De Gorillaz a Jup do Bairro: em 2020, só a música salva

hela santana
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8 min readJun 17, 2020

Música tem sido meu refúgio desde a adolescência. Não tive muitos amigos na época do ensino fundamental, o mesmo se repetiu no médio e com o passar do tempo passei a me sentir mais confortável longe do que perto daqueles poucos que acreditava ter conquistado. Amizades podem ser tão tóxicas e abusivas como qualquer outro tipo de relacionamento, e é bem provável que você me lendo agora tenha passado por algo semelhante durante essa fase da vida, principalmente se não for uma pessoa branca, cis e/ou hetero.

Lembro ainda hoje que foram faixas como Atoms For Peace do Thom Yorke, um chamado a tentar sair da fossa, que na época me fizeram começar a refletir sobre o motivo de me sentir tão só o tempo todo, de ser tão difícil sair da cama, e me levaram a dar um primeiro passo a caminho de entender que tudo isso eram, descobriria não muito tempo depois, sintomas de uma depressão latente. Apenas o começo de uma jornada que ainda sigo, mas algo muito importante para mim, porque não sei onde estaria hoje se não tivesse descoberto tão cedo que precisava de ajuda. E tudo isso começou com uma música dizendo “eu vou ficar bem”.

Esse resuminho do meu relacionamento sério com a música é só pra deixar bem claro o porquê de eu estar literalmente TÃO excitada com ela em 2020. E E fica um leve aviso de que isso não significa que pra mim nada de bom (dentro do que eu considero bom) foi feito no passado recente, até porque as obras de arte que são Do Banzo ao Orun, de D’Ogum, e Magdalene da FKA Twigs, por exemplo, são de 2018 e 2019 respectivamente. É que fazia muito tempo que não me divertia tanto com música. A última vez que algo assim rolou foi naquele período doido entre 2008 e 2009 — dá um google nos lançamentos da época e tu vai me entender. E me anima demais ver que em um ano tão, mas tão bosta como tem sido 2020 algumas das mentes musicais que mais amo nessa vida estão lançando tanta coisa boa, uma atrás da outra, que o efeito disso tem me mantido sã em meio a quarentena e paranoia coletiva nesse planetinha.

Por exemplo, Gorillaz foi minha primeira paixão musical, ainda lá na infância. Eu me lembro de ter um VHS onde gravava os clipes e qualquer coisa sobre a banda sempre que apareciam na TV, tinha até uma entrevista do Damon Albarn no finado Planeta Xuxa falando sobre o que a ideia de uma banda virtual significava, o debut dos caras foi o primeiro CD físico que tive— ainda lembro da minha mãe me levando a Campinas/SP pra comprar uma cópia (piratona), de tanto que chorava pedindo aquilo. E foi também minha primeira alegria de 2020, que chegou do nada com eles anunciando Song Machine, projeto audiovisual da banda, que estreou em janeiro com a PERFEITA (sim, eu estou gritando) Momentary Bliss.

Quando apareceu notificação de atualização no canal deles eu quase choro de novo. E a música é foda, o clássico som da banda com uma roupa totalmente nova. Song Machine tem quatros singles lançados até o momento, sendo o segundo deles, Désolé, aquela que pra mim já é a melhor produção musical de 2020. Não tem como ficar triste com isso sabe.

Gorillaz foi só o começo (pra mim). Dua Lipa e Lady Gaga lançaram dois dos melhores álbuns pops dos últimos anos. Future Nostalgia faz jus ao nome e nos dá meia-hora de um pop gostosinho banhado de influências oitentistas. Se você não faz uma dancinha ao som de Don’t Start Now ou Physical é porque já morreu por dentro. O álbum ainda nos dá delicinhas como Pretty Please e Break My Heart. Do outro lado, Chromatica é uma surpresa completa. Não me empolgo m e s m o com um álbum de Lady Gaga desde The Fame Monster. Boring This Way tem uma ou outra coisa legal, assim como Joanne e ARTPOP ainda é pra mim o pior desastre na carreira da Gaga, então minhas expectativas por um trabalho novo dela eram quase inexistentes.

E talvez isso tenha ajudado, porque até nos seus momentos mais fracos eu ainda consigo amar o trabalho novo daquela que dez anos atrás foi a criatura mais estranha da cultura pop e que finalmente conseguiu voltar a boa forma. O feat dela com Ariana Grande, Rain on Me, músicas como 911 e Babylon são algumas das melhores coisas que Gaga já fez. É um tipo diferente de nostalgia da que Dua Lipa nos ofereceu, mais centrada na sonoridade dos anos 90 e começo dos 2000 — alguns momentos de Rain On Me parecem gritar “DISCOVERY!!!!!!”, do Daft Punk. Tudo.

E falando em pop, você já ouviu Comme Des Garçons hoje? Devia. Porque Rina Sawayama tem provavelmente a música pop do ano — pelo menos no primeiro semestre não teve single melhor nesse nicho do mainstream. Elton John chegou a dizer recentemente que SAWAYAMA é o melhor álbum de 2020, mas aí é com ele e não comigo.

Fiona Apple também deu as caras com o lindo, lindo, lindo e lindo Fetch the Bolt Cutters, seu primeiro lançamento em oito anos. Eu não vou me prolongar muito aqui porque não quero me expor, mas sim danço pela casa ao som de I Want you to Love Me enquanto choro. O álbum soa tão cru que dói. É lindo, lindo, lindo e lindo². E falando em lágrimas, por motivos bem diferentes quem também me fez e tem feito chorar é Arca e vou ser bem sucinta e direta quanto a isso: what a treat it is to be nonbinary, ma chérie.

