Quantos remédios você já tomou?

Ellen Neuschwanstein
365 dias com ela
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6 min readJul 13, 2018

E aí, melhorou? Era meu pai perguntando por mensagem.

Há exatamente 1 mês eu fui à clínica de otorrinolaringologia que eu sempre vou. É pequena, mas nunca lotada, atende meu convênio e me atende bem, é silenciosa, mas perto de casa, numa rua arborizada com folhas caídas pelo chão, folhas que eu chuto às vezes, folhas que eu observo sendo levadas pelo vento na curta caminhada entre minha casa e o consultório. E o mais importante: não se parece com um hospital. Eu poderia dizer que ali me sinto confortável, mas seria extremamente exagerado fingir que as paredes brancas, os jalecos e o cheiro de éter tem alguma possibilidade de me trazer conforto.

Conhecido. É essa a palavra. Controlado. Pelo menos na minha fantasia de controle. Ali eu sei o que vai acontecer.

Recepção, carteirinha do convênio e RG. Espera. Assinar a guia. Chama pelo nome. Espera. TV. Banheiro. TV. Assento na parede pra encostar. TV. Chama pelo nome. Consultório. Conversa. Os fatos resumidos, um pouco exagerados. A cadeira. Palito. Garganta. Ouvido. Exame. Xilocaína. Lenço. Silêncio. Gel. Nasolaringoscopia. Respirar fundo. Um pouquinho de desconforto. Conhecido. Eu conheço, eu aguento. Respirar fundo. Outro lado. Respirar fundo. Falar “A”. Falar “I”. Respirar fundo. Acabou. Com ou sem sinusite. Com ou sem antibiótico. Com ou sem atestado. Acabou.

Diagnóstico: sinusite com antibiótico e sem atestado. Antibiótico por 10 dias, anti-inflamatório por 5, corticoide e soro por 30, protetor gástrico pra vida.

E aí, melhorou? Na época, meu pai perguntou.

Vocês também sentem medo de tomar antibiótico? Eu sinto que uma bola de fogo vai abrir no meu estômago. E sempre abre. Sempre abriu. Ou pelo menos uma versão um pouco menos exagerada disso. Não sei se é o antibiótico ou a ansiedade. Ela. Sempre ela. Dessa vez não. Sem bola de fogo. Sem ela.

É… Melhorei.

Uns poucos goles de vinho quente, espumante e vodka depois, misturados ao começo do inverno e ao ar condicionado constante do trabalho, e outra nasolaringoscopia.

Não, não melhorei.

Diagnóstico: rinite alérgica, laringite e refluxo da laringe. Da laringe? Perguntei. Tá aí uma possibilidade que eu nem sabia que existia. Logo eu, conhecedora das doenças, uma quase especialista. Isso explica minhas crises compulsivas de tosse que mais parecem um mini infarto e a completa ausência de voz. Ou pelo menos uma versão um pouco menos exagerada disso. Antialérgico por 10 dias, xarope por 5, corticoide por 30, protetor gástrico por 60, spray anestésico sempre que tiver dor, soro fisiológico pra vida. Falta no trabalho, tosse, cama, tosse, silêncio, tosse, dor no corpo, tosse, dor de cabeça, tosse, cansaço.

E aí… Melhorou? Meu pai. Novamente.

Duas pessoas que convivem com pessoas que eu convivo estão com H1N1. Eu tenho certeza de que estou também. Não tomei a vacina, e não, não sou do movimento anti vacina, muito pelo contrário, eu queria muito, muito, muito ter tomado. Eu queria. Ela não. Há anos. É H1N1, só pode ser. Peço pro meu namorado perguntar os sintomas pra amiga dele que está com a doença. Preciso confirmar, dar check em cada uma das minhas caixinhas vazias.

Se você tivesse com H1N1, você saberia. É a resposta que ela me dá. Os sintomas batem, mas não tanto. Tenho todos ou quase todos. Tenho alguns. Tenho poucos. Alguns deles desaparecem lentamente, simultaneamente à minha descoberta de que não, não estou com H1N1.

Alívio.

E aí… Melhorou? A tela do celular acende. Mensagem nova. Pergunta antiga.

3 dias se passaram e lá estava eu, bem no meio de um feriado prolongado. Clínica, cadeira, xilocaína, a última paciente do dia, nasolaringoscopia. Foram 3 nasolaringoscopias em 3 semanas. Faço as contas. É estranho dizer isso, mas esse é um dos meus exames favoritos. Ou pelo menos uma versão um pouco menos exagerada disso.

