Deep SUS — As existências que povoam um sistema de saúde

Débora Garcia
3Devi

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Vinte e cinco de dezembro de 2021. Dia ensolarado, com pouca umidade. Um menu delicioso se anuncia pelos aromas vindos da cozinha da casa de madeira. Lombo sendo assado em sua melhor forma e em sua melhor medida. Mamãe, nos seus 88 anos de vida, havia levantado cedo, se arrumado toda e estava em pleno preparo do seu prato-vitrine. Subo pra dar um "oi" e reparo que sua fala está estranha, entrecortada, parecendo enferrujada. Acho esquisito. Ela sempre foi aguda e certeira nos enunciados da sua prosa. Sinto que algo está diferente. Ela parece cansada, ofegante. E as frases vão ficando cada vez mais ininteligíveis, truncadas. Noto que algo muito errado está acontecendo. Sei que tenho que levá-la o mais rápido possível para um emergência e imagino algum problema neurológico em curso, talvez um derrame. Meu pré-diagnóstico amador estava certo. Minha mãe estava mesmo tendo um derrame, confirmado pelos exames da unidade de saúde para onde a levei sem nem pestanejar, apesar da recusa imediata dela em aceitar que algo muito errado estava acontecendo.

O que existe em comum. Ou… Aquilo que nos toca

A experiência que nossa família tem com o SUS e os serviços das unidades de saúde do entorno é excelente. Quero deixar isso bem claro antes de falar do motivo real desse texto, que é trazer um pouco da experiência de internação e de compartilhamento de quarto com outras pessoas enfermas, muitas em situações extremas de saúde ou de condições de vida, ficando frente a frente com suas dores, suas mazelas, seus martírios.

É disso que quero falar aqui e do quanto isso me tocou, sendo acompanhante de minha mãe num quarto coletivo por quase uma semana.

Acolhendo o sangue e o susto

Acho que nunca tinha visto alguém esfaqueado. Pois essa semana por lá acabou com essa minha lacuna de experiências pessoais. O corredor da enfermaria e dos quartos desemboca justamente numa sala que recebe a ambulância, com todos os casos extremos e urgentes da região. O automóvel traz pacientes em estado crítico, colocando todo o staff de prontidão, centralizando seu foco do atendimento a cada novo "B.O" que pode beirar a morte de alguém.

Olho pro chão e me surpreendo com a cor avermelhada. É que o sangue se espalha rápido e o cheiro é de ferro. Tudo fica escorregadio, inclusive os sentimentos de quem está por perto e testemunha, mesmo sem querer, a hemorragia em curso. Nas entrelinhas, nos papos de corredor, fico sabendo que foi um crime passional. Fecho os olhos e rogo pela incerta melhora daquele homem que agoniza a metros de distância. É o que me resta, além da perplexidade com a alma humana e seus atos extremados.

No mesmo dia vejo um homem numa cadeira de rodas com tantos machucados profundos pelo corpo que tenho micro-segundos de vertigem. Me seguro, porque não quero ser mais uma das pessoas atendidas no local. Eles estão lotados, não precisam de um "piti" fora de hora de uma acompanhante. Esse homem, ainda em condições de falar, diz que se machucou ao pular de um trampolim, numa piscina de um clube. Final de ano, muita manguaça na cabeça — como o próprio reconhece — e um punhado de amigos que notam que ele está seriamente machucado.

Porém, o que fazem com o "amigo" beira o descaso, a falta de cuidado. Levam-no para o Hospital e de lá seguem para suas casas, ainda torpes de álcool. Uma sequência de atos equivocados e perigosos. Nem um deles ficou pra ver sequer se o companheiro de farra sairia de lá vivo. Mesmo com muita dor, ele consegue, curiosamente, fazer campanha prévia para sua futura — e imaginária — eleição como vereador local, dizendo que vai fazer leis para proteger as piscinas públicas e de clubes e acelerar o envio de ambulâncias. Certamente ter sentido algo na própria pele ajudou dar toda uma nova noção de prioridade.

Picada de formiga, picada de seringa, solavancos da vida

No quarto onde minha mãe está, com outros sete pacientes, há uma criança. O corpo todo em brasa por ter desenvolvido uma alergia à picada de formigas. O pequenino pisou em cheio num monte de terra "premiado" com os insetos no quintal de sua casa. E seu corpo reagiu produzindo um prurido generalizado, deixando-o febril e com muito sono. Em vários momentos seu pai se ausenta do quarto e a criança berra, para desespero de quem está em volta e tenta encontrar alguém de sua família para acudir. É que as enfermeiras têm dezenas e dezenas de pacientes com as mais variadas mazelas para atender. Se eu tivesse que dizer o que é prioridade naquele hospital, teria muita dificuldade. E olha que foco nunca foi exatamente um problema pra mim. Admiro esses profissionais da saúde como quem admira uma figura mítica de super-herói. São imprescindíveis de tal forma que deveriam figurar na lista dos maiores salários da nação.

