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Cabelos indomáveis: como a indústria de cosméticos declarou guerra aos nossos fios

Débora Garcia
3Devi

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Faz um tempinho que tenho cuidado do meu cabelo por minha própria conta e risco. Em casa, uma vez por mês eu me lambuzo toda pra cobrir a raiz branca que insiste em dar o ar de sua graça com um kit tonalizante estilo "do it yourself". Até que faço direitinho, dizem as boas línguas. Também tenho evitado fazer escovas frequentes, nem tanto pelo que essa prática causa ao fio do cabelo, mas muito em função dos custos que gera no meu orçamento mensal. Mas como nem sempre sou da minha própria opinião — frase genial que me foi trazida por Kitta Eitler, hoje resolvi gastar um tempinho no salão e dar um trato mais "profi" na cabeleira.

E lá no lavatório, sendo enxaguada pelas mãos ágeis do profissional, pude olhar um cartaz afixado na parede contendo o que me pareceu uma estratégia de guerra, descrita passo a passo. No caso, guerra dos produtos capilares contra nossos cabelos que insistem em ser, digamos assim, rebeldes.

Segundo a indústria da beleza, pacíficos e calmos são tudo o que os nossos cabelos não conseguem ser, a menos que se rendam aos infinitos e custosos tratamentos disponíveis no mercado. Adiante, um rápido passeio pelos termos que foram mencionados no tal cartaz:

kit de tratamento de choque para cabelos

Para quem não sacou a referência de imediato, eu lembro aqui: tratamentos de choque foram (a ainda são) usados em instituições psiquiátricas, para conter os surtos de seus pacientes com transtornos mentais. De tão radical e opressivo, esse tipo de "terapia", gerou inúmeras controvérsias. Pelo visto nossos cabelos merecem esse tipo de tortura para encontrarem seu próprio eu existencial. Nessa guerra de forças desproporcionais, valem todas as táticas de combate. Inclusive as menos nobres.

Restauração capilar

A acepção do termo "restaurar" tem algumas interpretações. Pode significar desde a recuperação da "posse" ou do "domínio" de algo ou pôr em bom estado, consertar. O pobre do cabelo não tem jeito de acertar. Calado tá errado. Pelotão, marchar e abrir fogo contra o inimigo!

Reconstrução capilar

Reconstrução pra mim é algo para ser feito em algum lugar que estava em ruínas, destruído. Tipo uma localidade após um bombardeio do inimigo. Será que nossos cabelos chegaram tão longe em suas aventuras de indisciplina e desobediência civil perante o mundo?

Cicatrização capilar

Aqui saímos por alguns instantes do universo bélico e caímos no universo médico. Como se esse segundo fosse melhor que o primeiro! Tá bom! Nesse contexto os fios meio que passaram por algum tipo de lesão do tecido e precisam ser cicatrizados à força. Fico imaginando em que condições esses fios foram "machucados" e por qual vilão…

Inimigo identificado: a rebeldia está no ar!

Nossos cabelos claramente declararam guerra contra um inimigo no mínimo sui generis: nós mesmas, as donas desleixadas dessas cabeleiras indóceis… Para o mundo que dita as regras do bom comportamento capilar, somos mulheres insanas que insistem em tratar os cabelos com químicas danosas, usar secador em alta temperatura, recusar a hidratação compulsória dos fios que se querem crer dignos…

Segundo as campanhas publicitárias espalhadas pelas redes sociais e TVs, nossos cabelos se caracterizam fundamentalmente por serem rebeldes, indomáveis, armados, difíceis, indisciplinados e confrontadores. Não se rendem aos nossos desejos. O que é uma loucura em si, porque eles estão em nós. Fazem parte do que somos. Não são um ente externo a quem temos que temer. No entanto, segundo o mercado de cosméticos capilares, eles têm vontade própria. Estão cheinhos de desejo de partir pra cima, espigando-se em contornos terríveis, amorfos, espetados, de doer os olhos de quem os fitar. Nos fazem procurar aliados para conter seu avanço avassalador sobre nosso território de beleza que deveria ser, para felicidade geral da nação, controlado e intocável.

Ilustração: Bistra Masseva

Sob vários aspectos, os nossos cabelos parecem estar em zona de conflito. Para evitar trágicos desfechos, precisamos estar preparados para invasões, retiradas, batalhas, combates e identificação do adversário. Podem haver campos minados, talvez seja preciso montarmos trincheiras, preparar nossos combatentes e guarnecer as bases para que os soldados não esmoreçam.

De toda forma, essa guerra forjada a partir de razões inventadas (como me parecem ser todas elas, inclusive no mundo de pessoas e países reais), precisa acabar. Para o bem da nossa beleza e da nossa paz interior. Aceitemo-nos, pois, como somos. Ainda que vez por outra os fios insistam em sair do seu lugar pré-determinado por um general estético qualquer.

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Débora Garcia
3Devi
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Editora do https://medium.com/3devi. Sócia-diretora da Elektra Conteúdo. Tenta entender que mundo é esse e contribuir pra que a passagem por aqui valha a pena.