Bleach: Uma dança com Fullbringers

hela santana
7 / 4
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9 min readJul 29, 2020

The Lost Agent é um dos meus momentos favoritos de Bleach — e, em tempos de seu lançamento, foi provavelmente um dos mais odiado pelos fãs do mangá de Tite Kubo. O arco de transição entre o fim da saga de Aizen, um dos melhores vilões na história da Shonen Jump, e a Grande Guerra Quincy, que culminou no fim repentino da obra, tirou o foco da história sobre o mundo de shinigamis e hollows e nos fez acompanhar o dia-a-dia de um Ichigo sem poderes, melancólico, impotente e demasiadamente humano, como consequência direta das lutas na Guerra de Karakura. No desespero para ter sua vida espiritual de volta, Ichigo acaba conhecendo e aceitando a ajuda de um grupo que se identifica como Xcution, uma equipe de seres humanos com uma estranha habilidade: o fullbring.

Capítulo 432: O panteísmo da alma
Capítulo 432: O panteísmo da alma

O fullbring é a habilidade de controlar a alma, ou energia espiritual, que reside em todas as coisas e usá-la a seu favor. Fullbringers são pessoas que, até mesmo antes de seu nascimento, de alguma forma tiveram seus espíritos afetados pela energia de um hollow (os bichão que geral quer matar versão Bleach). Por mais que o conceito fosse novo, já tínhamos em Inoue e Sado exemplos práticos de poderes fullbring desde o começo do mangá, e foi muito divertido na época ver Kubo usando um arco inteiro apenas para expandir o conceito.

Em seu estado mais aprimorado, o fullbring permite ao usuário manipular a forma física de um objeto — ou alguma coisa — com quem tenha muita conexão para liberar seu poder total. Sado, por exemplo, é um fullbringer que pode alterar a forma de sua pele. Isso acontece porque, como descobrimos nesse mesmo arco, ele tem extremo orgulho da sua cor escura, onde canaliza toda energia da sua alma. Já Inoue mostra seu poder através de uma presilha de cabelo que ganhou de seu falecido irmão, que cuidou dela durante toda a vida. Tsukishima, leitor voraz, ativa seu fullbring através de um marca-páginas. Ichigo faz o mesmo através de seu distintivo de shinigami substituto, uma prova de sua conexão com o mundo espiritual. E por ai vai.

Capítulo 436: A disciplina do Tempo

Aliás, pausa pra admirar o fullbring do Sado:

Precisei dar essa pequena introdução porque esse texto não é uma análise profunda sobre esse o arco e Bleach como um todo,mas eu preciso que você relembre ou tenha a definição de fullbring em mente para o resto do texto. E sei que muitos temas são abordados nessa fase do anime/mangá e talvez eu os explore em algum outro momento — provavelmente não tho.

Mas hoje eu quero falar de música.

Música foi uma grande inspiração para Tite Kubo durante o processo de criação de Bleach. As vezes elas são colocadas como easter eggs aqui ou ali, mas no geral os temas musicais dos personagens acabam se refletindo de uma forma ou de outra em suas personalidades. “News from the front” do Bad Religion, tema de Ichigo, demonstra muito bem o desespero do protagonista em querer o tempo todo salvar todas as pessoas por achar que ninguém tá fazendo o bastante para isso. Idioteque do Radiohead, tema de Ishida Uryuu, fala sobre o mundo se acabando em guerra, terror e gelo, o que por si é um resumo estético da saga final do mangá: guerra, sangue, duas facções fascistas se matando em ruínas de sombra e gelo, enquanto inocentes morrem. E eu duvido MUITO, mas muito MESMO que o novo projeto de Kubo, Burn The Witch, história que expande o universo de Bleach, não tenha alguma inspiração na também música do Radiohead com o mesmo nome — mas isso também é outro papo.

Com os fullbringers, Kubo levou essa inspiração ao pé da letra e literalmente moldou quatro desses personagens para serem a personificação de algumas das suas músicas favoritas — e minhas também. Personalidade, passado, visual, habilidades e poderes, tudo sobre Jackie, Riruka, Giriko e Yukio nasceu da vontade do autor em transformar música em personagens de mangá. Não há nada de original nisso, eu sei Jojo fã, calma. Mas eu não ligo muito pra originalidade em Bleach, só gosto de como Kubo usava esse tipo de coisa na narrativa.

Agora, vamos dançar.

Jackie Tristan nasceu em uma família pobre e o único presente que recebeu na vida foi um par de botas que seu pai a deu, quando era ainda pequena. Ela amava aquelas botas e tomava todo o cuidado do mundo para mantê-las sempre limpas. Passava horas cuidando delas. Essas mesmas botas são o objeto por onde ela canaliza seu fullbring, o qual chama de Dirty Boots.

A habilidade é ativada quando Jackie esfrega as botas uma na outra. Seu visual muda um pouco, fica mais rock n roll. Dirty Boots a deixa com força sobre-humana e a permite se mover em velocidade supersônica. Durante a batalha, quanto mais sujeira entra em contato com Jackie, seja a terra onde pisa ou sangue do inimigo, mais forte e mais rápida ela fica.

O visual e a habilidade da personagem são inspiradas no álbum Goo, da banda Sonic Youth. Algumas conexões são bem óbvias, como o poder de Jackie ser o nome da faixa de abertura do LP, Dirty Boots, mas basta ver os videosclipes dos singles do álbum (de onde as roupas de Jackie parecem ter sido copiados de forma quase direta), e dar uma olhada no que diz faixas como Cinderella’s Big Score (If I could give you anything I would give you a kick), Mote (I am airless–a vacuum child) e Kool Thing (I mean, are you gonna liberate us girls from male white corporate oppression?). Amo.

