Uma carta para o meu corpo

Débora Garcia
3Devi
7 min readJul 21, 2021

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Em primeiro lugar, vamos dizer o que precisa logo ser dito: obrigada por existir. Pois é, sem você, essa alminha aqui não teria lugar para encarnar na Terra neste momento. Gratidão, buddy. Você tem me acompanhado por exatos 50 anos. Not bad at all. Sim, já passamos por poucas e boas, mas você sempre esteve (está) lá, firme e forte, aguentando os trancos e escorregões que a vida nos prega, sempre se restabelecendo, se regenerando, dando tratos à bola e não deixando a peteca cair. Nossa, tô tão cheia de frases de caminhão que poderia estar dirigindo um belo Scania nesse momento!

Piadinhas à parte, o fato é que estou (estamos) de novo diante de um impasse. Uma nova trombose apareceu no nosso caminho e um novo susto. Hospital, pela sexta ou sétima vez, já nem mais me lembro ao certo. Quando tudo parecia relativamente sob controle (ah… essa eterna fantasia que temos de tomar as rédeas da vida em nossas mãos quando o cavalo, na verdade, corre solto…) eis que uma manchinha, uma suspeita inquietante surge no pulmão no lado direito superior. Vamos lá: lado direito, o das emoções. Superior, mais próximo à cabeça, do lado do coração. Conflito nesse âmbito amor/retidão/reconhecimento/valor próprio?? Talvez, muito provavelmente, eu diria. E em cima de uma antiga pneumonia que eu, pra ser bem sincera, por mais control freak que seja, já nem me recordava. Prova de duas coisas: NÃO SOU TÃO CONTROL FREAK, nem essa pneumonia foi de grande importância, uma vez que foi esquecida como uma simples cicatriz de tórax.

Acontece que agora a tal cicatriz mudou de forma, aumentou, talvez. E isso deixa os médicos cheios de dúvidas, de hipóteses. Eles são treinados e pagos para isso. E toda essa suspeita tem lá suas vantagens, devo admitir. Por mais chato que seja, encontrar algo logo de início e já tratar evita que problemas maiores se avolumem lá na frente. Essa é a ideia do exame de broncoscopia que farei na sexta-feira e que, claro, me deixa preocupada.

Ilustração: Frederic Belaubre

O que vão encontrar, corpo? Pode me dizer? A primeira suspeita deles é que é uma tuberculose. Quase caí de costas quando me falaram. Não porque ache que a coisa é, em si, tão grave. É algo tratável, via oral e tal. Mas me espantou porque não consigo imaginar de onde isso tenha surgido. Como assim tenho tuberculose?? De onde isso veio? Parece totalmente “do nada”, como minha filha diria. A médica explicou que o bacilo está no ar e que novos casos têm aparecido no Rio. Disse que eu posso ter sido exposta à bactéria que poderia ter se instalado no pulmão (se for isso). Daí, quanto mais cedo identificarmos o problema, mais rápido tratamos e resolvemos a questão. Até aí eu concordo e não me deixa (tão) assustada. Mas a questão é que eu começo a pensar: e se não for isso? E se a mancha significar algo mais grave, tipo aquela doença que começa com C e que tem que fazer quimio ou rádio pra tratar? Sim, esse é meu MAIOR MEDO. E nenhum médico é capaz de dizer: “calma, não é nada disso, não tem como ser”. Eles ficam com aquela cara de incógnita eterna, de investigadores implacáveis e não fecham diagnóstico até que tudo seja devidamente fuçado. Então lá vamos nós para mais um exame que requer sair da zona da anticoagulação. Siiiiimmm. Aquela mesma que levamos 05 dias pra atingir, entre exames de sangue e picadas de klexane. E aí, na sexta, fazer o exame e voltar ao protocolo de anticoagulação pra conseguir ter alta.

Estou mandando essa cartinha pra você pra reconhecer sua existência, seu papel regenerativo incrível até agora, tanto que cá estamos com 50 anos de vida no planeta azulzinho, felizes e contentes. Na maioria do tempo, diria.

Assim, peço com todas as minhas forças que você, sendo co-criador que é, podendo plasmar um tanto de coisas no plano físico, faça seu trabalho da melhor maneira. Quero sair daqui saudável, com você inteirinho e faceiro, com tudo funcionando bem e com qualquer questão resolvida ou encaminhada de forma branda. Acho que a gente merece essa trégua. Até porque já se vão seis tromboses, uns outros tantos sustos, uma penca de internações e um controle de sangue que vai durar nossa vida toda — espero longa e feliz — como tem sido até agora.

