Ilustração: Velwyn Yossy

A curiosa história de encontrar os óculos sem enxergar bem

Débora Garcia
3Devi

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Lá estava eu andando na floresta enquanto seu lobo não vinha. Ou, mais precisamente, lá estava eu pela enésima vez deambulando pela estrada das Paineiras, meu santuário particular na cidade, onde consigo me movimentar praticamente sem máscara por ser um lugar remoto, suar um pouco pra me livrar das toxinas do corpo e da alma e respirar com vontade o oxigênio abundante oferecido pela Mata Atlântica.

Pra quem lê o que escrevo no 3Devi, é público o meu hábito de caminhar e fotografar com o celular o que vou achando de interessante pelo caminho. Já contei aqui que faço disso uma espécie de meditação particular, sem pretensões artísticas envolvidas, só tentando mesmo capturar momentos que me chamam a atenção por algum motivo. Além de trazer mais um estímulo para as minhas necessárias caminhadas, ainda me faz um bem danado em termos de refresco mental.

Nesses momentos onde levo a alma pra passear, vou munida de óculos de grau caso eu queira fotografar algo mais detalhado ou mesmo pra dar uma bisbilhotada no whatsapp e no email pra ver se apareceu alguma pendência do trabalho.

Durante uma dessas caminhadas, como de costume, tirei fotos de liquens, musgos, folhas com traçados de insetos, árvores gigantescas fazendo sombra na minha cabeça, de borboletas que atravessavam o meu caminho, de insetos gigantes e tudo mais. Até macaco prego apareceu naquele dia, dando o ar da graça! Os meus óculos normalmente ficam no "case" apropriado, mas nesse dia estavam soltos na minha bolsa onde também carrego o celular, fone de ouvido, dinheiro e documento. Eu os tirei e os coloquei de volta na bolsa um par de vezes.

Lá pelas tantas, resolvi sentar um pouco e descansar após a primeira etapa da caminhada, dando aquela olhadela nas mensagens. Foi então que descobri que meus óculos não estavam mais onde deveriam. Apreensão no ar. Olhei em volta. Tateei com cuidado a superfície onde estava sentada e… nada. Tinha andado em torno de uma hora, estrada acima e ainda teria que fazer o mesmo trajeto para voltar até o carro. Tenho astigmatismo e vista cansada, então não preciso dos óculos o tempo todo. Mas preciso dos óculos para enxergar detalhes, pra ler, pra usar o celular. E encontrá-los de volta exigiria justamente… conseguir enxergá-los! Supus que eles pudessem ter caído no chão de asfalto ou na borda da mata que rodeia a estrada. Ou seja, num dos inúmeros lugares onde parei, coloquei os óculos e fotografei algo.

Sherlock — ou Enola — Holmes em ação, só que ligeiramente cega!

Minha primeira sensação foi de fracasso iminente. Como eu poderia ter a pretensão de encontrar meus óculos no meio de uma estrada de seis quilômetros no total, sem enxergar bem, com um chão acinzentado, coalhado de folhas e gravetos? Ou até pior: como eu poderia encontrá-los caso tivessem caído não no chão de asfalto, mas na mata que contorna a estrada e onde eu ousei me aproximar em vários momentos em busca de um detalhe para uma foto? Pra dar um contexto mais amplo, eu tinha acabado de mandar fazer novas lentes para os óculos e o valor pago, considerando a armação, era considerável. Por isso a ideia de perdê-los em definitivo me frustrava bastante.

Respirei. Pensei em encontrar pistas no próprio celular, acessando as fotos que tinha acabado de registrar na caminhada. Claro que tentar enxergar essas imagens já seria em si um desafio. E uma tarefa ainda mais complexa seria olhar para as plantinhas ou para os insetos fotografados e tentar reencontrá-los na caminhada de volta. E, óbvio, sem os óculos para me apoiar nesse exercício de encontrar agulha no palheiro. Ou os óculos nas Paineiras.

Mas eu não tinha muito outra escolha. Poderia desistir de procurar e voltar cabisbaixa para o estacionamento, chegar em casa e mandar fazer um novo par de óculos. Ou poderia tentar pôr em prática o meu plano imperfeito. Foi o que fiz: olhei foto por foto e fui tentando reconstituir o caminho percorrido, tentando perceber com todo o cuidado possível se encontraria os meus óculos.

Um ato de fé cega, literalmente

Com auxílio das fotos recém tiradas, fui encontrando alguns dos pontos na estrada onde potencialmente os meus óculos poderiam estar. Ponto um? Nada. Ponto dois, nada também.. Ponto 8?? Nenhum sucesso. Quem me visse pelo caminho pensaria que eu estava louca: eu olhava com cuidado para o chão, chegava nas bordas da mata, afastava alguns arbustos com as mãos, e continuava procurando pela armação preta com shape de gatinho. Uma tarefa quase zen, dada a possível volatilidade da situação.

Depois de um tempo procurando com os olhos mais abertos que uma coruja e sem sucesso, praticamente desisti da ideia, acreditando que seria uma missão impossível, dadas as circunstâncias. Mas continuei caminhando olhando para o chão. Até que…

Encontrei meus óculos! Um riso aberto de orelha a orelha tomou conta do meu rosto e me senti de alguma maneira abençoada pelos gnomos da floresta. Dei três pulinhos para São Longuinho e fiz até uma dancinha da conquista. Claro, eu estava muito feliz! E, sim, só pode ter sido obra de algum ser elemental colocar meus óculos no meu caminho. Estavam bem ali, repousados, intactos, esperando que eu chegasse para finalmente recuperá-los.

Se a gente confiar, a mágicka acontece

Talvez pelo fato de ser pedagoga, eu gosto de entender os acontecimentos a minha volta como uma grande metáfora ou como ensinamentos em potencial. Se é possível encontrar meus óculos mesmo sem estar enxergando totalmente, mesmo na situação mais improvável e desafiadora, imaginem o tanto mais que seria possível alcançar desde que a gente coloque uma certa dose de fé e esforço na equação. É aquela história: "fé, sem obras, é morta". Tá lá em Tiago, 2:26. E também está em Jodorowsky: "se você não tem fé, pretenda ter". Ou em Allan Watts: "fé é um estado de abertura e confiança". E está, certamente, dentro de nós. É só procurar, mesmo que os óculos pessoais da confiança não estejam a mão. Tentar já é começar.

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Débora Garcia
3Devi
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Editora do https://medium.com/3devi. Sócia-diretora da Elektra Conteúdo. Tenta entender que mundo é esse e contribuir pra que a passagem por aqui valha a pena.