Yukio Hans Vorarlberna, prodígio empresário que ainda adolescente hackeou o negócio dos pais, os deixando na falência, e tomou para si toda a fortuna da família. Em um rápido flashback, descobrimos que os pais de Yukio não eram lá muito bons em cuidar de criança e o deixavam trancado o tempo em seu quarto. Sem nenhum contato com o mundo externo, o garoto se viu imerso em games e realidades virtuais. Foi quando seu fullbring, Invaders Must Die, despertou.

Invaders Must Die permite a Yukio trancar pessoas dentro de seu videogame e, uma vez la dentro, ele pode fazer o que quiser com elas. Além disso, seu poder também funciona como uma versão portátil da matrix onde ele é o arquiteto. A habilidade é usada como campo de treinamento e foi importante principalmente no fim do mangá, quando Ichigo precisou invadir os domínios de Yhwach. Se você é fã de The Prodigy, deve ter sacado já:

Giriko Kutsuzawa é um personagem que não gosto muito, porque ele é um daqueles casos de “tenho um poder incrível, logo sou extremamente arrogante e burro”, mas gosto do que ele representa. Seu fullbring se chama Time Tells No Lies e lhe concede a capacidade de criar pactos com o deus do tempo, que o favoreçam de alguma forma. A habilidade é canalizada através de um relógio passado de geração a geração aos patriarcas da família Kutsuzawa, que eram devotos ao objeto e o louvavam como se fosse um deus encarnado.

Giriko faz parte uma classe bem específica de personagens em Bleach: ele enfrentou a besta-fera Zaraki Kenpachi. Kenpachi é tratado durante toda a obra como uma força da natureza tão poderosa que sequer pode controlar a si mesma. Nem mesmo os deuses poderiam o controlar e seus inimigos geralmente possuem alguma simbologia relacionada a devoção ao divino. Um dos adversário mais marcantes, o arrancar Nnoitra Gilga, por exemplo, é inspirado na figura do louva-deus e tanto sua habilidade quanto o capítulo onde a revela levam Praying Mantis (louva-deus) em seus títulos. Daí tentando entender Giriko (odeio esse nome), joguei no google praying mantis time tells no lies e cheguei em uma banda chamada justamente Praying Mantis e que por acaso também tinha um álbum chamado Time Tells No Lies. As músicas da banda nesse LP exploraram muitas coisa que conhecemos de Giriko, como o fato dele ter sido um riquinho mimado (Rich City Kids), amplia possíveis motivações para ter feito o que fez com a esposa (Lovers to the Grave)— to evitando muitos spoilers porque vai que você deseje ler um dia xD — etc. Mas o mais interessante é como a faixa Children of the Earth resume todo o papel dos fullbringers na obra.

Como falei lá no começo desse texto, toda a história desse arco é centralizado na perspectiva humana sobre uma guerra onde humanos são ignorados e, ao mesmo tempo, vítimas primárias. Hollows matam humanos, shinigamis, no pós-vida, tratam humanos de forma miserável e por aí vai. Os fullbringers são, no fim do arco descobrimos, apenas um grupo de humanos que, de um jeito ou de outro, foram vítimas desse mundo espiritual caótico e se revoltou contra tudo isso. Elus não tem mais família, paz, ou sequer um real propósito, apenas ódio contra shinigamis e toda merda que eles causam. A galera ficou puta e a gente tá acompanhando o momento em que literalmente ligam o “foda-se essa merda”. Children of The Earth é uma canção sobre a pequenez humana diante dos deuses, exatamente o que a Xcution e os fullbringers são.

Enfim, a hipocrisia. Digo: enfim, é lindo. O que não é lindo é a história da Riruka, pois o que de bom poderia sair de alguém com inspiração em Heart-shaped Box, do Nirvana.

Riruka Dokugamine é uma garota riquinha, mimada e stalker. A história dela é um pouco perturbadora e eu nem gosto muito de falar sobre, mas quem liga pro que fã de Bleach sente, não é mesmo? Seu fullbring se chama Dollhouse (Casa de Bonecas) e permite que ela mova pessoas para dentro de qualquer objeto que ela goste. Em exemplo práticos: Riruka poderia, literalmente, colocar você dentro de uma caixa, de um bichinho de pelúcia, ou um casinha de boneca, se assim quisesse. Na verdade, eu cheguei à conclusão de que ela é inspirada em Heart-Shapped Box porque ela literalmente levou deixou um cara que gostava preso dentro de uma de suas caixinhas de brinquedo por semanas, porque acreditava que isso faria ele a amar. A músic do Nirvana é como se fosse esse pobre coitado cantando sobre o que Riruka fez com ele. Literalmente isso.

Nós conhecemos Riruka anos depois desse episódio, e ela tem um dos amadurecimentos mais legais dessa saga. Seu passado serve para mostrar como um poder muito grande nas mãos de, literalmente, crianças pode ser aterrorizante. E eu sei que falei lá em cima que não gosto muito de falar sobre ela, porque acho real essa história meio pesada, mas o fato é que Riruka é outra criança com uma trajetória toda pautada em abandono e solidão, assim como Yukio e também até Jackie.

Esses personagens são a visão do Kubo do que acontece quando um grupo de gente com potencial incrível acaba se perdendo em caminhos tortuosos. Pior ainda, acabam sendo guiadas pelas pessoas erradas. Eu gosto muito dos fullbringers por isso, é mais fácil se identificar com eles do que com um cara que é simplesmente fuderoso porque sim. E eu sei também que Bleach não é lá das melhores e geniais histórias que existem por aí. Mas tenho um carinho muito especial por esses personagens e gosto muito de dar play nessa lista de músicas e dançar com eles.

Quem sabe um dia você queira dançar com a gente também. É bem Kool.

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