Débora Garcia
3Devi
Published in
12 min readApr 28, 2023

--

Equipe da Serpente: Débora Garcia (direção), Tota Paiva (direção de fotografia), Maurício Maia (áudio e assistência)

Dias Yanomamis, a partida de minha mãe e uma jornada auto-regenerativa, transmutante e carregada de Pihi Wahi

Trinta dias exatos entre minha ida para Roraima e hoje. Nas vésperas da viagem, brinquei com uma amiga que estava para ultrapassar um portal quântico. E começo a achar que não foi só uma expressão pré-viagem.

Antes de trazer algumas rápidas impressões sobre essa jornada, quero fazer um disclaimer: sou uma absoluta entusiasta do universo indígena, porém não sou especialista no tema e nem me atreveria a ser. Falta-me lugar de fala, apesar de exames de DNA recentes confirmarem que 12% do sangue que corre em minhas veias têm raiz dos povos da floresta.

De qualquer forma, nesse universo com suas leis e belezas próprias, me contento em ser uma admiradora encantada pelo tambor do caminho vermelho, olhando tudo com olhos de inquietação e aprendizagem, bem aqui desse casulo cósmico em que habito.

Eu, Tota Paiva na direção de fotografia, Maurício Maia na assistência técnica e no áudio e o incansável enfermeiro Gracione ao fundo — CASAI, Casa de Saúde Indígena, Boa Vista-RR

Foram dez dias num estado tão remoto e distante do meu centrinho umbilical carioca que sempre que me referia ao dia da volta para casa, cometia um ato falho e dizia: "voltar para o Brasil", como se estivesse em terra estrangeira. E, de certa forma, estava. Estrangeira pra mim, porém, uma terra mais "brasileira" que aquela possivelmente não exista.

A missão era filmar um documentário falando da emergência em saúde Yanomami que, de tão grave, passou a ser de conhecimento e preocupação mundiais. Desnutrição extrema, mortes por doenças evitáveis, crianças e idosos debilitados e águas tingidas de mercúrio, têm agravado ainda mais a saúde de um território desassistido, longínquo e vulnerável. E todo esse trabalho foi feito sob encomenda do Canal Saúde da Fiocruz, com realização da produtora Plano Geral Filmes para a qual colaboro com orgulho há quase cinco anos. Um privilégio poder contar essas histórias para uma instituição tão séria e admirável quanto necessária para o país, como a Fiocruz.

Uma espécie de chegança

Entre a escaldante capital Boa Vista e o Território Yanomami Surucucu, um voo numa pequena aeronave com duração de quase uma hora e meia seria necessário, na impossibilidade de acessar aquela parte de solo indígena a não ser pelos ares.

Lá do alto, é possível enxergar áreas de cerrado nos arredores de Boa Vista e já com alguns minutos de voo, acompanhar todas as reentrâncias do rio Melo Nunes, assim como o topo da floresta suprema, densa, complexa. É tão acachapante sobrevoar a região que em vários momentos eu não consegui segurar o choro, que vinha sem que eu tivesse consciência do motivo, desaguando no rosto mesmo.

Passados uns quarenta minutos de voo, tristemente se avistava do alto os clarões na mata com as atividades predatórias do garimpo ilegal. E, vez por outra, uma chapona encravada na selva, imponente, dando abrigo para alguma aldeia Yanomami.

Chapona yanomami na T.I Surucucu-RR

Mesmo com sete diferentes imunizantes já circulando pelo meu corpo (febre amarela, difteria, tétano, polio, hepatite A e B, antirrábica) e alguns avisos aterrorizantes do infectologista da Fiocruz sobre o perigo do contato com morcegos, a presença de cobras nos leitos dos rios, mosquitos implacáveis e transmissores de Oncocercose e outras moléstias, risco de animais peçonhentos dentro de sapatos e uma paranoia gigante com tudo que fôssemos consumir, desde alimentos, mas sobretudo água contaminada, eu me perguntava o que teria me convencido a participar dessa viagem, sabendo que a ideia partiu de mim, envolta num mar de empolgação, inclusive!

Nem mesmo o adoecimento rápido de mamãe por conta das sequelas de um AVC, já anunciando que lhe restariam poucas semanas de vida, foi capaz de me fazer mudar de ideia e desistir da viagem. Talvez até tenha me "empurrado" para a experiência como maneira de aplacar a minha insidiosa dor. Seu falecimento veio a acontecer um dia antes de voarmos para o coração da floresta. Tenho a sensação que ela deixou o corpo doente lá em São Paulo só pra me acompanhar em espírito e poder cruzar essa espécie de umbral duplo comigo. Ela, no céu. Eu, em terras yanomamis. Sua bênção, minha mãe. Te sinto e te honro daqui, sempre.

