Ilustração: Adrian Fernandez

Há sempre uma janela

Débora Garcia
3Devi
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6 min readMar 12, 2024

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Durante uma recente viagem de trabalho para Visconde de Mauá, eu e Carlinha, produtora da equipe, dividimos um quarto numa pousada bem acolhedora da região, na beirinha do Rio Preto.

Depois de três horas na Dutra, chegamos famintos e também um tanto amassados do cansaço da viagem. E já nos esperava a primeira gravação do dia com a nossa personagem cientista. Portanto, estar devidamente instalados e prontos pra jornada era bastante desejável.

Nos dirigimos para o que seria nosso quarto-chalé da pousada. O espaço era bem amplo, retangular e com uma arquitetura um tanto quanto peculiar. Logo na entrada dava pra ver uma pequena cozinha, uma geladeira e depois um degrau que nos levava para uma espécie de palco, num nível ligeiramente elevado do dormitório onde estavam duas camas: uma de casal e outra de solteiro. Havia também uma pequena lareira à esquerda, típica daquela região que tem temperaturas bem mais baixas que as do Rio. E até esse ponto da história, estava tudo dentro dos conformes.

Isso porque logo de cara… não encontramos o banheiro. Olhamos o quarto todo (juro!) e não vimos nem sinal do esperado toalete. E, claro, achamos muito estranho que tivéssemos que sair do quarto todas as vezes em que precisássemos tomar banho ou fazermos nossas necessidades. Não faria o menor sentido. E antes de procurarmos alguém da pousada pra falar sobre o assunto, ainda insistimos na busca pelo sanitário de um jeitinho bem sui generis que nos ocorreu: batendo com as mãos em todas as paredes do recinto, meio que buscando algum tipo de porta falsa ou improvisada que não tivéssemos visto. É importante que se diga que a área elevada do quarto era toda rodeada por paredes de tijolo à vista e um tapume de madeira bem atrás da cabeceira das camas, parecendo tampar a janela original do espaço. Muito sugestivo, portanto, de uma passagem secreta — como uma mente criativa (ou neurótica!) seria capaz de vislumbrar.

Após insistirmos nessa primeira busca tátil e visual — um tanto patética — do desaparecido banheiro, já quase nos contentando com sua ausência permanente, me ocorreu que talvez ficasse do lado de fora do quarto, tipo um “puxadinho de laje”. Tive a “certeza” disso ao olhar as chaves na fechadura da porta de entrada e notar que eram diferentes uma da outra. Confirmando minha tese de que o banheiro era, sem sombra de dúvidas, “lá fora”. Saí do cômodo e avistei rapidamente uma extensão lateral do chalé com uma pequena porta, me dando a certeza que estava ali o nosso desejado W.C.

E… para minha decepção… necas de pitibiriba… Era só um depósito de ferramentas. E minha mente fértil logo começou a pensar em um filme de terror protagonizado por uma ingênua visitante chegando numa pacata cidade de interior, saindo do seu quarto à noite, enfrentando uma atmosfera coberta por neblina, buscando por um banheiro até que… é abordada por um psicopata que está à procura de sua vítima e usa os instrumentos cortantes mais próximos para fazer aquela matança sanguinolenta acontecer..

Sem sorte com a busca do lado de fora do quarto, minha roommate foi até a recepção pra entender se tínhamos mesmo sido brindadas com um quarto sem banheiro. E a resposta imediata foi: “a senhora abriu a porta de entrada totalmente? Se fez isso, então cobriu a porta do banheiro que fica logo na entrada, do lado esquerdo do quarto”.

Bingo, achamos finalmente o banheiro e ficamos muito felizes porque no nosso entendimento, aquele era também o único local do quarto todo que… tinha uma janela. Pois é, não conseguimos também, em nossa busca incessante por partes imprescindíveis do quarto, avistar um único vão naquele paredão de tijolinhos seguido por um tapume de madeira de gosto duvidoso, tendo uma sensação perfeita de quarto claustrofóbico. Enfim, era o que nos restava naquela cidade montanhosa da Serra da Mantiqueira.

Na manhã seguinte, indagadas por outros colegas da equipe se estávamos num bom quarto, após termos passado a primeira noite na pousada, respondemos que tinha um bom espaço, que era bem confortável no geral, mas que, infelizmente, não tinha janela. E o comentário que ouvimos de imediato foi: “pelo amor de Deus, vocês têm que reclamar com a gerência. Não existe isso de ficar num quarto sem janela”. Respondemos, resignadas, que só faltava mais uma noite para concluirmos nosso trabalho e que seria mais trabalhoso mudar todas as nossas malas para outro lugar do que simplesmente permanecer ali. Mesmo que fosse sem janela, naquela espécie de claustro serrano.

