Ilustração: Andrea De Santis

Parecenças: ajudando a tornar o novo algo familiar

Débora Garcia
3Devi

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Quando fui passar um ano em Atlanta, GA, como bolsista do Fulbright, me senti colocada à prova, testando meus limites mais arraigados. Desde a mudança de país, passando por deixar de lado meu namorado na época, meu trabalho — conquistado com vigor — e minha língua natal, tendo que me expressar muito bem num idioma recém aprendido: o Inglês. Aplicada e CDF que sou, fiz tudo como manda o figurino. Tive aulas particulares para aprimorar a conversação, paguei um curso relâmpago para reforçar a estrutura do idioma, me dediquei a estudar diariamente e a treinar conversas com amigos fluentes. Tudinho. Fiz o TOEFL e me saí melhor do que a encomenda. Tinha que atingir 600 pontos, conforme edital do Fulbright, mas cheguei bem perto: 550. O suficiente para me aprovarem. É bom que se diga que eu me achava um zero à esquerda em Inglês, então esse resultado foi fantástico, obtido com muito esforço e dedicação.

Mas… entre o que dizia o teste oficial e a vida real na terra do Tio Sam, existia um abismo gigantesco. Lá chegando, eu simplesmente não entendia o que me diziam. Parecia que eu estava embotada, surda, lesa, sequelada. As pessoas falavam e eu entendia um gromelô sem sentido. A frase matinal poderia ter sido: Hi, good morning, how are you doing?” e eu simplesmente ouvia “nomonomonomonomo?” Entrava em pânico diário, com uma sensação de estar deixando à mostra uma calcinha furada ou algo ainda mais humilhante, me sentindo uma garotinha desprotegida. O medo maior era não entender as tarefas que teria no trabalho. Pois é. Ao invés de iniciar minha jornada de bolsista pelo estudo na universidade, o que poderia me dar a chance de ficar “incógnita” como uma das alunas estrangeiras quietinhas do fundo da sala, não aconteceu de imediato. Por questões de cronograma, acabei iniciando minha jornada pelo trabalho na CNN (parte do acordo da bolsa, com duração de um semestre) e indo para a Georgia State somente seis meses depois da minha chegada. Ou seja, não tinha mimimi, tampouco subterfúgios. Tinha que falar com a minha chefe, descobrir onde ficaria alocada, entender as tarefas diárias, escrever de forma compreensível e lidar com meus colegas de trabalho de um jeito minimamente razoável. Minha saída inicial para lidar com o novo era sempre sorrir e mostrar um ar de receptividade. Isso nem sempre funcionava, porque o sorriso acabava significando um convite para uma conversinha de corredor, o que nem sempre fluía bem. Não para os meus padrões de conversação desejados. Minha insegurança era tanta que em Inglês eu simplesmente mudava de personalidade: me tornava uma pessoa algo reservada, que pensava antes de falar, que media as palavras como um ourives e que vez por outra respondia algo completamente desencontrado do que havia sido perguntado. Alguma coisa entre tímida e/ou idiota seria a percepção de mim pelos meus interlocutores.

Ilustração: Kim Sielbeck

Baby steps

Porém, aos poucos, parece que meus ouvidos foram se abrindo aos fonemas locais. No início, como aquelas pedrinhas achatadas que são atiradas na água, vão quicando na superfície e produzindo círculos concêntricos, eu ia expandindo meu raio de entendimento do idioma. E percebia que entendia primeiro aquelas pessoas que falavam todo dia comigo, por um tempo considerável. E me apegava à elas como traça à roupa na gaveta. Com elas eu conseguia ser um pouco mais próxima da minha versão original. Conseguia fazer alguma graça, comentar com mais detalhes algum fato cotidiano, entender o que me era dito, ainda que de vez em quando eu simplesmente perdesse o barco da conversa, só o alcançando minutos depois. Depois de alguns meses por lá, eu notei que entendia o Inglês de praticamente todos os meus interlocutores. Com exceção, claro, das atendentes de lanchonetes de Atlanta que insistiam em falar em seu “dialeto étnico”, sem diminuir um segundo o ritmo da fala e as gírias mais obscuras que pudessem fazer uso. Deve haver algum prazer oculto em deixar o(a) estrangeiro com cara de palerma diante de um hamburger.