O valor das coisas

Durante esse meu périplo pessoal e intransferível por Roraima, fui fazendo rápidas notas no celular na tentativa de registrar algumas das situações vividas por lá, alargando meus horizontes de compreensão do mundo.

Numa das situações, já no Polo Surucucu, quando alguns dos indígenas daquela comunidade trouxeram para nosso alojamento artesanatos belíssimos para troca, vi que o valor das coisas está intimamente ligado à necessidade do momento. Não há um valor em si. Há um valor dentro de um contexto. Uma lição para fundir a cabeça de qualquer economista de plantão. Por exemplo, meu álcool em gel com cheirinho de Giovanna Baby parecia ser muito valioso para que um dos jovens Yanomami pudesse ofertá-lo como presente para alguma moça da aldeia. Soube disso porque um expedicionário já próximo o suficiente daquele grupo para entender seus códigos me contou. Homem cheiroso + regalos em mãos = chances de namoro aumentadas!

Eles também traziam para nós várias colares feitos com pequeníssimas sementes da floresta. Os mais coloridos acabavam sendo também os mais cobiçados por nós. As peças vistosas eram também mais trabalhosas. Um colar colorido, por exemplo, leva mais de dois dias para ser confeccionado porque as sementinhas não são tão fáceis de se encontrar. Assim como a cestaria mais elaborada, com materiais de texturas diferentes. Portanto, deveríamos nos esforçar em oferecer mais do que tivéssemos para conseguirmos os ornamentos ou utensílios. Talvez dois quilos de Milharina fossem suficientes para efetivar a troca. Ou um sabonete cheiroso, de certo.

Infância coletiva

Os Yanomamis daquela região onde estávamos não gostam de ser filmados, principalmente se a câmera apontar para mulheres e crianças. Para eles, quando uma pessoa morre, seus pertences e tudo que for ligado àquele ente precisa ser esquecido ou descartado. Senão não haverá paz para aquela alma no outro plano. Por esse motivo, a tarefa de registro em imagens não era impossível, mas tinha que ser amplamente negociada com a comunidade. Não bastaria um cacique dar uma ordem. Seria preciso consenso. E vimos essa espécie de assembleia acontecer para que pudéssemos registrar algumas imagens da chapona (casa comunitária), do igarapé, do cotidiano da aldeia e de algumas pessoas da comunidade.

Adoro relembrar que, aprendendo na pele, nosso operador de áudio levou um tapa bem dado e ardido de uma mulher Yanomami quando resolveu (por sugestão minha, preciso confessar), tirar uma foto sem negociação prévia. Lição devidamente aprendida e uma história pra levar na bagagem!

Durante as gravações, pensamos que seria interessante também registrar imagens da pista de pouso dos aviões, bem próxima ao Polo Surucucu. Fomos para lá e avistamos várias mulheres com crianças no colo, atravessando a pista inúmeras vezes. Elas ficam ali por um tempo, aguardando a próxima aeronave na esperança de receber itens alimentícios de interesse e alguma outra possibilidade de troca e interação.

Ao longe, avistamos uma pequena criança sozinha, chorando, na beirada da pista, perto da mata. Um olhar urbano logo entenderia aquela cena como sendo a de uma criança sem proteção, sozinha, precisando de algum adulto por perto. Mas logo avistamos outras tantas crianças, chegando, carregando a pequena no colo e trazendo pra perto do grupo. O choro longo não foi motivo de grandes apreensões, fazia parte de simplesmente ser um pequeno Yanomami e estar expressando algum tipo de descontentamento. Percebi que a própria criança também foi capaz de se acalmar e procurar alguma coisa para se distrair.

Um interessante ponto de vista que vale ser compartilhado: dentro do sistema de funcionamento das comunidades Yanomami, se uma criança consegue crescer o suficiente para alcançar o que no nosso sistema contaríamos como uns 4 anos de idade, já pode se cuidar sozinha e ajudar a cuidar de seus irmãos, dando suporte para toda a aldeia. E isso é uma conquista e tanto. Outro dado lindo: as mães Yanomamis amamentam o tempo todo. Se tem criança no colo, invariavelmente ela estará também mamando em algum momento. Livre demanda, diríamos nós as mulheres urbanas.

