Ilustração: Alexandria Lomuntad

Todo mundo tem sua Nêmesis. A minha é o check up anual de saúde. Martírio, parte 1.

Débora Garcia
3Devi

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Tem um momento do ano em que preciso reunir todas as minhas forças, todas as minhas crenças, toda a minha paciência (que já é naturalmente curta) e encher o meu coração de algum sentimento minimamente compassivo que me ajude a suportar a irritante tarefa de realizar meu check up de saúde.

Por exigência do trabalho, a ideia é oferecer comodidade ao funcionário que pode concentrar todos os seus exames num único dia, em um único lugar, com equipamentos laboratoriais e preventivos de ponta. Lá os médicos são sempre sorridentes e solícitos, prontos para encontrar alguma coisa de errado no seu corpo de forma precoce e assim ajudá-lo a procurar pela melhor forma de encaminhar suas questões de saúde.

São horas e horas dentro de um grande consultório que é milimetricamente decorado com ambientes sóbrios e sofisticados, talvez tentando, inutilmente, passar algum tipo de acolhimento aos médicos que ali exercem seu minucioso trabalho de Sherlock Holmes corporais.

Na última consulta reparei particularmente na decoração de alguns dos consultórios que pareciam imitar quartos de meninos adolescentes: as estantes tinham bolas de futebol feitas de vidro, chuteiras estilizadas e livros fotográficos sobre o campeonato carioca distribuídos como ornamentos sobre uma pequena estante, dando um certo ar brincalhão de quem não estaria ali trabalhando, mas usufruindo de um ambiente de charme e bem estar, quase uma extensão da própria casa. Tudo em volta é discreto, charmoso, mas um tanto quanto impessoal. Eu só consigo reparar nisso tudo como uma forma de "fugir" do momento, de me deixar levar pra longe de tudo aquilo, ainda que mentalmente, sem me deixar ser sugada pela experiência de escrutínio corporal que me apavora. Um tipo de ENEM do mal que vasculha a sua alma a procura de impurezas.

Pra que tudo corra bem e de forma eficiente, os exames são muitos, exaustivos e feitos em seqüência, muitos deles exigindo jejum para que sejam concluídos. Isso tudo faz com que o café da manhã que eles nos servem em algum momento seja o ponto culminante do dia. Funciona como uma linha de chegada tendo como troféu um suco de laranja e um croissant prontinhos para entupir suas artérias de carboidrato e gorduras. Como tudo por lá é uma “experiência” única, eu tenho a oportunidade de selecionar os itens do meu desjejum pelo tablet, clicando nas minhas escolhas e recebendo uma confirmação que minha comida está a caminho. Mas com uma condição: ter feito TODOS os exames de ultrassom abdominal sem dar chilique. E essa pra mim é a parte mais difícil. Não o ultrassom em si, mas NÃO DAR CHILIQUE.

Os pequenos consultórios estão distribuídos em seqüências de salas, umas de frente às outras sendo para mim as mais temidas as últimas à esquerda. mamografia, que invariavelmente me leva a um ultrassom de mama considerando que as minhas são densas e de difícil análise, alem da sala do raio x que em si não mete medo, mas seus resultados, esses sim, podem vir a assustar.

Primeira estação da via crucis: Débora questiona a escolha dos exames de sangue

Minha jornada começa colhendo vários tubinhos de sangue e entregando fezes e urina para uma gentil recepcionista que age como se não estivesse de posse de minhas “necessidades” mais escatológicas em mãos, me devolvendo um sorriso largo e dizendo que posso prosseguir com meu dia de check up. Minha primeira implicância dá seu ar da graça: já tive inúmeras tromboses e também retirei minha tireóide. De forma que seria de bom grado checar meu INR e também meus hormônios. Mas isso não está nos meus pedidos, só alguns outros exames genéricos. É tudo que preciso pra começar a questionar a validade de um check up que não verifica o que é mais importante pra mim, ignorando minhas necessidades pessoais e me colocando de igual pra igual com alguma estatística que não me serve e não se encaixa nas minhas questões. Eles respondem que podem até incluir, mas teria que pagar por fora. Aí digo que se for preciso fazer isso é melhor nem fazer mais check up porque não está facilitando minha vida e sim tornando um simples exame um calvário. Já viram que o meu potencial para o estrago da manhã dos pobres atendentes da clínica é grande, né?

O exame seguinte é o oftalmológico. Talvez tenha sido uma estratégia deles para não me estressar logo de cara e me meter direto na sala do cardiologista ou da proctologista.

Segunda estação da via crucis: Débora é diagnosticada com conjuntivite alérgica crônica!