O ar que vem de fora…

Um outro homem mal acomodado numa cadeira de hospital, tem crise respiratória e equilibra o próprio cilindro de oxigênio. Segura com ímpeto a possibilidade concreta de se manter vivo. Com suas próprias mãos.

Apesar do derrame, mamãe passa bem e vai retomando com lentidão os movimentos e a fala. Por curvas do destino, há um homem no quarto que consegue arrancar dela gargalhadas, que ela esconde por detrás da sua mão que "funciona" pós-derrame. É que ele tem surtos psicóticos — pobre alma — e mania de perseguição. Acha que todos ali estão determinados a transformar sua vida num inferno. Mesmo recebendo medicação intravenosa, ele levanta da cadeira de tempos em tempos, ameaçando arrancar tudo da veia e fugir dali.

Ao seu lado, vejo sua mulher, exaurida por tentar demovê-lo o tempo todo da ideia. Frequentemente ela parece deixá-lo "escapar", para logo depois ser trazido de volta por algum enfermeiro. Olhando o semblante dela a cada retorno do marido em surto, fico na dúvida se ela está feliz ou desesperada em vê-lo de novo no "leito". Em breve ele tentará mais uma das suas artimanhas para sair de seu inferno pessoal. (E em algum momento ele consegue. No dia seguinte tenho a notícia de que de finalmente escapou, num dos breves instantes que sua mulher foi à lanchonete da rua, deixando um tanto de sangue escorrer por todo o quarto). Me pergunto onde ele estará agora. Terá sobrevivido? Comentam à boca pequena que ele sofre de crises de ansiedade e estava se tratando de uma pneumonia pesada. Claro que sua máscara anti-Covid estava na testa boa parte do tempo. O ar na enfermaria pesa, literalmente.

A entrada e saída de novos pacientes é frenética. Num dos cantos do quarto, um outro senhorzinho parece afundar em silêncio. Quase um sono profundo, só que de olhos abertos. As enfermeiras chegam e sempre o elogiam, dizendo que "é bonzinho". O que será que passa por sua cabeça cada vez que ouve um comentário condescendente e algo elogioso desses? Terá sido ele sempre assim, tão obediente e quieto, quase em estado vegetativo? Estará quimicamente calado ou foi, talvez, o peso da vida que pesou na sua fala?

Abandonos e abandonos

Um outro paciente está de alta. Mas não aparece ninguém para buscá-lo e enquanto isso, continua a ocupar uma das cadeiras-leito da unidade de saúde. Trata-se de um absurdo, de um descaso. Mas fico sabendo que existe um paciente por lá há mais de duas semanas, igualmente abandonado. Ambos condenados em vida ao descaso de seus familiares. Pelo visto, é uma situação bastante normal no hospital. Algumas pessoas entram ali meio à mercê da própria sorte. Durante ou depois da internação. Uma roleta russa de futuros a serem escritos.

A Casa que cura está agitada

Mais um dia passa e vou pra casa buscar trocas de roupa para minha mãe e quando retorno tenho que passar por vários policiais que trazem um homem baleado. Entreouço no corredor uma voz sôfrega, quase num gemido: "moça, essa parte aqui da gente é a clavícula? A minha tá doendo muito. Vem me ajudar, pelo amor de Deus". Sigo até o quarto e descubro que há uma recém nascida de nome pomposo: "Maya Lorrany". Está de alta. Só posso agradecer aos céus.

Algemas e êxtase

O que mais quero ouvir naquele local é que há mais pacientes "de alta". Sobretudo minha mãe. Na cama imediatamente ao lado dela, uma senhora com Alzheimer delira e dá sorrisos e risadinhas pra si mesma, quase contagiantes. Estará ela vendo anjos ou demônios disfarçados? Poderão eles ajudá-la em sua agonia travestida de êxtase?

No corredor, outro policial passa. Agora com um homem algemado. Uma cena que eu só tinha tido contato pelos cinemas e TV. Mas está ali, diante dos meus olhos. É um jovem franzino e negro, engrossando as estatísticas de violência no país. O deep SUS que tive contato é também um retrato fiel e adoecido de uma sociedade que se debate no leito em busca de uma nesga de vida, de redenção, de esperança.

