Uma mulher civil espiritual X um pracinha celestial

Débora Garcia
3Devi

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Domingão de sol e me deu aquela vontade de caminhar pra tirar minhas costumeiras fotos de fachadas, flanando pelo Rio. Decidi ir para a Urca pra pegar um entardecer daqueles.

Chegando lá, deixei rolar um trajeto aleatório, sem planos. Enquanto andava, fui ficando cada vez mais extasiada com a luz alaranjada que cobria os telhados e gerava sombras incríveis nos alpendres, calçadas e entradas dos prédios.

Finalmente avistei uma nesga de mar no fim da rua, por detrás da famosa mureta da Urca. Bastaria que eu descesse uma escadinha pequena, espremida no fim do trajeto, até finalmente ampliar meu horizonte e contemplar toda a Baía no cair da tarde.

Me deparei com a Fortaleza São João da Barra ou… o Forte da Urca. O pôr do sol estava do jeitinho que eu imaginava, projetando matizes de luzes por toda a parte — inclusive na área militar — , e não contei conversa. Peguei a câmera do meu celular e apontei para a entrada do Forte, registrando uma rápida e despretensiosa foto.

Nem bem tinha concluído o clique e me ocorreu um pensamento: "será que é permitido tirar foto do Forte"? Mas me convenci que sim, até porque não haveria sentido em proibir algo dessa natureza tão simplória e inofensiva.

Ledo engano! Ouvi uma voz masculina me chamar com firmeza: "senhora, senhora"…

Pela tom assertivo, imaginei que pudesse ser alguém do Forte. E não deu outra. Um recruta, pracinha, marinheiro — o que fosse — veio em minha direção dizendo que eu não poderia ter tirado a tal foto. E ali começou um embate entre uma mulher civil espiritual e um pracinha celestial.

Antes de transcrever o insólito diálogo, explico que existe um tipo de classificação que divide as pessoas entre espirituais e celestiais. Os espirituais, em geral, têm uma tendência confrontadora, de não deixar barato qualquer situação, gostam de questionar e não fogem de batalhas. Até se alimentam delas. Já os celestiais são pessoinhas agraciadas com a capacidade de evitar o conflito a qualquer custo, são apaziguadoras, dóceis e com tendências a "passar por cima" de algo só pra não ver uma pendenga instalada.

Essa que aqui escreve, euzinha, sou beeeeem espiritual. E o pracinha, jovem soldadinho nada de chumbo que me abordou, mostrou-se celestial até não poder mais. Por mais paradoxal que possa ser!

E a conversa marota aconteceu mais ou menos assim:

  • Senhora, não é permitido fotografar o Forte — disse um determinado aprendiz de marinheiro.
  • Mas eu não fotografei o Forte, estava fotografando o pôr do sol.
  • Mas não pode, senhora.
  • Não pode fotografar o pôr do sol?
  • Não é permitido, senhora. Vou ter que pedir pra senhora apagar.
  • Espera aí… Eu vou ter que apagar uma foto do meu celular, tirada daqui de fora, apontando para a paisagem por detrás da entrada do Forte, por qual razão exatamente?
  • Porque não pode. São ordens. E está no regimento, senhora.
  • Que regimento?
  • O nosso, aqui do Forte.
  • Mas eu não pertenço a essa "Ordem", sou aqui de fora. Isso não vale no meu mundo.
  • Mas tem que apagar, senhora. São ordens.
  • Ordens de quem?
  • Senhora, eu estou cumprindo o que me pedem. Preciso que a senhora apague a foto agora.

Nesse momento eu, pra lá de indignada, abri o arquivo de imagens do celular mostrando a inofensiva foto para o rapaz, argumentando que não fazia o menor sentido ter que apagá-la.

