Cansa demais; sempre ser forte
Ontem a noite eu tive o mesmo pesadelo.
Uma esquina escura. Alguém me deita no chão. Um ferro frio na minha nuca. “Pode passar, ninguém vai sentir falta”, ouço um dos homens falar.
Um carro branco se aproxima. O motorista quer saber que porra é essa. Assustados, tiram o cano frio da minha nuca. “Corre”. E eu corria. E corria. E corro um pouco mais. Até tropeçar e cair de cara no chão.
E aí eu acordo. Ofegante. Com o ar preso na garganta. Com a minha mão fechada em volta do meu pescoço. São cinco da manhã.
Minha mão vai até a nuca e se demora ali por uns eternos segundos. Nenhum buraco, nenhuma gota de sangue. Só a sensação do ferro frio na nuca, que vai me acompanhar o dia todo e o resto da semana. Uma lágrima se forma no meu olho e logo eu a mato. Eu não quero chorar.
A caminho da geladeira vazia, a primeira eureka! do dia. “Ah é”, eu falo sozinha há 10 meses, “Foi lembrança, não sonho”. Me encho de água gelada, mas não tão fria quanto o que tô me tornando. O relógio mostra que já são quase seis. É dia 29. Dia de Visibilidade. A data deixa visível a contagem regressiva para o vencimento do aluguel. E eu tô desempregada.
Abro o app do youtube. “Ha ha!”. E dou risada de um vídeo engraçado qualquer, que revejo há dez meses.
Café com cream cracker e estou de novo na cama. Tem uma mosca bem chata me circulando. Olho pra pia da cozinha e vejo mais duas. Friendly are the fruit flies, a música ecoa pela casa podre e vazia.
Decido fazer algo. Mas fazer algo cansa demais. Então eu abro o twitter e fico olhando sem ver nada. “Eu devia estar feliz hoje”, mas felicidade cansa demais.
Abro o computador e reviso um roteiro que ninguém quer comprar. “Ha ha! Ficou massa”, eu gosto de falar pra mim mesma que sou bem boa nisso. Uma roteirista sem roteiro.
Friendly are the fruit flies, a música ecoa pela casa podre e vazia de novo.
Decido fazer alguma coisa. Mas fazer alguma coisa cansa demais. Então eu abro um jogo no celular e jogo sem jogar. “Eu devia produzir algo novo hoje”, mas produzir pra mim mesma cansa demais.
Abro o computador e reviso um argumento que ninguém quer comprar. “Ha ha! Ficou massa”, eu gosto de falar pra mim mesma que sou bem boa nisso. Uma argumentista sem argumentos.
Friendly are the fruit flies, a música ecoa pela casa podre e vazia de novo, outra vez.
Decido fazer tudo diferente. Mas ser diferente é cansativo demais. Então eu me abro e vejo que estou me fechando. “Eu devia ver aquelas moscas”, e dessa vez eu saio da cama.
Quando me aproximo, mais moscas saem voando em minha direção. Many are my wishes, a música ecoa dentro de mim.
E aí eu vejo lá dentro, fechando o ralo.
É minha nuca. Com furo, fedor e sangue. “Ah é, ha ha ha”, lembro, “não foi sonho, nem lembrança. Eu morri aquela noite, mas esqueci de morrer”.
E então eu volto para a cama. São cinco da manha de novo. Me deito esperando que alguém me enterre.
Abro o computador e escrevo esse texto. Mais tarde eu publico ele.
“Eu vou conseguir”, minto. Eu minto sozinha há dez meses. Uma notificação aparece no celular.
“Admiro sua força, Hela!!!”
Sorrio. Outra lágrima se forma em meu olho. “Amiga, você tá bem?”, haha eu não consigo responder. E outra lágrima no outro olho. “Você é incrível, Hela”, eu não consigo entender. E depois mais duas lágrimas. E eu choro. Choro. Choro água gelada, até apagar.
E então, o barulho do tiro.
Cansa demais, sempre ser forte.