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Wachuma: a medicina sagrada onde quem guia é o coração

Débora Garcia
3Devi

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Quem acompanha meus escritos aqui pelo 3Devi já deve ter percebido que um dos assuntos que mais me fascinam é a espiritualidade. Sobretudo aquela bem encarnadinha, vivida em primeira pessoa, de modo pessoal e irrestrito.

Num passado remoto, já fui tachada de “crente borboleta”, quando frequentava uma Igreja Metodista na adolescência. E por “borboleta”, meu interlocutor queria dizer: "alguém que pula de igreja em igreja, de congregação em congregação procurando sua fé". Seu tom não era exatamente elogioso, já que ela me pedia, subliminarmente, um “paradeiro”, queria que eu reconhecesse logo um lugar e um jeito de professar alguma religião que fosse, de preferência a que ele seguia e me recomendava de maneira veemente.

Mas borboleta que sou, continuei pousando de flor em flor espiritual, pulando de egrégora em egrégora, ampliando um pouco meu repertório de crenças e minhas experiências de “religar-me” com o divino. Até hoje. E lá se vão uns 35 anos desse voo divinal sem destino certo.

Aqui no 3Devi já falei da Igreja Batista do Pastor Henrique Vieira, hoje deputado federal e defensor de um Credo inclusivo e disruptivo; já comentei do meu primeiro ritual xamânico com os índios Fulni-ô; já narrei minha ida a um Temazcal, já falei de Iroko, já fiz poema sobre o Mahasandhi e hoje, compartilho com vocês alguns insights colhidos numa cerimônia de consagração do Wachuma.

Cacto Wachuma/San Pedro

Pra quem ainda não tem familiaridade com o “abuelito”, Wachuma é um cacto típico da Cordilheira dos Andes, também conhecido como San Pedro. É uma planta de poder, assim como é o Peyote na América Central e do Norte ou como é a Ayahuasca aqui na Floresta Amazônica. Contendo uma pequena porcentagem de mescalina, o Wachuma pode tanto funcionar como uma bebida alucinógena quanto como um chá medicinal com alto poder de cura. Vai depender da dosagem, das intenções e da egrégora criada para o consumo da substância.

Tive a experiência num espaço sagrado super acolhedor no meu bairro em Laranjeiras, no Rio de Janeiro. O Sonqo Wasi. E que contou com a guiança de um homem-medicina vindo lá dos Andes, o Amau Cid, com longa trajetória pessoal de uso dessa planta e capacidade para nos conduzir por uma cerimônia de 8 horas de duração, feita com todo o cuidado. Mais de 20 pessoas permaneceram sentadas (ou dançando) ao redor de uma fogueira após ingestão do Wachuma e invocação de sua sabedoria. E ali fomos curando o que queríamos e o que nem sabíamos que queríamos curar naquela tarde/noite de sábado.

No meu caso, eu vivo uma dualidade pessoal de coragem e medo quando o assunto envolve novas experiências espirituais. E não foi diferente nessa cerimônia. Isso porque já tinha feito uso de Ayahuasca no passado e levado uma belíssima peia (passando mal até, querendo sair do corpo, me tornar água e escorrer pelo meio fio…).

Era, portanto, um receio racional: ter algum tipo de mal estar físico, me descompensar na frente de todo mundo e até ter que lidar com algum tipo de ataque de ansiedade e pânico por navegar em mares desconhecidos. Também tive receio de haver algum tipo de interação medicamentosa com os fármacos para tireóide e anticoagulação que faço uso há anos. Mas o abuelito, explica Amau Cid, é carinhoso, dá um conforto ancestral para quem o recebe, segura em um colo afetuoso os nossos medos e mostra o caminho de expurgo de maneira suave. Tenho que concordar, foi bem assim comigo, ao menos nas primeiras horas onde achava que não tinha “batido” ainda e que estava de boas com os poderes do cacto! A peia atenuada veio mesmo ao final das 8 horas de cerimônia, quase na hora de ir pra casa, mas algo muito leve e administrável se comparado à Ayahuasca.

