Precisamos falar sobre a depilação a laser

Daniela Kopsch
3Devi
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3 min readAug 30, 2017
Ilustração: Sara Haas

Por apenas 200 reais a sessão, homens e mulheres podem testar os limites da própria existência e encarar a face da morte dolorosa e cruel. Com certeza é o sofrimento mais caro que você pode se proporcionar na vida mas, com sorte e um voucher do Groupon, pode-se conseguir até 70% de desconto.

Quando cheguei à clínica, eu estava iludida com a promessa de liberdade que só uma depilação definitiva oferece. Desde que assisti Lost me aterroriza a ideia de ficar perdida na selva com recursos escassos. Sem uma gilete, eu me tornaria em poucos dias parte daquele matagal e não seria encontrada nunca. Ou pior: encontrada em sabe-se lá qual situação.

Foi por isso que quando minha amiga, vamos chamá-la de M., me fez passar a mão na sua axila, eu fiquei encantada. Que lisinha. “É pra sempre?”, perguntei. “Dizem que volta, mas pra mim nunca mais voltou”, disse a Maldita. Com este prognóstico, segui rumo ao consultório para fechar o primeiro pacote.

É claro que você precisa fechar um pacote.

Do contrário, este modelo de negócio jamais se sustentaria. Ter pago 10X de R$200 é a única coisa capaz de fazer um ser humano voltar por vontade própria a um lugar onde foi terrivelmente torturado. É mais ou menos como funciona a lógica da academia, só que pior.

Porque dói. Dói como a morte. E não qualquer uma, mas uma morte terrível. É como ser furado, eletrocutado e queimado ao mesmo tempo. No primeiro disparo eu fiquei em choque. Não consegui reagir, o corpo ainda absorvendo e reverberando toda aquela dor. No segundo, consegui me mover. Levantei a mão. A mulher achou que era para dar uma pausa. Esperou um pouquinho. Quando fez menção de retomar o trabalho, eu levantei a mão de novo, tentei falar mas os lábios não se moviam — eu comecei o procedimento pelo buço.

“Fica quietinha”, ela disse. E acrescentou mais um monte de palavras no diminutivo, naquele tom carinhoso e ameaçador com que se trata uma menina: “Vai terminar rapidinho, aguenta só mais um pouquinho, seja boazinha” e coisa e tal. Mas nos olhos, a ferocidade não me deixava dúvidas: ela queria me matar.

Toda a minha vida surgiu diante de mim. Me perguntei quando foi que eu me perdi. Entre a literatura feminista dos tempos da faculdade e aquele momento deitada na maca do capeta, quando foi que eu me entreguei daquele jeito às pressões do patriarcado? O que é que o pelo tem de tão terrível pra ser exterminado daquele jeito? O que é que eu fiz pra merecer isso?

Tentei acabar com aquilo, mas novamente fui impedida pela determinação da minha algoz. Ela evitava meu olhar de propósito, para não se comover ou quem sabe para não ter que atender ao meu pedido de socorro. Fez que não me viu e continuou me perfurando e eletrocutando e queimando, desta vez sem parar nem para respirar, rapidamente, uma axila e depois a outra e depois partiu para o meu ventre.

Ali a coisa conseguiu ficar muito pior. Eu cheguei à conclusão de que jamais conseguiria amar novamente, minha vida sexual estava perdida, todas as terminações nervosas incineradas até o fim. Não me restava mais nada. Nem pelo, nem tato. Me agarrei num fiapo de vida quando ela, por fim, deu uma afastada nas minhas nádegas e disse: “Falta só aqui”.

Só então reuni força suficiente para me levantar. Com a energia de mil mulheres, me ergui contra o sistema e fiz o que todas nós deveríamos ter feito desde o início dos tempos, quando essa história de depilação começou. Eu disse: “Não, obrigada”.

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