  • O que tem de errado com essa foto? Que perigo ela pode representar? Por que não posso mantê-la comigo?
  • Olha aqui, senhora… Veja só… Dá pra ver que fotografou nossos soldados, dá pra perceber quem está nesse turno. Tá vendo?
  • Mas eu não estava interessada em fotografar vocês. Aliás, não estou. Eu fotografei uma paisagem que era composta pela entrada do Forte, por vocês (ao lado), pela fachada ao fundo e pelo bendito pôr do sol.
  • Mas infelizmente não pode, senhora.
  • Onde isso tá escrito? Eu quero entender de onde vem essa regra.
  • Eu falei, tá no nosso regimento.
  • Mas quem escreveu esse regimento? Quando? Pra quê?
  • Ah, minha senhora. Nem sei muito bem. Acho que generais do passado — respondeu o pracinha, já com um início de sorriso aparecendo no rosto.
  • Sim, mas esses generais não são meus generais — respondi com todo o sarcasmo que me era possível — Não sou militar, não tenho que seguir essas regras que não fazem sentido aqui fora. Aliás, nem lá dentro essas regras fazem qualquer sentido.
  • É questão de segurança, senhora. Imagina, as pessoas vão ver quem aqui está em qual turno, fazendo o quê, entendeu?…
  • Quem são essas pessoas que estão assim tão interessadas no que vocês estão fazendo? E por que isso importa tanto?
  • Minha senhora, eu só tô cumprindo ordens. Tem que apagar a foto.
  • Olha só, qualquer pessoa que está agora tomando uma cervejinha na mureta da Urca pode tirar foto de vocês usando um zoom e ter essa mesma "formação" super "secreta" registrada de maneira muito simples. E até aí, vocês não estão nem sabendo, ninguém tá fiscalizando os celulares da galera, muito menos pedindo pra apagar fotos. Por que EU tenho que apagar se isso não representa perigo algum? Nem sei se eu vou fazer algo com essa foto. Pense nisso.
  • Minha senhora, aí tá complicando pra mim. Os meus colegas estão me vendo aqui falando com a senhora esse tempo todo, eu tenho que fazer a senhora apagar. É a minha função.
  • Mas eles não vão saber se apaguei ou não. Basta você dizer que apaguei.
  • Mas como eu falei, senhora. Tem que apagar. Tá no regimento.
  • Então eu quero que você me leve agora para o Forte e me mostre onde está o regimento e em que página está escrito que não pode fotografar pôr do sol — disse pro garotinho entre risos, mas insistindo no meu pleito.
  • Poxa.. Aí a senhora me quebra. Eu não posso fazer isso.
  • Por que não pode? Também tá escrito que civil não pode entrar no Forte? Eu estou pedindo, não estou invadindo. E você está me obrigando a apagar algo que é meu, que me pertence. Então quero que me mostre de onde está tirando essa ordem, pra eu ver se tem algum nexo. Não faz o menor sentido pra mim cumprir essa ordem aleatória, que não está no meu mundo.
  • Eu também acho muita coisa absurda, minha senhora. Muita coisa aqui não faz muito sentido, mas eu tenho que cumprir ordens.
  • Aí é que tá. Não tem não! Você pode se rebelar. Pode abandonar essa vida a hora que você quiser. A vontade é sua. Na sua história, você é quem manda.
  • Poxa, eu tô cumprindo serviço militar. Aí complica pra mim.
  • Ué, simplesmente foge, mete o pé. Sai disso aí. Ninguém é obrigado a nada nessa vida.
  • Não é tão simples, minha senhora — o sorriso do jovenzinho ia abrindo cada vez mais, mostrando que talvez o papo com a mulher doida estivesse sendo divertido de alguma forma…
  • É simples sim. É só desobedecer. Veja, por exemplo, o Capitão número 17. O Presidente atual do Brasil, não se rebelou contra os salários baixos e planejou até explodir um quartel no passado? É só seguir o exemplo dele — falei com toda a satisfação que a ironia me permitia no momento.
  • Aí fica difícil — respondeu o recruta quase gargalhando — Não dá pra sair fazendo tudo o que a gente quer. Bom, é o seguinte… Eu…eu vou liberar a senhora. Pronto, pode ir.
  • Olha, muito obrigada por entender. E você pode dizer pros seus colegas que eu apaguei a foto, tá bom? Fica entre nós o fato de que ela ainda vai ficar nos meus arquivos. Mas fica tranquilo, não vou publicar nada. Não quero complicar pro seu lado.
  • Tá bom, senhora. Tenha um bom dia.
  • Um bom dia pra você também! E aproveita quando voltar pro Forte e dá uma olhada no pôr do sol. Tá digno de uma foto! Te garanto!

Saí de lá me segurando pra não olhar para trás e perceber que talvez ele, o pracinha celestial, tivesse mudado de ideia ou chamado reforços militares pra deter a mulher civil espiritual de vez. Vai que constasse do tal Regimento deter figurinhas impertinentes ao cair da tarde?!?!

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Débora Garcia
3Devi
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Editora do https://medium.com/3devi. Sócia-diretora da Elektra Conteúdo. Tenta entender que mundo é esse e contribuir pra que a passagem por aqui valha a pena.