da certeza que eu tinha de que quando ouvisse essa música, daria de cara com a garotinha de 12 anos movida pela ansiedade e pela depressão, pelo trauma e pela solidão, e a presença dela fosse me tomar… Ela não saiu da cama, não saiu do quarto, não saiu da casa, não saiu de 2003, não quis se aproximar. Dessa vez, ela não veio comigo. Ela ficou no passado, talvez uma hora ou outra ela volte, talvez ela fique pra sempre nesse lugar.

Beautiful é o momento em que a Christina não tem dançarinos, nem pirotecnia, nem figurinos extravagantes, nem banda aparente, resta só o palco, a música parcialmente acapella e a voz da plateia que espera por esse momento pra se ouvir cantar. É ela, livre de todos os artifícios, com ela mesma, e com todos nós. Era eu, livre de todos os meus monstros, comigo mesma, e com aquela voz. A música acabou, ela se despediu e eu mal pude notar. Estava vivendo o êxtase de, finalmente, depois de 15 anos, me libertar.

Liberation é o nome da turnê. Que bruxaria é essa que faz ela sempre saber as palavras certas e quando usar?

Sem ela no palco, eu repassei o show na minha mente, e comecei a relembrar. Teve um único momento em que senti aquilo que eu sempre achei que sentiria, a tal vontade de chorar. E não foi em Beautiful, foi quando outra música favorita começou a tocar.

Fighter sempre esteve nas minhas playlists e eu sempre ouvi repetidamente sem enjoar, mas a minha conexão estava na técnica, nos drives, no ritmo acelerado, na letra truncada, nas guitarras pesadas, que a voz dela, mais pesada ainda, conseguia compensar. Os timbres de rock, a intensidade que a música pede e que ela sempre consegue entregar, os refrões exaustivos que ela repete e repete, fazendo o público entrar em chamas, se contagiar. As dinâmicas inesperadas e o quanto a energia cresce, é impossível explicar. Figther é a música pra quem tem alguma coisa lá dentro, reprimida há muito tempo, e precisa com todas as forças extravasar.

Mas dessa vez Fighter foi mais que isso, mais que técnica, mais que pura energia, mais que só admiração. Eu me conectei, e dessa vez num lugar mais profundo, na emoção. Eu realmente não era mais a garotinha de 12 anos. Era um novo eu que acabava de chegar.

VH1 Storytellers — Fighter: aos 44:30

I am a fighter
I ain’t goin’ stop
There is no turning back
I’ve had enough

’Cause it makes me that much stronger
Makes me work a little bit harder
It makes me that much wiser
So thanks for making me a fighter

Made me learn a little bit faster
Made my skin a little bit thicker
Makes me that much smarter
So thanks for making me a fighter.

Qual é a melhor história da sua vida?

Definitivamente, é essa com a qual encerro esse texto e talvez esse blog. É essa que estou há páginas e páginas tentando contar.

Todo mundo sabe que os shows tem um encore. O artista sai do palco, a plateia faz barulho e ele finge que não pretendia, mas que decidiu voltar.

Christina! Christina! Christina! Christina! Christina!. Todo mundo, inclusive eu, não parava de gritar.

Meu namorado não estava do meu lado, deve ter ido ao banheiro, como ele disse que faria. Que loucura, ele perdeu Beautiful, como alguém faz isso?

Lá estava ela, de volta ao palco, com uma espécie de vestido de noiva, pra cantar Unless It’s With You, uma balada romântica sobre casamentos, a penúltima música antes do show acabar. No meio da música, ela interrompeu, o instrumental continuou e ela começou a falar. Era sobre um fã que queria subir no palco e fazer uma surpresa, e que pediu pra ela ajudar.

Onde você tá, Rubens?. Eu olhei pra porta que dava acesso ao banheiro, sabendo que meu namorado ia achar isso divertido e esperando que ele voltasse logo pra ver o que ia rolar.

Where are you, Rubens?. Era a voz da Christina. Era a voz da Christina? Era a voz da Christina!

ERA A CHRISTINA AGUILERA, NO MICROFONE, EM CIMA DO PALCO.

ELE NUNCA FOI NO BANHEIRO, ELE ESTAVA LÁ!!!

Eu não sei nem que nome dar pra isso, porque o que pode ser muito maior do que um sonho que acabou de se realizar? Meu namorado estava em cima do palco, com a Christina Aguilera, com um discurso pronto e um pedido de casamento pra fazer pra mim.

Eles me chamaram. Meu Deus… Meu namorado e a Christina Aguilera me chamaram. Juntos. Em cima do palco. Eu não conseguia raciocinar. Eu passei de mão em mão pela produção, pelo fundo dos palcos, por entre os cabos, por entre os músicos, até chegar lá.

