Saber a hora de emergir. Sol no Tejo, foto minha

Janela, Porão, Mesma Coisa

Daniela Belmiro
3Devi
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2 min readOct 26, 2019

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Esta semana, a vida me chamou para um contato bem intenso com o material do Desdicionário. A primeira seleção de verbetes a ser publicada em livro está ficando pronta (eba!) e o pessoal da editora me mandou provas do miolo e algumas observações de revisão. Ao mesmo tempo, cutucada por um convite-provocação do Fabiano Cafure II, eu improvisei um estúdio de gravação jogando um edredom dentro da banheira pequetica do cafofo literário lisboeta e passei dois dias inteiros trancada com minha própria voz no banheiro, a dizer verbetes — o resultado? Sai logo logo e não vai faltar anúncio, mas não é sobre ele este texto. Voltemos ao banheiro pequeno, eu comigo mesma, os verbetes. Embora o material seja em tese uma obra aberta e em curso, acho que foi uma semana para me fazer entender o que li tantos escritores de romance contando a respeito dos livros que lançam, do certo fastio de ter que voltar a eles, de já estarem em outro momento, de já nem se lembrarem mais. Sabe aquele filho que já passou dos trinta e devia ir cuidar da própria vida, mas continua de cueca na frente da sua televisão (numa pergunta meramente retórica, é claro, já que eu — cof — nem idade tenho para ter filho de mais de trinta)? Pois. Para além desse incômodo — que trouxe como lado bom uma identificação com a comunidade dos escritores, veio a constatação de que gravito entre textos-porão e textos-janela. Aqui mesmo no 3Devi, na maior parte do Desdicionário, nos cadernos que andam pelas minhas bolsas: porões. Labirinto e útero, um convite e apelo meu para que o leitor entre, feche, mergulhe nas palavras e sensações. Claustrofóbicas, como eu constatei ouvindo minha própria voz no estúdio-banheira, talvez tristes como achou uma vez minha mãe, mas bem, porão. Lá no tempo dos blogues, era tudo bem-compartimentado e estanque: porão pra um lado (B, no caso, já sem link porque faz tempo não existe mais), janela pro outro, cada um com sua voz, universo e leitores próprios, cada um quase uma entidade independente da outra. Mas a Internet anda mudada, tio Zuckerberg decidiu que além de nome e sobrenome precisamos de fotos, comprovações e tudo isso. Nada mais dos personagens, das identidades separadas, agora janela e porão encontram-se em mim mesma, e durma-se com um barulho desses. E assim, claustrofóbica depois de tanto ouvir a mim mesma, e de bode do metafórico filho trintão que quero ver logo cuidando da própria vida, pensei que talvez seja mesmo o momento de pincelar por aí mais textos-janela — como este aqui, por exemplo — e deixar um sol entrar.

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Daniela Belmiro
3Devi
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— — malabarista de vazios, carangueja inventora de asas, a moça que escreve também no @desdicionario, @peeping_dani e @imagina.gram