Coisas?

Daniela Belmiro
3Devi
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3 min readMar 9, 2021
1979, eu sentada ao lado do berço dela. Antes.

Grande parte da minha vida nos últimos dois anos tem sido organizar, desapegar, dar destino a coisas que ficaram para trás ou que de algum jeito precisavam ficar.

2019. Uma casa inteira, minha, de móveis vendidos, objetos queridos que talvez já não façam sentido agora enquanto escrevo estas linhas embalados em plástico-bolha e lembranças e cuidado, fotos que puderam ser salvas dos cupins, livros que pareciam se multiplicar nas prateleiras e tiveram que virar uma única mala, esculturas que foram morar no fundo da lagoa, três ou quatro fogueiras para transmutar papéis antigos, um computador que acabou enterrado junto da árvore que eu gostava de chamar de minha no quintal.

2020. Outra casa inteira, dela, de móveis vendidos, objetos órfãos da sua dona tendo que descobrir destinos outros, roupas herdadas por mim e pelas sobrinhas junto com lembranças queridas, maquiagem (tanta maquiagem, tantos cremes!) que ficou por usar, anéis que vieram morar pra sempre na minha mão esquerda, uma fogueira transmutadora que eu prometi para os papéis restantes mas ainda não consegui acender (na Europa, entendam, eu tenho muito perto a consciência das velhas bruxas e por enquanto nenhum quintal onde fazer em paz esses feitiços de queimar e enterrar).

E agora, outra vez do lado de cá, é hora de cuidar do que ficou da minha irmã no apartamento da infância. Caixas de cartas recebidas, diplomas, certidões, camisetas de colégio que os amigos assinaram lá atrás. Álbuns de fotos, tantos, uma adolescência inteira que não acompanhei nada e descubro agora tão parecida com a minha, com todas. Amigas com as caras infantis que hoje vejo nos seus filhos pequenos correndo pelo condomínio, viagens, muitas e muitas mesas de bar. Aquelas fotografias de objetos do quarto ou de bichos que tirávamos na pressa de levar o filme para revelar. E mais outros álbuns que foram aparecendo pelo caminho também, tantos. Meus pais se casando quase crianças no Nordeste, o convite com o humor que eu adoro e o desenho da maçã mordida; meu pai criança com os primos fantasiados nas ladeiras cariocas de Santa Tereza; minha mãe criança com os irmãos no interior do Rio Grande do Sul, todos quase sempre sérios e com ar distante nos retratos. Minha filha mais velha pequena no colo da tia, a mais nova quando veio ao Rio pela primeira vez. Avós, bisavós, primos de graus variados, gente que eu tento sem sucesso encaixar em alguma memória familiar. E também, deixados por algum motivo no meio das fotos, a estatueta uma santa que não sei dizer qual embrulhada em panos de prato, talheres soltos de um faqueiro que já não existe, uma forma de vidro in-que-brá-vel para fazer pudim.

Em algum momento destes dois anos eu topei com o Museu das Coisas Banais. Enviei para um projeto deles fotos de um pato de borracha que era da minha irmã e da boneca de pano que comprei na feira de velharias em Lisboa. O pato que eu não sei se tinha nome mas gostei de chamar de Alfredo e a boneca que ganhou um bigode falso e a alcunha de Fada Portuguesa neste momento estão dentro das caixas que esperam pela próxima casa que vá ser minha em algum dos lados do mar. Nenhum dos dois me faz falta ou pareceu fazer sentido na mala que arrumei para passar dois meses no Rio em novembro passado, e eu já não sei bem o que é que faz falta ou sentido agora que os dois meses estão para virar cinco e ninguém pode dizer ao certo a data em que vou voltar.

A saudade que tenho tido é só dos bordados, e essa já virou bastidores novos e tecidos que estão lentamente ganhando impossibilidades em fio dourado e cogumelos de Alice, porque quando todas as coisas estiverem finalmente encaixotadas, ressignificadas ou esquecidas, talvez o que vá restar seja só uma sensação impalpável no fundo de alguma xícara de chá.

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Daniela Belmiro
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— — malabarista de vazios, carangueja inventora de asas, a moça que escreve também no @desdicionario, @peeping_dani e @imagina.gram