Eu estava no palco. Eu fiz de tudo pra ver esse show e agora eu estava no palco, em cima do palco, eu, ela e ele no palco, em cima do palco. Ela estava no palco. Eu estava no palco. Em cima do palco.

Eu abracei a Christina, foi a primeira coisa que eu consegui fazer quando cheguei lá. Esse abraço teria que ser eterno pra eu poder agradecer pelo tanto de vezes em que, mesmo sem saber, ela conseguiu me ajudar. Eu agradeci rápido. Eu abracei a Christina Aguilera e agradeci. E ela me abraçou. Eu esperei uma vida inteira por esse abraço. Eu nem sabia, eu nem imaginava, eu nem esperava, eu nem sonhava. Estava muito além da lista dos sonhos impossíveis e inalcançáveis, mas estava acontecendo, e como eu precisava desse abraço… E teve outro abraço. E dessa vez, foi ela quem me abraçou. Eu disse pra ela que iria vê-la em Detroit, e que foi uma longa jornada pra estar ali, e ela disse que sabia. Ela sabia? Como assim, sabia? O que ela sabia?

O pedido aconteceu. Ele perdeu o discurso pronto, então só disse aquilo que sentia e sabia falar. A gente já tinha casado, rapidamente, mas ali foi a hora de formalizar, de romantizar, de eternizar. Ele escolheu Unless It’s With You porque fala muito de nós. Porque é uma música sobre casamentos para quem não se importa muito com o ato de casar. É uma música às avessas, meio controversa, fora do padrão, como a gente, como a Christina, como o tipo de coisa que ela gosta de cantar.

I don’t want no white picket fence
Dozen roses and a wedding dress
Fairy tales are fake happiness
But here we are and I must confess

I’m in over my head feeling confused
I’m losing my mind, don’t know what to do
’Cause I don’t want to get married
Unless it’s with you, unless it’s with you

Ninguém sabe, mas eu sei que ele fez isso muito menos pelo pedido, pelo romance e pelo momento, e muito mais pra tornar o meu sonho impossível possível de se realizar. E isso é maior que qualquer pedido, isso é a maior prova de amor que ele poderia me dar. Ele fez o pedido, que poderia ser só mais um pedido, exatamente no único lugar em todo o mundo onde eu sonhei a vida inteira em estar.

Era meu pedido de casamento e quem foi a primeira pessoa a me parabenizar?

Era meu pedido de casamento e quem cantou pra nos homenagear?

Era meu pedido de casamento e quem ajudou o sonho a se concretizar?

Ela. Sempre ela. Cantando do meu lado com o timbre que eu passei os últimos quinze anos ouvindo sem parar. Ela foi a primeira a ver os “anéis” e a única, além de mim e dele, que sabe porque essas aspas que eu resolvi colocar. Eu estava no palco, com ele e com ela, cada um de um lado, as duas pessoas que, de formas muito diferentes, mais me fizeram e me fazem, todos os dias, ter forças pra continuar.

Como ela é, a Christina Aguilera? É a pergunta que não cansam de me fazer. Ela usa um perfume doce e suave, que ficou na minha roupa um tempo, até eu lavar. Os olhos dela parecem duas bolas de gude da cor do céu num dia ensolarado de verão, tão azuis que é meio hipnotizante, difícil parar de olhar. Ela é menor que eu, que já sou bem mignon, e tem a mão bem pequenininha, percebi quando ela me deu pra segurar. Ela sorri pra você com um jeito de quem quer sorrir pra você de verdade, e não por obrigação. Ela é doce, carinhosa e atenciosa, mesmo com o pouco tempo que tivemos pra falar. Ela faz cena pra plateia, como todo artista quando está no palco, mas também comemora com a gente baixinho, fora do microfone, mesmo sem ninguém escutar. Ela canta sem esforço algum, bem ali do nosso lado, e parece que esquece por um instante que é uma lenda, parece que só canta porque é a coisa mais natural, porque nasceu pra cantar. Ela se desculpa por Detroit, pelo cancelamento, e isso me lembra o que ela disse, que sabia que iríamos pra lá. Sento com meu namorado, tem muitos detalhes que ele precisa me explicar.

Eu falei com a produtora dela. O pedido estava combinado, a Christina sabia, era em Detroit, ia rolar.

Eu inventei a intoxicação e a dor de barriga. Não tinha banheiro naquela saída, era onde a produção combinou de me buscar.

Lembra que eu perguntei de Chicago? A Christina, doente, depois de cancelar, através da produtora perguntou se conseguíamos ir até lá.

