Daniela Belmiro
3Devi
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2 min readSep 27, 2019

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“as flores de plástico não morrem”, Campo Grande, LX

Alguns dias são mais complicados que outros. Salpicadas no meio, sempre, alegrias bestas: poder escolher o sobrenome “certo” nos cartões do banco e do transporte, entrar formalmente para a vida civil do lado de cá, consolidar aos poucos a identidade que escolhi para esta fase, achar palcos novos e encaixar novos versos nos meus poemas velhos. Aos poucos talvez seja o nome do jogo: aos poucos (re)ajustar a vida, aos poucos abrir mão de controlar o que deixei no Rio, aos poucos acatar o esquema cósmico que me fez estar aqui e agora porque simplesmente tudo é como tem que ser. Doucement, diria a palavra de que mais gosto no meu parco (mas crescente!) vocabulário de francês. Há engrenagens girando lentas e certas por trás disso, repito para mim mesma quando as coisas parecem estar ainda querendo descarrilhar. Me propus a desfiar pelas sextas 3Devi uma série de crônicas sobre a cidade, mas a cidade vai levar tempo para transbordar as fronteiras do meu luto e do apartamento. Rosa Montero diz que um autor que escreva para contar a própria vida estará fadado a produzir um texto abominável. Concordo, Rosa, e faço aqui a necessária pausa para agradecer a paciência de quem me lê. Abominável, pois. Porque na arrogância de quem chegou ao mundo primeiro eu nunca achei que estaria agora no lugar de ser (tua) herdeira, e essa é a estranheza que tem me embotado qualquer tentativa de voo ficcional ou olhar cronista quando molho (tuas) plantas, quando sigo (teus) pontos tortos no alinhavo da capa das almofadas, quando teimo em procurar recados cifrados no modo como (teu) conjunto irreverente e in English de curse words imantadas ficou espalhado na porta da geladeira. As minhas palavras-ímas, é claro, atravessaram o mar guardadas nas suas pretensiosas caixinhas que anunciam poesia e sentimentos, e é claro também que eu ainda não encontrei um jeito de começar a infiltrá-las no meio das que aqui estão. Quanto de assombro pode caber nisso que chamamos vida? Quanto nos custa andar por ela à cata de um sentido maior? Com assombro e tudo, tenho concluído que deve existir uma espécie de Modo de Segurança existencial, só pode, um mecanismo qualquer capaz de tapar o abismal das feridas com camadas de pequenezas cotidianas. E que é carregada por ele que sigo, tantas vezes distraída entre goles de café e idas ao mercado, tantas vezes me surpreendendo estranhamente inteira enquanto espero nas filas ou costuro em cicatrizes os rasgos recentes que flagrei no edredom.

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Daniela Belmiro
3Devi
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— — malabarista de vazios, carangueja inventora de asas, a moça que escreve também no @desdicionario, @peeping_dani e @imagina.gram