Fonte: Steemit

As oito horas de cerimônia foram divididas em experiências profundas de êxtase, entrega e partilha de sentimentos de todos os presentes, jogando na roda aprendizados e vivências retirados das profundezas que se constituem de nossas experiências encarnadas. Vindas, no entanto, diretamente do coração, sem pedágio na cabeça que tudo tenta controlar.

Sim, o que colocamos naquela roda dificilmente passou pelo crivo da razão. Foi entregue de forma despida e sem filtro, diretamente do chakra cardíaco, na ausência de uma explicação mais clara sobre a origem da força de acalanto dessa planta andina.

teamwachuma.com

Contei para uma amiga querida que chorei rios de lágrimas felizes e tristes naquele dia, lágrimas de cura profunda e de reconciliação com partes minhas que eu julgava inertes ou anestesiadas. O Wachuma faz isso, reacende. Tira da inércia. Joga a poeira pra fora das nossas jurisdições de controle. Afaga e expele. Incomoda sussurrando no ouvido, enquanto cura e reconstitui as vísceras.

Tenho que dizer que o tambor e os cantos presentes na cerimônia ajudaram até não dar mais. Acho que sou uma cantadora que desce o sarrafo no tambor como se o sincronizasse com as batidas do coração, com o fluxo e contrafluxo do sangue percorrendo veias e artérias. Como se a cada tum tum tum, minhas angústias se dissipassem, se tornassem éter, saídas de vez do meu velho casulo. Os povos indígenas sabem de tudo da arte de despir o velho pra usar com alegria o novo, o que nos pertence de fato.

Entre a fogueira crepitante e as dezenas de histórias partilhadas na roda, o Wachuma foi fazendo nosso coração pulsar alto, manifestando-se também em duas parábolas trazidas por Amau e que encapsularam a noite cerimonial.

A primeira história foi sobre a ameba, aquele protozoário unicelular dos mais antigos no planeta. Um ser tão simples quanto fascinante. Isso porque, comparada a nós, mostra-se mais preparada no quesito “sobrevivência inteligente”. É que a ameba opera de duas maneiras diretas e retas: repele o que é tóxico e aproxima de si tudo aquilo que nutre. Ah, se tivéssemos um décimo dessa sabedoria amebística em nossa vida mundana, não é mesmo, abuelito? A gente cisma e agarra com força aquilo que muitas vezes é tóxico, sem nos darmos conta do quanto isso tudo nos fere e invade.

Outra parábola que me fez um bem imensurável, e com ela vou terminando esse texto, é a forma como o Amau descreve o que é um pensamento genuinamente nosso em contraposição a um pensamento que não nos pertence. Ao jogar essa pergunta para o grupo, ele concluiu: pensamento nosso é todo aquele que é bom, que nutre. Todo o resto é influência do meio, não nos pertence e pode ser convidado a se retirar assim que passar pela nossa consciência. Numa simples parábola, tanto lixo não reciclável foi jogado fora por mim na fogueira, numa limpeza astral que trouxe um suspiro de alívio ao final.

Não sei se foi o Wachuma, se foram as oito horas de cerimônia, os insights rolando aos montes em todos nós diante de tanta cura, mas essas duas prosaicas historinhas de pé de fogueira, quase encerrando a noite, conseguiram a façanha de sintetizar pra mim aquilo que é difícil de se colocar em palavras, porque trata-se de uma experiência mística de enlevo e cura.

Foi tão bom saber que esse poder aceso pelo Wachuma está disponível, como uma fonte criadora e inesgotável, que jorra dentro de nós, a partir de lá, do coração. Esse mesmo poder que sincroniza com as batidas de tantos outros corações ao nosso lado, irmanado, timbrado, em ressonância com as nossas buscas pessoais e nossos padrões vibracionais mais secretos ou escondidos. Um poder que suaviza os processos de cura, que nos calibra para a nossa jornada enquanto aquece e fortalece nossos corações.

Uso aqui uma interjeição inca que quer dizer bem-estar, salvação e que também poderia ser sinônimo do que ficou em mim a partir da cerimônia do Wachuma: HAYAYA! É assim, assim seja!

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Débora Garcia
3Devi
Editor for

Editora do https://medium.com/3devi. Sócia-diretora da Elektra Conteúdo. Tenta entender que mundo é esse e contribuir pra que a passagem por aqui valha a pena.