Quanto à comida, apesar de muita ajuda humanitária chegar em vários dos voos diários, sendo um desses itens as latinhas de sardinha, o que eles gostam mesmo de comer é mandioca, peixe dos igarapés, muita banana e o porco do mato, debulhado por todos da comunidade. Com as cestas básicas que trazem também açúcar, um problema futuro pode se instalar nas aldeias. Os dentes dos Yanomamis são normalmente muito saudáveis e bem cuidados, sem grandes problemas com cáries, devido à sua alimentação. Mas com a introdução do açúcar branco na dieta, os profissionais de saúde relatam que os casos de cáries aumentaram muito.

Qualquer "novidade" que é colocada naquele contexto pode trazer severas consequências, por mais bem intencionados que estejamos. Outro problema, disse um dos médicos, é que o açúcar dá a impressão de ganho de peso para as crianças desnutridas, mas na verdade quem está se deliciando com a caloria são os vermes, responsáveis por boa parte do agravamento das doenças da região. Enfim, mesmo carregados de boas intenções e atos genuínos de ajuda humanitária, é importante entender os usos, contextos e combinados de cada região, de cada aldeia, de cada povo.

Abraços, sorrisos, desconfiança e afagos

Uma das coisas que vou carregar no coração pra sempre é o abraço estilo carrapatinho que as crianças Yanomami são capazes de nos oferecer. Elas agarram em nossos pescoços e lá ficam por um bom tempo, não importa o que façamos ou para onde andemos. Como são pequeninas e bem leves, podemos ficar naquele aconchego por muito tempo, enquanto elas liberam também suas risadinhas animadas em nossos ouvidos. Uma delícia! Não dá vontade de largar. Mesmo sabendo que uma delas, Francine, que grudou em mim no primeiro contato visual, estava bem quentinha e não era do sol escaldante, mas porque estava com febre e tinha testado positivo para Covid. Acho que minha imunidade estava tão alta e meu desejo de estar entre eles era tamanho que fiquei de boas, sem maiores consequências!

Minha tentativa de diálogo com a pequena Francine foi entremeada por alguns "tutihi mahi" que eu repetia pra tudo que me dissessem. Se não me falha a memória, significa "não sei". Então elas falavam um tanto de coisa pra mim na língua Yanomami, apontavam para o que eu carregava e eu simplesmente olhava pra elas, fazia sinal de "não sei" com as mãos e disparava: "tutihi mahi". Risada geral. Talvez minha pronúncia estivesse ruim? "Não sei/tutihi mahi"!

Lá em Surucucu ficamos numa barraca incrível montada pelo pessoal da ONG Expedicionários da Saúde. Um luxo no meio da selva, com janelinha e tudo. Quando parávamos pra arrumar os equipamentos ou pra dar uma fugida do calor, percebíamos que vários Yanomamis estavam nos observando atentamente das tais janelinhas da barraca. Num misto de curiosidade e acompanhamento minucioso dos nossos atos, imagino.

Embora todos tenham sido amistosos conosco, não dá pra ignorar o fato de que não nos conheciam, não sabiam exatamente o que estávamos fazendo ali e ficavam à espreita por toda parte. Eu ficava tentando decodificar as expressões deles, mas volta e meia me perdia na "leitura", achando que era uma mistura de estranhamento, fascínio e indiferença, tudo ao mesmo tempo agora.

Algo que eles fazem com frequência é afiar instrumentos de lança, construir armas de caça, usar com muita destreza o facão e manusear pedras de vários tamanhos. Até as crianças têm como brincadeira frequente atirar pedras umas nas outras. Eu ficava sempre de olho pra ver se nenhum desses pedregulhos atingiria uma das nossas câmeras.

De qualquer forma, fiquei pensando que se eles decidissem pela nossa "saída" do território, por qualquer motivo que fosse, não seria nem um pouco difícil nos "convencer" a partir em disparada.

A contagem do tempo

Quando comparada com o nosso sistema de calendário gregoriano, a medição do tempo é algo "impreciso" entre os Yanomami. É difícil saber a idade deles, são aproximações, até pelos ciclos naturais: conseguir andar sozinho, chegada da menstruação, gravidez, envelhecimento, quando os idosos viram estorvo para comunidade e muitas vezes se embrenham no mato para morrer sozinhos. De qualquer forma é mais fácil saber em que fase da vida se encontram e se são produtivos, do que dizer se têm 40 ou 50 anos. Imagina só o trabalho das equipes médicas na hora de preencher prontuários e alimentar estatísticas para tomadas de decisão na gestão pública? Haja predição, arredondamento e estimativas.

