um arco-íris de notas esparsas, foto minha

do caderno que mora na bolsa

Daniela Belmiro
3Devi

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Penso que a lida com os restos internos poderia ter mais da destreza automática que me flagro encarnando quando vou descartar o lixo: plástico, papel, vidro, todos nos seus cantos próprios, a lista que foi virgianamente pregada na parede da cozinha e lá continua, a cada dia da semana descer para a caçamba só o que lhe é devido e deixar levar. Poderia, podia, isso a depender do lado do mar onde se fincam as raízes do seu português. Daqui me apetece cada vez mais o sotaque, percebi ontem. Sim, vou cedendo aos poucos à melodia da língua que é a mesma sendo outra, aos “os” muito abertos e à profusão carinhosa de diminutivos que nunca é abalada pelo fato de o gostar poder ser imenso, como são imensas — e consternadas — as desculpas por um simples esbarrão no escuro da casa noturna. Vou me habituando ao ritmo outro, aos relógios de rua sempre apagados ou rigorosamente fora do horário, ao fato de os portugueses parecerem saber por instinto ou mais larga experiência neste mundo que, afinal de contas, nada é pra já. Eu uma vez li que a água que desce pelo ralo gira ao contrário no outro hemifério, aqui há também o fato de que estou do lado oposto do mar — e o tempo, vai ver, descobriu por isso mesmo um jeito diferente de passar. O choque entre a torrente de notícias duras que não param e a cidade onde a pedida da noite pode ser ir a um debate sobre o direito ao prazer inunda de um surrealismo meio London London os meus sentidos ainda turvos da chegada. Sim, você e eu e a moça que se preocupou em fechar a mão ao redor da chave de casa deixando a ponta mais aguda para fora antes de descer do autocarro da madrugada sabemos que não há país seguro que seja seguro o suficiente para uma mulher, mas o que eu posso dizer até aqui é que I came around to say yes, and I say.

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Daniela Belmiro
3Devi

— — malabarista de vazios, carangueja inventora de asas, a moça que escreve também no @desdicionario, @peeping_dani e @imagina.gram