O que funciona para o idioma parece funcionar em outros contextos também, segundo observações minuciosas desta que vos escreve!

Mas meu ponto hoje tem menos a ver com conversar em outra língua e mais relação com tornar algo novo um pouco mais familiar. Recentemente mudei de ambiente de trabalho, saindo de um canal de TV para outro, aqui no Rio de Janeiro. O anterior falava de educação, o atual, de saúde. Um é privado. O de agora, público. Mas, porém, contudo, todavia… encontrei logo familiaridade com os rostos, gestos, voz e personalidade de vários de meus novos colegas de trabalho. É que, de alguma maneira, eles se parecem muitíssimo com colegas meus do antigo contexto profissional. Ou eu, secretamente, quis que eles se parecessem.

O mais curioso é que alguns deles têm até o mesmo signo ou o mesmo sobrenome, além de trejeitos semelhantes e uma forma parecida de ver o mundo. Seria algum fenômeno paranormal a que estou submetida ou somente meus recursos emocionais para lidar de forma mais tranquila com a novidade?

Cara de um…

Exemplos? Lá vão! Quando vejo a risada escancarada e o jeito afetuoso da Carlinha, imediatamente me vem à mente o semblante simpático e receptivo da Deca. A forma como a Yá explica os conteúdos e envolve a todos da equipe em seus projetos é quase uma réplica da Marisa. Até a frase que usam para iniciar uma explicação é a mesma: “então, gente, vamo lá…” O tom de voz das duas é semelhante e o tipo físico traz alguma parecença também, além das duas serem piscianas. Já a Cintia, quando traz sua análise das cenas ou da pré-produção de algum programa de maneira pilhada, é cuspida e escarrada a Tatiana. E o mais curioso: descobri que ambas têm o sobrenome Albuquerque a e mesma cor e corte de cabelo. A Angel, por sua vez, tem a estatura e a meiguice da Regina, assim como seu tipo físico e pró-atividade. O sorriso delas também parece gêmeo. Jeff arruma os óculos e caminha do mesmo jeito do Alexandre. E o Rafa, logo de cara, virou meu novo Dé, compadre e uma espécie de irmão mais novo a quem recorro nos momentos de desafio e também nas horas de relaxamento pós-trampo. A Marcinha tem o olhar e o humor da Lucinha. E as duas são chamadas com o nome no diminutivo, além de compartilharem a voz ligeiramente rouca e a mente ágil. O Ben-Hur tem o ar etéreo e ligeiramente guru do Stânio. Já a Ellen me lembra alguém que não é do trabalho anterior, mas é ainda mais próxima de mim: minha tia Clea, em sua juventude. Vá entender. As parecenças são recorrentes e infinitas no novo espaço. A cada dia, um novo aspecto vai se tornando próximo, sabido, entendido, incorporado, trazido para perto.

Ilustração: Paul Tebbott

Familiarizar-se…

Família é aquele núcleo ao qual pertencemos, de um jeito ou de outro. Quanto mais semelhanças encontro entre meu antigo lar profissional e o atual, mais me sinto parte desse novo cenário, criando uma espécie de amálgama vívido de mim com o território novo, carregando-o de novos e antigos sentidos simbólicos. É como se, por alguma colisão ou movimento dos corpos celestes do meu convívio anterior, eu tivesse sido colocada em outra órbita, girando agora em torno de um outro Astro-Rei. Não obstante, a cada dia, vou ampliando a ressonância com aquilo que me rodeia, sob influência, assim como acontece com os planetas, de uma força que aproxima, me espelha e me emparelha com os meus, agora re-conhecidos, semelhantes.

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Débora Garcia
3Devi
Editor for

Editora do https://medium.com/3devi. Sócia-diretora da Elektra Conteúdo. Tenta entender que mundo é esse e contribuir pra que a passagem por aqui valha a pena.