Alunos ou soldados? O combate a COVID-19 e o enfretamento da morte pelos estudantes das áreas da saúde

Tiago Leal
4virtudes
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3 min readMay 17, 2020
Photo by Eduard Delputte on Unsplash

Nos últimos meses não há outro assunto na mídia mainstream que não seja o coronavírus. Não a culpo. Todos nós estamos preocupados e esse é um tema que vende. Seja como for, nos jornais, no rádio, na televisão e na internet o tempo inteiro o enfrentamento global ao vírus é comparado a uma guerra. Nesse combate, médicos, enfermeiros e outros profissionais da saúde são a linha de frente.

Contudo, em verdade, médicos e enfermeiros não são soldados, e definitivamente não são preparados para morrer durante sua formação acadêmica. Durante meus quatro anos como estudante de medicina, nunca me avisaram que eu poderia perder a vida exercendo a profissão. Não passei por um intenso treinamento psicológico para me arriscar diante da morte, caso fosse necessário. Agora para alcançar meu diploma aparentemente terei de enfrentar um perigo iminente. E, essa é a mesma realidade de todos os meus colegas e acadêmicos das áreas de saúde.

Por mais que a situação seja séria, ainda não seremos treinados como guerreiros. Nossos preceptores não são militares experientes. Ouço histórias de médicos formados chorando nos corredores dos hospitais com medo da doença por serem do grupo de risco. Vejo nos jornais, no horário nobre, médicos desesperados, revoltados, e emocionalmente abalados por enfrentarem uma situação calamitosa com poucos recursos. Não me leve a mal, não estou criticando esses profissionais da saúde, que em um sentido muito verdadeiro do termo, estão se comportando como heróis. Meu ponto é apenas ressaltar que esses homens e mulheres não são soldados experientes acostumados com a ideia de morrer lutando. Logo, não poderão preparar seus alunos a encarem a sombra da morte sem tremer. Em um momento assim, a filosofia vem como uma amiga, que pode mostrar o caminho para a salvação.

A franquia Matrix é uma das minhas favoritas, vi seus filmes quando era adolescente. E, como um menino, não pude deixar de me apaixonar pelas lutas de kung-fu, tiroteios e robôs gigantes. Nada obstante, essa consagrada trilogia também é conhecida por seu pesado conteúdo filosófico. E, uma fala desse filme, é útil na conversa que estamos tendo agora. Os personagens principais estão se preparando para um de seus últimos combates contra as máquinas opressoras. Todos os protagonistas estão reunidos em uma sala planejando sua investida contra o inimigo, quando Morpheus profere a seguinte frase — em um momento tensão absoluta: “vivemos uma guerra, somos todos soldados, a morte pode vir a qualquer hora, de qualquer lugar”.

Meditemos em suas palavras, por um segundo. São verdadeiras em um contexto de guerra, são verdadeiras no contexto do COVID-19. Os alunos da saúde que atenderem na linha de frente estão expostos à morte em sua forma mais crua. Contudo, se pensarmos bem essa frase é verdade para qualquer pessoa.

Todos nós somos mortais, e sempre seremos. A morte pode cair sobre nós a qualquer momento, vinda de qualquer lugar. Pensar de outra forma não passa de uma ilusão. De uma falsa sensação de segurança. O que nos resta então?

Resta-nos a percepção de que a morte é apenas mais um processo natural. Mais uma das transformações pelas quais passam os humanos neste mundo. Não ficamos aterrorizados quando nasce o dente em uma criança ou quando uma mulher grávida dá a luz. Por que deveríamos ficar chocados e com medo da mais certa das transformações?

Marco Aurélio, o filósofo e imperador romano, nos pediu em suas meditações para que vivêssemos cada um de nossos dias como se fosse o último. Recomendo a leitura desse pensador para todos os alunos que, devido a pandemia, de repente se tornaram soldados. O rei filósofo nos pressiona, sua atitude deixam as seguintes perguntas: como você gostaria de passar seu último dia? Como gostaria de ser lembrado em seu último momento neste mundo? Com medo? Ou fazendo o bem e amando com coragem todos a sua volta? A vida é uma brevidade. Não importa quanto tempo ela dura, mas sim como ela é vivida.

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Tiago Leal
4virtudes

A Brazilian philosopher who also is in the fourth year of medical school. I believe that science and intuition can be combined to dream the most truthful words