Calma querida, vai dar tudo certo

Daniela Kopsch
3Devi
Published in
3 min readJul 11, 2018
Ilustração: Brooke Smart

Sei que estou morta. Ninguém precisou me dizer, isso eu intui na mesma hora. A ausência da vida me alivia as costas como quem pousa uma mochila na cadeira. Foi a leveza repentina do peso que me alertou: eu estava absolutamente morta.

Mas continuo pensando. Sou um computador desligado para sempre da tomada e me resta com certeza a bateria intacta, só não sei por quanto tempo. Dou uma olhada ao redor. Onde eu esperava encontrar um campo de girassóis não tem nada.

Espera. Não é que eu não veja nada, na verdade eu vejo tudo e isso confunde a minha vista desacostumada. Como é que eu posso explicar? Posso ver Alice, minha filha, mas ela é uma visão estranha. Sua imagem é um borrão de camadas sobrepostas que me embaralham os olhos como um filme 3D sem óculos.

Se eu soubesse que viria para o além teria trazido meus óculos. Enfim.

Insisto em Alice, esse monstrinho disforme, porque é a melhor coisa que eu poderia ver. Tento encontrar seu rosto e com muito esforço ele salta para mim. Alice, querida. Está assistindo TV. Vão deixá-la ver TV pelo tempo que quiser, a pobrezinha sem mãe.

Dentre aquele emaranhado vivo eu reconheço Alice bebê. Está dormindo no berço de segunda mão que compramos para ela assim que eu descobri que estava grávida, aos quatro meses de gestação. Não compramos uma roupinha branca ou um sapatinho vermelho. No susto, nos amparamos no conforto de uma decisão prática: compramos um berço de segunda mão.

Alice é uma figura de muitas dimensões, uma combinação de imagens onde eu tenho que me concentrar com toda força se quiser enxergar ali alguma coisa. Talvez eu precise de treino ou de óculos ou de alguém para me guiar, só que aqui não existe nenhum outro morto além de mim.

Mergulho nas lembranças de Alice por um instante. Aperto os olhos até focar o que eu quero e é claro que eu quero reviver tudo, tudo, tudo. Faço isso e então eu chego novamente na ocasião em que Alice está sentada em frente à TV. Na mesa da sala, acumulam-se as comidas trazidas pelos amigos. Coisas que Paulo carinhosamente jogará no lixo em seguida. É o que vejo-o fazendo.

Titubeio agora. Volto para reviver Alice inteira? Sigo em frente? O medo de ver o que acontece a seguir me paralisa. A vida inteira preocupei-me com o futuro de Alice. Nem sei quantas noites passei em claro com esta questão central atormentando-me os pensamentos: o que será de minha filha. E agora que minha filha ficou sem mãe, o que será dela? O que foi dela?

Avanço, cautelosa.

Alice parece-me feliz em diversos momentos. No fim das contas, escolheu uma profissão que a distancia de mim e de seu pai, coisa que eu secretamente temia, mas também esperava. E casou-se, como disse que não faria jamais. Deu-me dois netos, outra grande surpresa. Envelheceu bonita. Exibia a cara que eu provavelmente teria se tivesse chegado àquela idade.

Um dia, ela morreu. Não pude deixar de derramar uma lágrima pela morte de minha filha, ainda que esta tenha sido apenas uma situação muito breve, quase irrelevante, se comparada à todos os momentos excelentes em que a vejo diante de mim. Nos piores dias, quando ela passa por algum sufoco, eu tento sussurrar em seu ouvido:

“Calma, querida. Vai dar tudo certo”.

--

--