A casa pessoal uma hora cai

Vou absorvendo tudo, lidando com tudo, resolvendo tudo, descansando no carro sempre que dá, falando com os familiares pra buscar alento. Mas num dado momento, minha barra pessoal pesa muito, fica densa e escura, a ponto de ter dificuldade em respirar e precisar correr da enfermaria. Pânico? Talvez. Achei que estava sendo forte, segurando a onda. Mas ao encontrar uma mulher viciada em crack sendo internada, um fiapo de pessoa, no chão do quarto em posição fetal, falando com Deus, eu pirei.

Minha mãe se assustou com meu susto. Pediu para eu respirar e sair do local. Tive uma reação em cadeia que espero não ter mais nessa encarnação. Antes de se deitar no chão, a mulher caminhou na minha direção com os olhos vitrificados, me encarou de frente, como se estivesse vindo buscar de mim a minha própria vida. Me senti sugada, drenada, entrando num redemoinho de emoções que não era exatamente meu e que — visivelmente — não dei conta.

Em prantos, liguei pra minha irmã que me trouxe rapidamente à realidade, dizendo que o foco naquele momento era a minha mãe e que precisava ser forte e voltar para perto dela. Concordei, mesmo entre soluços. Chorei incontáveis vezes no banheiro do andar, balançando o corpo como se quisesse fugir daquela agonia, na minha reencenação mal acabada de "Rain Man". Naquela circunstância, consegui ser profundamente empática com o paciente surtado que fugiu do local sem nem olhar pra trás. Às vezes o que nos resta é a fuga.

Fluidos por toda parte: sangue, lágrimas e urina

Mais uma noite de entra e sai de adoentados acontece. No dia seguinte, um novo paciente também com AVC recente, chega no quarto. Ele está bom o suficiente para tentar ir ao banheiro sozinho, mas como está sem acompanhante, alguém olha pra mim e diz que tenho que ajudá-lo a ir para o banheiro. Lá vou eu, não exatamente por vontade própria nem por ser uma alma caridosa, ajudando-o a caminhar lentamente. Me sinto mesquinha por dentro, mas é o que tem pra hoje. A gente vai até aonde aguenta.

Porém, ele é quem não aguenta chegar próximo ao vaso e libera sua urina no chão, nas minhas pernas, nas próprias pernas. Sua cara de vergonha e humilhação é comovente. Mal consegue balbuciar algum pedido de desculpas. É isso, não deu pra controlar. Tenho vontade de abraçá-lo e dizer que está tudo bem. Mas todos sabemos que não está. Eu me vejo num momento de nojo e compaixão misturados num só respiro. É a vida, muitos diriam. A dura vida.

Nesses dias de agonia, me refugio numa sorveteria próxima ao local, arrancando fios de cabelo. Mania horrível que tenho há anos e que piora em situações de stress. É o que tem pra hoje. Tufo de cabelos arrancados no chão e um sorvete delicioso com cobertura de chocolate entrando pela minha boca. Contradições e paradoxos? Temos.

"Deep SUS" é a realidade aumentada da vida. Imersão na experiência de humanidade, nível hard.

Minha mãe vai melhorando a cada dia. Recebe alta, para minha felicidade. Antes de sairmos, vemos uma mulher recém agredida pelo namorado. Ele está lá, algemado. Contudo, num curto espaço de tempo, vejo os dois, lado a lado, se beijando, de forma carinhosa e cúmplice. E tudo vai se encaixando como um quadrado num círculo, como num filme urgente de Almodóvar. Parece improvável, mas pra isso existem martelinhos de esculpir realidades forjadas.

É o "Deep SUS" novamente mostrando suas garras e pedindo ajuda. Poderia ser "Deep Brasil". Ou, simplesmente, "Deep Humanos". É o país e a vida desnudados, revelando suas dores. É a humanidade em desencanto e encanto. Tudo junto misturado. Dando náusea e gerando compaixão na mesma medida.

Eu não sei a quem um texto dessa crueza e tristeza poderá interessar. Só sei que precisava tirar essas coisas todas de dentro de mim, para ressignificá-las, dando concretude a essas dores e a esse espanto. E é também uma forma de expressar gratidão por estar viva, mesmo que por meio de palavras escritas. Pra mim, escrever é antes de mais nada um ato pró-vida, assim como é o SUS, em toda a sua inteireza, capilaridade, força e relevância.

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Débora Garcia
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Editora do https://medium.com/3devi. Sócia-diretora da Elektra Conteúdo. Tenta entender que mundo é esse e contribuir pra que a passagem por aqui valha a pena.