Ainda sobre o tempo Yanomami, quando recebi de presente o livro "Protocolo de Consulta dos Povos Yanomami e Ye'Kwana" fiquei maravilhada com um dos capítulos que diz claramente: "é preciso tempo suficiente para uma boa discussão". Está no protocolo que todas as reuniões com o governo não-indígena precisam ter tempo suficiente para garantir um bom entendimento. E por "tempo suficiente", entende-se algo definido pelos Yanomami e não pelo governo. E deixam claro também que "representantes do governo devem vir preparados para dormir na comunidade e comer da comida indígena pelo tempo necessário para cada reunião de consulta". Aprendi muito disso com a liderança do Junior Yanomami, jovem ativista incansável na defesa de seu povo e também Presidente do Condisi YY — Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami e Ye'Kwana.

As reuniões precisam também garantir tempo para tradução de tudo que é dito nas diversas línguas faladas no T.I Yanomami. E eles avisam: "os não-indígenas precisam ter paciência e não podem nos pressionar para acelerar o processo de decisão". Eu simplesmente amei esse livro em cada linha escrita. Não consigo vislumbrar algo mais pós-moderno, pós-capitalista e disruptivo que essa proposição declarada por eles em seu protocolo político.

Para o quê se dá nome

Na tentativa de conversar com alguns deles, me deparei com nomes como Sônia, Davi, Ingrid, Joana, Francine, Marcos… E descobri que em geral são nomes-homenagem a alguém que significou algo importante pra eles, assim como também são comuns nomes de fenômenos da natureza, para que lembrem da importância da terra em que habitam.

Bem na hora do nosso voo de volta à Boa Vista, em meio a uma última negociação de troca por um colar colorido, um deles perguntou meu nome. Ele repetiu cuidadosamente e o anfitrião da ONG comentou: a próxima indiazinha que nascer já tem nome certo: Débora. Olhos de novo marejados. Eita gente pra me fazer chorar. Um dia ainda volto lá pra carregar no colo a minha pequena xará!

As peles de cobra e o sonho do escorpião

Já de volta em Boa Vista, pra fechar nossa experiência etnográfica com chave de Jenipapo (porque de ouro não quero nem o cheiro) nosso diretor de fotografia sugeriu que fizéssemos pinturas corporais com padrões indígenas e para isso contactamos o artista indígena Makdones, representante da etnia Macuxi. Eu que tinha falado RorÁima durante toda a viagem, bem na frente do Dones disparo, sem querer, um RorÃima, levando um esporro daqueles. Para os incautos: nunca, mas nunca mesmo diga "Rorãima", ok?? É praticamente uma ofensa.

Esporro devidamente recebido, vou notando os padrões dos desenhos nos nossos braços e descubro que compõem uma espécie de trindade ofídica: uma Sucuri (euzinha) uma Jararaca (Maurício) e uma Jiboia (Tota)! Praticamente uma Liga da Justiça serpenteada e bela, tingida pelo Jenipapo. Achei que era um sinal. Sempre são!

Naquela mesma noite, eu tive um sonho com um escorpião relativamente pequeno, porém muito venenoso, que entrava em meu quarto. E eu nem pestanejava: com uma faca afiada, cortava sua cauda e interrompia seu poder, num golpe certeiro digno de uma heroína de história em quadrinhos. Dones, ao saber do sonho no dia seguinte, interpretou assim: que o escorpião representaria as pessoas que têm poder e o utilizam pra fazer o mal para os povos indígenas. E que o meu ato de combater o escorpião significava que sou agora uma aliada deles na luta por sua sobrevivência. Ele não poderia estar mais certo, penso eu, daqui desse espírito transmutado e em vias de regeneração! E lidando com a saudade daquelas terras, daquele povo e da minha mãe, digo com peito aberto: "Pihi Wahi"!

Gostou desse texto? Clique em quantos aplausos — eles vão de 1 à 50 — você acha que ele merece e deixe seu comentário!

--

--

Débora Garcia
3Devi
Editor for

Editora do https://medium.com/3devi. Sócia-diretora da Elektra Conteúdo. Tenta entender que mundo é esse e contribuir pra que a passagem por aqui valha a pena.