Bicho de pé

Daniela Kopsch
3Devi
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4 min readMay 23, 2018

K. era muito loira, muito branca e muito rica. Se me lembro bem, sua casa tinha dois ou três andares, uma piscina de verdade e portão elétrico. Digo isso em ordem de importância, assim mesmo, porque o que mais me impressionava era o portão elétrico. Quando queria brincar com K., eu fazia como todo mundo naquela cidade e naquela época, eu gritava por ela lá da calçada. Neste momento, alguém, por sabe-se lá que tipo de mágica, fazia o portão abrir imediatamente e eu entrava.

O casarão de dois ou três andares não era a verdadeira casa de K. Ela era veranista, ou seja, tinha outra residência incrivelmente grande e automatizada em outra cidade qualquer. Estou fingindo que não sei aonde era porque não quero identificar a menina — a história que eu vou contar talvez seja um segredo dela. Mas digo que ela era muito loira, muito branca, muito rica e que era filha de um médico.

Eu não tinha idade ainda para entender o calendário de feriados, de forma que a chegada de K. me pegava desprevenida. Normalmente, eu estava ocupada com uma expedição aos terrenos da rua ou descendo o morro à toda na bicicleta quando percebia, o coração aos pulos, que o carro de K. estava na garagem. Então eu corria para casa e tomava banho, escolhia a roupa mais nova do armário, calçava meia e tênis e só depois eu me dirigia à sua casa para berrar seu nome.

Nós brincávamos no seu quarto porque, desnecessário dizer, K. tinha muitos brinquedos. De início, ela não dava muita atenção a eles — aqueles eram os brinquedos renegados à casa de praia, apenas bons o suficiente para escaparem da caixa de doação — e por isso ela não se interessava verdadeiramente por nenhum até que eu tomasse a iniciativa. Somente quando eu pegava uma boneca e a exaltava (com os olhos, com palavras ou com a boca escancarada) é que K. via nela algum valor. Deixava-se contagiar pela minha empolgação e desta forma a brincadeira engatava, ocupando muitas vezes o dia inteiro.

Certo verão, K. chegou e eu não percebi. Então, depois de alguns dias, ela me procurou. Bateu lá em casa, minha mãe foi abrir o portão. Eu estava naquele momento envolvida em um procedimento cirúrgico. A menina entrou na sala e foi assim que me encontrou: sentada em uma cadeira, com o pé no colo do meu pai, que examinava cuidadosamente a ponta de um dedo. K. era tímida demais ou educada demais para perguntar, então não disse nada e sentou-se no sofá, me observando sem piscar nenhuma vez.

Meu pai é um homem grande, deve ter quase dois metros de altura. Naquele tempo, tinha mais. Estava debruçado sobre o meu pé com a atenção de um cirurgião. Manejava delicadamente seus instrumentos previamente esterilizados em água fervente: tesourinha, agulha, pinça. Chumaço de algodão, álcool e o merthiolate, do tipo que ainda ardia, completavam o aparato médico. Primeiro, ele passou o álcool gelado no meu pé para me distrair, mas depois não teve jeito: precisava enfrentar o problema e não seria sem dor. Depois de longos minutos cavucando meu dedo com a agulha, venceu finalmente a fera. O bicho de pé estava morto.

K. estava hipnotizada. Ficou imóvel durante toda a operação, os olhos arregalados. Daquele dia em diante, ela veio a minha casa todas as manhãs. Muitas vezes eu ainda nem tinha tomado o café e já podia ouvi-la gritando na calçada. Cada dia mais alto. Esgotamos rapidamente as novidades do meu quarto e depois a levei para explorar a rua. Tudo o que havia num raio de um quilômetro, nós desbravamos: cada terreno baldio, jardim desocupado e casa em construção, enfim, todo o meu universo conhecido.

Não nego que posso ter despertado em K. naquele verão o gosto pela aventura. Porém, é mais verdade que o objetivo dela era outro e eu soube disso desde o primeiro minuto. Ela ficava mais nervosa a cada dia, as férias chegando ao fim e nada. Ainda havia um último lugar para apresentá-la. Não era sempre que eu podia entrar, precisava esperar o momento certo, quando tanto a família quanto a faxineira estivessem fora. Nesses dias, eu podia passar por baixo da corrente de ferro da garagem e atravessar o terreno da casa vazia até chegar aos fundos da propriedade, onde um pequeno píer flutuava no rio.

Eu gostava de ficar com os pés na água, em silêncio, ouvindo um coaxar de vez em quando. K. era uma boa companhia para isso. Não falava quando não tinha motivo. Permanecemos balançando os pés por um longo tempo enquanto o barulho da noite crescia.

“Eu queria tanto um bicho de pé”, ela disse.

“Eu sei”, respondi.

Depois disso anoiteceu. E no dia seguinte acabou o verão.

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