Willow, que tem um dos melhores álbuns de 2019, lançou recentemente o divertido projeto THE ANXIETY em parceria com o músico Tyler Cole. Childish Gambino e Grimes não viveram para o hype de seus trabalhos anteriores mas, mesmo assim, ainda entregaram muita coisa interessante nos experimentais 3.15.20 e Miss Anthropocene. Na real, Delete Forever, música sobre vícios, ainda não saiu dos meus ouvidos desde o seu lançamento — e o vídeo ainda tem referência a Akira (falei sobre o filme nesse texto), o que é um plus. Sério, olha que coisa linda:

Já estaria feliz e satisfeita com os exemplos que dei acima. São horas e horas de música boa e trabalhos audiovisuais incríveis só nessa listinha — e considerando que estamos ainda na metade do ano, tá bom demais né. Arca e Grimes principalmente tem nos demonstrado um espetáculo futurista maravilhoso em seus vídeos. E a mistura de animação e mundo real que os Gorillaz tem feito chega ser surreal de tão boa. Mas 2020 tá igual coração de não-monogâmico, sempre cabe mais um amorzinho. E putz, se tem uma coisa que a gente tem precisado muito é amor.

Eu avisei todes vocês ano passado: fiquem de olhos atentos e ouvidos muito bem abertos para o projeto autoral da Jup do Bairro, Corpo Sem Juízo (leia aqui). Eu disse que seria reflexo de algo maior, um discurso gigante. Um símbolo perfeito do apocalipse de gêneros, sexos, línguas, dedos, bucetas, paus e cus que se tornou a disputa por narrativas entre o normal e o marginal tão palpável que (sim não começou agora, mas) vivemos como nunca hoje em dia.

O EP não é um espelho onde a gente possa se enxerga — mais que isso — é um mergulho na imensidão bela e cheia de complexidades que é Jup, sua arte, sua grandeza, sua beleza, seu corpo. E enquanto mergulhamos em sua música ela mergulha de volta, agora em nós. Essa sensação fica forte em faixas como Transgressão e ganha um cheiro menos melancólico e azul em O Corre e All you need is love, mas tá lá o tempo todo, do começo ao fim. Jup serviu muito mais do que prometeu.

O trampo tem participação de outros artistas que também tem nos presenteado com trabalhos maravilhosos. Mulambo, que faz feat com Jup na faixa Luta por Mim deixou geral com saudades de mozão nesse dia dos namorados de quarentena com a poética Meu sim, parceria com Indy Naíse.

E Rico Dalasam que lançou o que é, pra mim, seu melhor trabalho até agora: Dolores Dala Guardião do Alívio. O álbum é forte, sensível e trás algumas das composições e produções mais ricas de Rico (ba dum tss); Mudou Como? e Vividir provavelmente já sejam duas das minhas músicas favoritas em sua carreira. Longe de mim dizer que o que veio antes não é tão bom quanto, jamais, mas esse é um daqueles álbuns que dividem a carreira de um cantor. Rico nunca esteve tão maduro e coeso como aqui. É lindo. É muito bom.

Quem voltou como se nunca tivesse partido foi o The Strokes, pra alegria dos já-não-tão-adolescentes indies dos anos 2000 que cresceram ouvindo Is This It? e cantando Last Nite no banheiro. The New Abnormal só tem coisa boa, do começo ao fim, com um som que soa old-school-só-que-não e faz total jus ao nome do projeto. Só o Strokes poderia nos dar um jam tão gostoso quanto Odd to the Mets no mesmo álbum que tem uma chuva de sintetizadores tão densa como em At the Door — aliás o vídeo dessa música é uma perfeição. E é por isso que eu falo com tranquilidade: esse é o melhor álbum dos caras desde Room on Fire e se você quiser discordar, discorde aí na sua casa, os adultos estão conversando aqui.

Tame Impala também não quis ficar pra trás e nos deu de presente The Slow Rush, que mesmo não sendo a melhor coisa do mundo, ainda é melhor que 90% do que tá por aí, uma pequena bíblia religiosa para os seguidores de Kevin Parker. Tomorrow’s Dust e Is It True? vão tocar aqui em casa até a próxima década e elas nem são as únicas coisas boas no álbum — que de ruim tem nada. Brancos que amo.

Por último e não menos importante, o contrário na verdade, eu preciso citar RTJ 4, o último álbum de Killer Mike e El-P, a dupla por trás do Run the Jewels, que lançaram, de novo, mais uma prova do porquê eles serem tão grandes na cena hip-hop mundial. O álbum é foda e trás comentários sobre o caos causado pelo capitalismo e a violência policial, como vemos nas músicas JU$T e walking in the snow. Quer dizer, o clipe de Ooh LA LA é literalmente uma festa de celebração ao fim do capitalismo, isso já fala por si. Foda.

Queria ter escrito esse texto em contexto diferente, mas espero que ele sirva como uma pequena carta de amor e obrigada a todes esses artistas e, além, para toda pessoa que trabalha com arte e tem salvado tanta gente, todo dia, com o trabalho que fazem com tanto amor carinho e dedicação, em um mundo que nem sabe valorizar o que vocês fazem.

E pra gente, o público, louco que tudo isso é só uma amostra, porque tem tanta coisa boa que já saiu em 2020 e tem tanta coisa que ainda nem tive tempo de saborear.

E ainda é junho, mano!

Quer dizer, ainda tem espaço pra Rihanna, Linn da Quebrada, Beyoncé, Kendrick Lamar, tanta gente FODA que poder lançar coisa até o fim do ano que eu nem sei se tô preparada. Ouvi dizer que até Portishead pode ressuscitar, e boatos que Kaique Theodoro tem lançamentos na gaveta.

Que a gente viva pra ver, ouvir e dançar tudo isso juntes quando essa pandemia passar. Eu não aguento mais, inclusive. Mas okay. A gente consegue.

Amém música.

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