Sete livros para aguçar a percepção estética

Leobaldo Prado
7 coisas
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5 min readJul 19, 2015

Não tenho nada contra literatura de aeroporto. Mais leve que o ar, ela pode ser bastante divertida. Mas às vezes você não sente vontade de ir ao infinito e além, em busca de coisas mais substanciais? Tem dias em que a gente quer mais do que uma risada.

1

Humbert Humbert, o pedófilo, é também um misantropo. Odeia homens de todas as formas e tamanhos, assim como as mulheres de corpos maduros; odeia Freud e seus asseclas, odeia a personalidade flácida da classe média e seus pequenos sonhos dilatados em suaves prestações; odeia a mediocridade dele próprio e desdenha de quase tudo que se move ou respira.

Mas ama Lolita, completa e irrevogavelmente, e isso produz no leitor um efeito hipnótico que o conduz através das frestas e cantos escuros da mais nefasta história de amor da literatura universal.

2

Clarissa Dalloway decide comprar flores para uma recepção que pretende dar logo mais à noite, em sua casa. E eu juro que antes das dez primeiras páginas pude sentir o aroma de flores inclassificáveis, mas bastante reais, tamanho o alcance dos dons sinestésicos de Virginia Woolf. Suas descrições precisas e poéticas (uma quase-contradição) nos lançam vertiginosamente no centro da Londres acelerada dos anos 20, cheia de movimento e luz: vê-se um avião que produz garranchos de fumaça no céu, um casal tragicamente partido em dois, mil passantes anônimos, um carro misterioso que se dirige ao palácio de Buckingham...

Com ‘Mrs. Dalloway’ caem os últimos pedaços apodrecidos da ideia de que um romance necessitaria obrigatoriamente da trama para existir. Não mais. Bastam os pensamentos e os mundos interiores da protagonista e de tantos coadjuvantes que também são, cada um a seu modo, fundamentais para materializar esse único e esplendoroso dia — o dia em que se passa a história. (ligações óbvias com ‘Ulisses’, embora eu não possa dizer nada, pois nunca o li).

3

O Complexo de Portnoy

Chame de ‘a estética da escatologia’ ou, quem sabe: ‘os judeus e a opressão de si’. O fato é que esse pequeno tratado sobre a masturbação e a família judaica comprova, em poucas páginas, aquilo que parte da civilização ainda hoje reluta em admitir: mães podem ser mais perigosas que lâminas. Alexander Portnoy que o diga, o paciente-narrador-anti-herói-boca-suja-frustrado. Vale pelo retrato amargo e sincero de um judeu que consegue rir de si mesmo, na vida e na arte. Caso raro.

4

Sangue Sábio

A missão de Hazel Motes, personagem principal, é anunciar ao mundo uma seita “onde o cego não vê, o aleijado não anda e o que está morto assim permanecerá”. Que maravilhosa síntese! Quanto sofrimento o irascível e descrente Hazel poderia poupar, se fosse estudado com afinco por certos pastores e fiéis do século XXI!

O sul dos Estados Unidos, aqui retratado por Flannery O’Connor, é feio, amputado, incestuoso e pródigo em sociopatas cristãos. Estranho imaginar que tudo isso saiu do lápis de uma escritora católica e que o objetivo final seja fazer de um ateu a prova viva da vontade do Criador.

5

Na estrada

A contracapa do livro da editora L&PM informa que estamos diante da “Bíblia da geração Beat”. Absurdo, já que a Bíblia seria provavelmente o último objeto a ser encontrado na mochila de Kerouac ou de qualquer um de seus comparsas. Coisas da indústria cultural, sempre obcecada em classificar, categorizar, compartimentar produtos e compradores. Irônico, também, já que o autor dificilmente aprovaria a frase de efeito.

O sabor estético de “On The road” não está na linguagem pouco refinada, embora Kerouac tenha seus momentos, mas no efeito onírico que seus personagens despertam à luz do dia ou da noite. Eles te convidam a viajar e deixar tudo para trás, sem dinheiro ou planos, sem comida ou escova de dentes, sem nada, enfim, a não ser a crença ingênua de que a liberdade está na próxima carona, no próximo cigarro roubado, em cada pequena miséria ou delícia à espreita de quem toma a estrada ou por ela é tomado.

6

“Em sua maior parte, o matrimônio é um maltrimônio. Os dois pensando somar, afinal, se traem e subtraem”.

Se uma frase como esta não te instigar a ler as histórias de Mia Couto, vá ao médico. A citação que escolhi é a abertura de “O baralho erótico”, um dos 35 contos que compõem o livro. Quase todos são tão breves e calorosos que chegam a harmonizar com uma boa xícara de café, ambos terminando simultaneamente. Um misto de realismo mágico e homenagem aos costumes, às tradições e à gente de Moçambique, país onde nasceu este biólogo e escritor. Não deixe de ler.

7

Um escritor precisa ser ambicioso até mesmo num conto de duas páginas, mas para muitos a ambição é perniciosa, pois costuma transformá-los em paródias de si mesmos: querendo ser o que não podem, acabam dolorosamente por mostrar quem realmente são.

Borges, é claro, não está entre esses muitos. Numa única página ele é capaz de acomodar metafísica, teologia, o tempo e a finitude, mantendo o diálogo com clássicos da literatura do mundo, a filosofia e o realismo fantástico, sem que uma coisa jamais venha a esbarrar na outra. “O Aleph” é o trabalho de um gênio, e todo leitor deveria dar-se esse presente.

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Leobaldo Prado
7 coisas

Jornalista, locutor / narrador. Produtor e apresentador do podcast de literatura ‘Verso da Prosa’