Nesse eu não aviso aos enfermeiros de que vou desmaiar, ouço que não, provo ter razão e fico em observação, como em quase todas as vezes em que tirei sangue, pelo menos nos últimos 15 anos. Nesse eu não desmaio como no exame da curva glicoinsulinêmica, um que te deixa por 6 horas com um acesso ou com 6 furos a cada 30 minutos pra tirar mais e mais sangue de você. De mim. Eu escolhi a segunda opção. Seis furos parece melhor do que a lembrança constante de ter um acesso com uma agulha grossa enfiada em você. Em mim. Nesse eu não preciso passar a noite anterior em claro sem saber o que vai acontecer como no exame que detecta labirintite, um que inunda seu ouvido com jatos de água quente e fria, enquanto de olhos fechados você tem certeza de que é o Jack, do Titanic, e que está no meio do mar. Eu sou. Eu estou. Abro os olhos, olho pro teto na direção do “x” assinalado e assisto o consultório perfeitamente seco girar sem parar. Nesse eu não fico anestesiada, desacordada, incapacitada, não arrancam um pedaço de mim. Nesse eu não me sinto tão invadida, machucada, mutilada, sem saber que hora é o fim. Nesse eu não espero perder a guia, desvio meu pensamento, fugindo do que pode vir. Nesse eu não preciso passar a noite em claro, mesmo sabendo o que vai acontecer, com medo do que eu posso descobrir.

Endoscopias, biópsias, radiografias, ultra-sons, papanicolau, hemograma, eletrocardiogramas, eletroencefalogramas, ecodoppler, canais, obturações, remoção de tártaro, uma lista que posso continuar e continuar.

E aí… Melhorou?

Diagnóstico: refluxo da laringe, rinite, laringite e sinusite com antibiótico. É sábado, não preciso de atestado. Continuo com o antialérgico, o corticoide, o xarope, o soro, o spray anestésico e o protetor gástrico. Ganho um paracetamol por 5 dias de 8h em 8h e um novo antibiótico por 10 de 12h em 12h. Perdi a conta. Cansei de contar.

Os dias passam entre a certeza de estar melhor e a certeza de que vou precisar voltar lá. Pelo menos o antibiótico não está me atrapalhando a comer, como normalmente iria acontecer. O feriado chega ao fim, hora de voltar a trabalhar.

Diarréia.

Tem um nome chique pra isso? Fiquei com preguiça de pesquisar. Não volto a trabalhar.

Pelo menos ainda tenho fome, minha dieta não vai mudar. Pesquiso. Minha dieta vai ter que mudar. Deve ser do antibiótico, mas não posso parar. Solução? Canja, água, soro, descansar. Pelo menos não tenho dor. Pesquiso. Tosse. Forte. Uma pontada no abdômen. Pelo menos parece muscular. Levanto, aperto, me mexo, faço força e confirmo. É, é muscular. Tenho Miosan, será que eu deveria tomar? Pelo menos não é o útero, onde eu tenho certeza de que, se eu procurar um problema, vou encontrar. Que dia é hoje? Doze? Treze? É dia de menstruar.

E aí… Melhorou?

Tento me manter otimista, tento me controlar, tento esquecer da dor do corpo e, principalmente, da mente, tento parar de pensar. Espirro e me lembro. Penso. Meu nariz entope e me lembro. Penso. Tento conversar, mas a tosse não deixa. Me lembro. Penso. Quero comer qualquer coisa, mas não posso. Me lembro. Penso. Acordo no meio da noite pra ir no banheiro. Me lembro. Penso.

E aí… Melhorou?

Leio a pergunta. Me lembro. Penso, penso, penso. Ouço a pergunta. Me lembro. Penso, penso, penso. E eu tenho que… eu quero… eu preciso parar de pensar. Eu quero agradecer muito por alguém se preocupar. Ninguém tem culpa. Eu tenho. Mas eu preciso só por um instante não me culpar. Eu preciso parar de pensar.

Eu queria ter ido na terapia essa semana. Não fui. Só semana que vem. Eu queria que meu corpo e minha mente estivessem bem. Não estão. Talvez semana que vem. Eu queria que ela fosse embora de uma vez. Não vai. Não até semana que vem. Eu queria acreditar que eu consigo voltar a ser eu. Um dia. E nem precisava ser na semana que vem.

Filha, estou preocupado com você. Tá melhor?

Tô aqui. Tô indo.

Não sei o que falar.

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