O oftalmologista me recebe com um sorriso gigante no rosto. Será que eles tem algum script básico para seguir, exalando tanta alegria já as oito da manhã? Ou são felizes assim espontaneamente? Ou será que lêem pouco os jornais do dia? Ele me desarma, na verdade, porque minha vontade é já começar a brigar logo de cara. Sei que é infantil de minha parte, mas não consigo me controlar diante de um lugar que consegue me desesperar com meses de antecedência, ao menor contato deles para tentar tão efusivamente agendar meu dia e hora. Como se fosse uma espécie de sorte grande a que sou exposta a cada ano. Acreditem: já passei boas temporadas internada em CTIs da vida para considerar essa momento de revisão geral simplesmente aterrorizante.

Mas voltando ao oftalmologista, depois do grande sorriso com que me recebe, vai logo me colocando diante das máquinas que verificariam minha acuidade visual. Eu logo digo que ter começado por ele é positivo já que nunca se esperaria de um médico dos olhos que viesse com qualquer sentença de morte, como os outros tão bem podem fazer, mesmo sem querer. Ele ri do que provavelmente lhe parece um exagero de minha parte e diz que está ali para garantir minha tranqüilidade. Respondi que eles até tentam, mas não conseguem porque o sistema está TODO EQUIVOCADO, na minha modesta opinião. Creio que ele não deva ter entendido de cara o que quis dizer e por isso fui me explicando: "em hora nenhuma vocês enaltecem o que fiz de certo, o que está bacana para minha idade e condição geral de saúde, o que NÃO TENHO, mas apontam para o que posso vir a ter. É aí que reside minha angústia. Na especulação macabra de um corpo que fenece, vai ficando decrépito a olhos nus". Nesse momento o oftalmo me olha com um certo espanto e certamente escreve no cantinho do meu relatório, ainda mantendo o semblante positivo: "essa é louquinha de pedra, tem que ser internada imediatamente e já receber Lexotan na veia".

Ele termina os exames dizendo que está tudo bem até o momento (viu?? até o momento!) mas que ele identificou uma conjuntivite alérgica, além da progressão da minha vista cansada de quarentona. Pergunto se pode me receitar algo e ele diz que não, já que ali é lugar para diagnóstico e não para tratamento. Claro que contesto dizendo que esse tipo de abordagem é ridícula. Se achou algo então trate esse algo. Senão vou ser obrigada a ir a um outro oftalmo, gastar outras horas do meu dia para confirmar o que eles já encontraram. Faz sentido esse tipo de procedimento? Claro que não. Aí, talvez compadecido pelo meu argumento ou talvez só querendo se livrar de mim, escreve num toquinho de papel o nome do colírio que pode me ajudar, deixando claro que está fazendo um "favor especial".

Uma das atendentes do local, vestida com um impecável uniforme azul marinho, com seus cabelos loiros artificiais presos num rabo de cavalo pueril demais para sua idade já pronunciada me conduz por toda a minha jornada (ou martírio, como queiram) naquela manhã. Exame por exame, médico por médico. E sempre entoando sua frase-padrão aos moldes dos atendentes de telemarketing, com empolgação assustadora: “Dona Débora, vamos para o próximo exame?!!” Alegria não tem muito espaço num lugar daquela natureza. E eu penso: “tenho outra alternativa?”

Terceira estação da via crucis: Débora é encaminhada, a contragosto, ao Raio X

Li em algum lugar que não existe a menor necessidade de se fazer Raio X anualmente, a não ser que exista alguma indicação médica, o que não é o meu caso. É que a radiação emitida pelos equipamentos pode ser pior para o seu corpo do que um provável diagnóstico antecipado. Sabendo disso e de posse de todo o potencial de pentelhação que habita minhas entranhas, pergunto a razão de ter que fazer aquilo novamente, sem uma justificativa clara. Eles respondem que "é o protocolo". Aí eu digo que protocolo sem sentido simplesmente não deve ser seguido. Leis existem, replico, para serem questionadas e eventualmente ignoradas ou modificadas. Eles me falam de estatísticas e eu digo que sou uma espécie de desvio-padrão, que eles não devem tratar a todos como números ou percentuais, mas entender as motivações e necessidades individuais. Isso sim seria uma medicina bacana, acolhedora, inteligente…A atendente olha pra mim com um ar que oscila entre desespero e vontade de me esganar, mas o reveste de candura: "então, Dona Débora, a senhora prefere não fazer?". "Sim, prefiro não fazer", respondo. Aliás, prefiro ir embora daqui o quanto antes, numa fuga cinematográfica. Mas páro o meu delírio e me limito à obedecer ordens. Porém…questionando TUDO que eu puder a cada segundo. É a minha desforra. Se eu tenho que penar nesse lugar, evoco as sábias palavras de Zagalo mentalmente, como num triunfo pessoal: "vocês vão ter que me aturar"!!!

To be continued…

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Débora Garcia
3Devi
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Editora do https://medium.com/3devi. Sócia-diretora da Elektra Conteúdo. Tenta entender que mundo é esse e contribuir pra que a passagem por aqui valha a pena.