Trabalhamos bastante aquele dia todo e mais à noitinha, na hora do banho, por alguma razão eu resolvi olhar para a parede detrás da minha mala e eis que… avisto uma cortina aberta e atrás dela… uma janela. Sim, caro leitor(a)! Há sempre uma janela. Até porque era uma pousada e não um cativeiro! E lá estava ela, bela e faceira, bem diante dos nossos olhos cegos de torpor ou inaptidão janelar.

Mas questão que nos intriga até o momento em que escrevo esse texto é o porquê de NÃO A TERMOS ENXERGADO antes. E isso abriu em mim todo um portal especulativo de percepções e julgamentos.

Buscando pistas para uma cegueira dupla e temporária

É importante que se diga que nem eu nem minha parceira de trabalho temos qualquer problema de visão que nos impeça de enxergar ou identificar algo. Tampouco somos consideradas especialmente desatentas ou “aéreas” na vida cotidiana. Ao menos, não mais do que a maioria das pessoas. E por isso mesmo minhas hipóteses para não termos visto a janela têm relação direta com a questão original do banheiro e nossas possíveis predisposições e subjetividades construídas naquele espaço.

Explico: ao não identificarmos de imediato uma área óbvia de existir num quarto de pousada, ou seja, um banheiro, isso meio que abriu caminho para considerarmos o quarto todo como um ambiente “estranho” o suficiente para também não ter… uma janela. Portanto, a plausibilidade de um primeiro evento incompreendido meio que permitiu a cegueira ou embotamento para o próximo.

Ou, mudando a forma de dizer, ao nos permitirmos “não ver” algo, a habilidade da cegueira foi oficialmente aberta e assimilada, tendo sido estendida para outras situações. E outro ponto importante, imagino eu, tenha sido a influência recíproca que exercemos uma na outra, reforçando nossa falta de visão temporária. Eu afirmava não ver algo no quarto (banheiro e janela) e ela confirmava. E vice-versa.

Quase uma comédia de absurdos, um dramaturgo diria. Ficamos muito, mas muuuuito boladas com o acontecido. Perplexas, até. Rimos tanto da situação que consideramos nossos exercícios abdominais do dia devidamente pagos. E claro, uma certa dúvida quanto a nossa sanidade mental obviamente pairou sobre nossas cabeças. Talvez ainda nos ronde. Mas prefiro me guiar pelas especulações trazidas há pouco pra trazer um pouco de alento e desembaçar um emaranhado de visões concretas, incompletas e simbólicas.

Transposições possíveis

Será que essa experiência insólita que vivemos em Visconde de Mauá poderia ser transposta para outras situações de nossas vidas? Fico achando que sim. Basta que nos coloquemos numa posição de impossibilidade (seja ela qual for) logo de início que todo o resto pode ir virando uma sucessão de não-acontecimentos. E o contrário também pode acontecer.

#ficaadica

Me lembro de uma gincana no trabalho onde tínhamos que equilibrar um copo sobre três outros copos, com auxílio de facas colocadas horizontalmente no fundo dos mesmos. Várias das equipes que participaram do experimento antes da nossa tentaram de tudo e falharam. Mas eu tinha ouvido de algum grupo anterior ao nosso que eles conseguiram encontrar uma maneira, que existia um jeito que funcionava. E só por saber que “era possível”, eu convenci meu grupo de que conseguiríamos também. Tentamos, erramos, tentamos mais e finalmente… lá estava o copo equilibradíssimo sobre a base de três facas no fundo dos três copos de base. Conseguimos o que nenhum outro grupo de nossa turma conseguiu, simplesmente por saber que era factível.

Da esquerda pra direita: Seblen Mantovani, diretor de fotografia; Carla Coutinho, produtora; euzinha… e fazendo a selfie coletiva, Maurício Maia, operador de som!

Pequenas lições ofertadas

Talvez possamos tirar uma lição disso tudo: acreditar fortemente em algo (seja de forma positiva ou negativa), abre todo um portal de manifestações correspondentes, alinhadas com a premissa original. Seja ela crível, tangível, imaginável ou especulativa.

Uma outra moral para essa história toda é que, seja numa aconchegante pousada em Mauá ou em qualquer outra situação de nossas vidas onde estejamos numa cilada, num labirinto, num beco sem saída ou sem encontrar as respostas buscadas…

…haverá sempre uma janela! Mesmo que escondida atrás da cortina das nossas inabilidades, incompletudes ou descrenças.

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Débora Garcia
3Devi
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Editora do https://medium.com/3devi. Sócia-diretora da Elektra Conteúdo. Tenta entender que mundo é esse e contribuir pra que a passagem por aqui valha a pena.