Sabe a lista de restaurantes, bares e cafés da região no envelope do check-in? Não é do hotel, é da equipe dela, que está toda hospedada lá.

Sabe os ingressos e o hotel pago? Não foi minha chefe. Foi a Christina que se ofereceu pra pagar.

O hotel 5 estrelas em que ficamos… Agora fazia todo sentido. Foi a Christina Aguilera que se ofereceu pra pagar. Estávamos na lista da equipe dela, coisa que eu descobri quando voltamos pra lá.

Como ela é, a Christina Aguilera? É a pergunta que não cansam de me fazer. Assim. Ela é assim. Essa é a Christina Aguilera. Essa é a popstar, a super estrela, a diva, a lenda, a ganhadora de 6 Grammy Awards, a voz da geração. Essa é a Xtina que eu conheci. A que fez tudo isso por mim, sem nem me conhecer. A que fez de todas as formas possíveis meu sonho se tornar real.

Antes de ir embora, eu conheci a produtora e entreguei o caderno de paetê. Ela disse que daria nas mãos da Christina, nos parabenizou e voltou a trabalhar.

Você acha que ela vai ler? Meu namorado, ou melhor, meu marido me perguntou. Eu não sei, não espero saber, não espero que ela leia ou deixe de ler, não espero nada além de tudo que eu já tive a sorte e o raro privilégio de ter. Eu acho que no fundo, mais uma vez, ela foi um portal que me levou a mim. Eu escrevi pra ela, mas escrevi pra mim. Eu entreguei pra ela, porque expulsei de mim. Naquele caderno eu agradeci por cada uma das coisas que ela já fez, e que eu precisava agradecer. Eu cheguei no lugar mais alto, no topo da montanha, no fim do caminho que eu poderia percorrer. Eu escrevi, agradeci, fui até ela e tive a certeza de que ela iria receber. Eu fiz minha parte. Ler ou não ler é sobre ela e eu não tenho mais o que me meter. Eu fechei a ferida. Eu encerrei o ciclo. Eu me libertei.

Todos os processos terapêuticos que eu tentei racionalizar não eram páreo pra força que essa ligação, através da emoção, conseguiu despertar.

A razão não é tão forte e poderosa quanto a ansiedade. Mas quem é, então? Ela. Eu. Essa sensação. A versão de mim que renasceu através da profundidade dessa conexão.

Voltamos pro hotel e no lobby, os músicos, backing vocals e dançarinos dela vieram nos cumprimentar. O casal do pedido, eles nos chamavam. Todos doces como ela. O tipo de gente que dá felicidade de encontrar. Passamos a última noite no quarto e agora eu olhava pra cada detalhe e sabia que, de todas as formas, ela era a responsável por estarmos lá.

The best is yet to come. Foi a última vez que vimos o quadro, perfeitamente, milimetricamente, convenientemente pendurado, enfeitando a cabeceira da cama, costurando o storytelling, prevendo o desfecho dessa situação. Quase tão clichê como uma história da Disney, ou o sonho americano, ou um conto de fadas, que termina no maior estilo when you believe, your biggest dreams come true. Well, it looks like they do!

Saí de Chicago sem perceber as 10 horas de estrada até o Canadá. Ouvi o Liberation. Ouvi o Stripped. O Back to Basics. O Bionic. Fiquei sem voz de tanto cantar. Vi a estrada ficar eterna, derramei uma lágrima ou outra olhando pela janela, inundada pela sensação de paz que, depois de tantos anos, eu nunca achei que poderia reencontrar. Vi o sol nascer. Vi o sol se por. Vi Chicago ficar pra trás, sem querer me despedir, como já imaginei que seria quando tinha acabado de chegar. Vi Detroit muito por cima. Vi a fronteira se aproximar. Vi a liberdade na minha frente. Uma liberdade que eu passei quinze anos procurando sem parar. Uma liberdade que, por muito tempo, eu não achei que conseguiria reconquistar. E como não seria diferente, esse texto se encerra com uma música. Mais uma música das muitas músicas onde ela diz tudo que eu queria dizer, onde ela sabe exatamente o que falar.

Celebrating a fantasy come true
Packing all my bags, finally on the move
I’m leaving today
Livin' it, leaving it to change

I turn up the radio and I’m feeling like I’ve never felt before
Turn down the memories of yesteryears and broken dreams I bring
Finally free

Ciclo encerrado e só me resta uma sensação: The best is yet to come. Não foi ela quem disse. Ou foi? É, meio que foi. Não fui eu quem disse. Ou fui? É, meio que fui. Não sei, já não importa… The best is yet to come!

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