Ilustração de Charlotte Chapter

Você pode fazer isso por nós? Sei que você é capaz de subir e descer as Paineiras com destreza. Que suporta um cérebro bem interessante. Até a modéstia concordaria. Que tem uma constituição física bonita de se ver, mesmo com a barriguinha menopáusica saliente. Pois é, evoluímos, não somos sempre os mesmos. E ainda assim, essa jornada encarnada até aqui tem sido bela. Vamos lá. Acho que uma breve sessão de elogios pode vir a calhar: adoro a cor da nossa pele. Adoro o shape das mãos e dos pés. Gosto da minha canela fina africana, herança do meu pai. Gosto das minhas maçãs do rosto altas, e do dentinho proeminente. Segundo minha irmã, me deixam com cara de mais jovem. Gosto do meu cabelo na maior parte do tempo. Sobretudo quando está domado e sem frizz. Frescuras estéticas? Temos! Mas quem nunca? E gosto dos meus quadris requebrantes, bons pra dançar a dança do ventre. Ah, já ia esquecendo: meus seios são bem bacaninhas também, sempre que os vejo no espelho, acho que estão num formato bonito, têm um volume bem harmonioso com o restante do corpo e, com alguma destreza de um artista de plantão, a imagem renderia uma bela aquarela. Quem sabe um auto-retrato, não é mesmo?

Gosto dos meus olhos ligeiramente puxadinhos, quase asiáticos ou, vamos reconhecer, indígenas. Meu nariz torto e proeminente é uma marca quase basca, turca. Gosto também. E meus lábios são bem definidos. Nem tão grossos, nem tão finos. Vamos assumir: perfeitos! Nossa, como é difícil dizer isso de mim (de nós) assim sem rodeios. A tendência é ver o que falta, o que não está lá.

Sei que tenho sido injusta com você ao atribuir mais falhas do que ganhos aos seus incansáveis esforços nesse meio século de labuta. O médico plantonista lembrou: “a senhora está aqui, com saúde. Sobreviveu a todos esses problemas que relatou e está bem. É jovem o suficiente pra que isso continue da mesma forma daqui pra frente. Veja isso como um privilégio”, disse o moço em seu uniforme azul de cirurgião. E ele tem razão, em sua pouca experiência de vida, em sua altivez médica.

É uma questão de ver o copo cheio e eu tenho essa dificuldade. Esvazio o bichinho com a facilidade de uma piscadela de olhos. Sim, estou num bom hospital, com bons profissionais que demonstram atenção suficiente para investigar o que quer que não esteja redondinho no meu corpo. E indicar o que precisa ser feito para superar mais esse, eu diria, obstáculo.

Então, corpinho: posso contar contigo? Me ajuda na sexta-feira passar pelo exame de maneira tranquila? Posso contar contigo pra regenerar essa parte do pulmão de forma boa, serena, saudável e positiva??? Quero, por favor, que aconteça assim, caso necessário. E se não for necessário (sim, tenho tendência a olhar sempre para o mais panicante da cena…) que possamos respirar, literalmente, aliviados e seguir com a nossa vidinha conjunta por muitos e muitos e muitos anos…

Meu camarada, desculpe os maus tratos: sei que não devia exagerar no leite nem no glúten, dois intoxicantes para o nosso pleno funcionamento. E, claro, açúcar também não ajuda. Tá mais do que provado. Mas não somos de ferro, vamos admitir. Sei que seu eu retirar esses itens, ou diminuí-los — vamos também tentar ser honestos e plausíveis — o nosso funcionamento vai ficar muito mais azeitado, a barriguinha vai secar, minha disposição vai aumentar e tudo vai fluir melhor. Opa, olha aí a palavra: FLUIR. Tudo que nosso sangue precisa, né? Então parece que já sabemos a receita, não é mesmo? Agora é cumprir. Continuar andando e, assim, respirar, respirar, respirar, cantar, cantar, cantar, aquarelar, aquarelar, aquarelar, tocar, tocar, tocar, ser, ser, ser, amar, amar, amar.

I’M NOT MY THOUGHTS. Disse o mantra que recebi hoje do astral, vindo num texto do Medium. Essa profunda identificação com um rosário de pensamentos asfixiantes não ajuda em nada a ser o que precisamos ser, meu corpo. Não dá pra evitar os pensamentos, mas dá pra evitar ficar preso neles, transformá-los em verdades, posto que não são.

Vou remeter essa carta pra você, colocando como destinatário O CORAÇÃO. Sim, ele, o centro do que somos. O núcleo de QUEM somos. Aquele que pulsa, que emana nossos fluidos vitais e faz com que a gente continue a jornada por aqui. Sim, um bom receptáculo para esses meus pedidos, já que o cérebro como chefe da nossa fábrica pessoal, é bem ruinzinho. Nesse caso em especial, mais nos apavora do que ajuda. Mas calma que não vou detoná-lo não, porque também cumpre excelentes papéis em outros cenários, quando realmente é necessário! Cerebrozão, valeu brou! Conto contigo sempre também, hein? No hurt feelings, ok?

É isso. De mim pra você. De nós pra nós. E que a energia vital que nos circunda e protege cumpra também sua parte, belamente.

Amém? Assim seja.

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Débora Garcia
3Devi
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Editora do https://medium.com/3devi. Sócia-diretora da Elektra Conteúdo. Tenta entender que mundo é esse e contribuir pra que a passagem por aqui valha a pena.