varal ou Natal, depende do recorte — Lisboa, 2019, foto minha

das escolhas

Daniela Belmiro
3Devi
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3 min readNov 18, 2019

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“Está sendo um começo de ano muito zoado”, Mari teclou numa das últimas conversas que tivemos (curioso como meu cérebro, empurrado para a dor de uma das acepções possíveis desse últimas conversas, derrapa como pode tentando se desviar para a outra). Na ocasião falávamos de coisas que agora, passado quase o ano todo, parecem ridiculamente banais, como dinheiro, a minha maré baixa de trabalho, a aporrinhação de ela estar “detida” no hospital sem que ninguém soubesse direito o diagnóstico e contrabandear pizza para dentro pelas mãos das enfermeiras com quem tinha feito amizade. Menos de dez dias depois dessa conversa, a Mari decidiu que não iria ficar pra ver o quão zoado 2019 de fato se provaria e saiu do calendário, do tempo, da vida. Para ela, de um jeito ou de outro, nada mais importa. Mas, na falta de certezas empíricas, cabe a quem fica — no calendário, no tempo, na vida — tecer uma ficção pessoal sobre a morte. Eu não tinha uma. Ali, no final de um abril de fato e cada vez mais zoado, o que mais me doeu foi não ter uma convicção a respeito do fim da vida que pudesse apresentar para as minhas meninas e que funcionasse como um alento maior do que meu sincero e chocado “não sei, ninguém sabe”. Apartada ainda do meu próprio luto, por meses inteiros eu fui só uma mãe achando por demais injusto que duas pessoas tão jovens tivessem que lidar com tantas perdas seguidas, eu fui só uma filha-mãe em choque ao pensar na dimensão da dor que minha mãe, meu pai, deviam estar sentindo com aquilo tudo. Zoado, de fato. Agora, enfim e profundamente fincada no meu próprio luto — e também ainda no calendário, no tempo, na vida — eu percebo (como talvez a casca que vai se formando aos poucos por cima de uma ferida, ou do buraco deixado pelo caco de vidro ao enfim ser extirpado da sola do seu pé esquerdo) que tenho ao menos uma certeza fraquinha, uma convicção que se eu não teimar em arrancar com a ponta da unha e fazer tudo sangrar de novo e copiosamente me diz: a minha irmã, em alguma instância, de algum jeito, decidiu que estava na hora de ir. Se isso foi para reencarnar de novo, virar alma, luz, átomo ou poeira de estrela é algo que ainda parece muito além do que pode abraçar a minha frágil casca de ferida ou certeza. (E isso de fato importa, afinal de contas?) Mas permanecer — no calendário, no tempo, na vida — implica também em achar um sentido na coisa toda, e eu tenho visto o meu sentido pessoal atrelado mais do que tudo a essa ideia da escolha. Lá atrás, do outro lado do mar e nos meses da ferida ainda bem aberta, houve numa preciosa sessão de Constelação Familiar a conversa sobre a necessidade de aceitar o que é. Aceitar e ainda assim escolher, seria possível? Esta semana, um filme bonitinho e besta desses de ver enroscada no sofá à noite e um filme bem foda na abertura badalada do festival de cinema da cidade me fizeram voltar e voltar a essa questão das escolhas, dos vieses possíveis. À questão de como escolher apesar — ou ao redor — daquilo que é, do que precisa ser aceito e ponto. No fim, acabo concluindo que na verdade o que escolho é o ponto de vista, o como (e que isso de alguma forma cria ou determina aquilo que é): as roupas coloridas no varal em vez de enfeites para um Natal que este ano mais do que qualquer outro eu nem sei se quero que chegue, os mergulhos arriscados em vez de seguir caminhos já prontos e confortáveis, a arte em vez de sucumbir à mudez da dor. Porque sim, na minha ainda um tanto frágil ficção pessoal, enquanto nós estivermos por aqui — no tempo, no calendário, na vida — lidando com esse mistério que é estar vivo, terá havido sempre e em alguma instância uma decisão inicial da qual nascerão (por mais banais ou zoados que sejam), os acontecimentos com que acabaremos nos deparando.

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Daniela Belmiro
3Devi
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— — malabarista de vazios, carangueja inventora de asas, a moça que escreve também no @desdicionario, @peeping_dani e @imagina.gram