Eu não sei amar ninguém #1

hela santana
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5 min readNov 20, 2016

Aos catorze anos eu tive minha primeira paixonite. Esse guri [vamos chamá-lo de Davi) da minha turma na escola, que nas primeiras semanas de aula eu não suportava mas que acabou se tornando meu melhor amigo com o passar dos anos. Eramos quase vizinhos (eu morava a dois quarteirões da casa dele), e passou a ser parte da rotina irmos para a aula juntos, estudar juntos, sair no fim de semana juntos, tudo juntos.

Ter uma amizade assim, naquele ano, significou muito pra mim. Poucos meses antes, eu havia começado a dar meus primeiros passos para fora do armário, o que culminou no meu desligamento da igreja batista que eu frequentava e, por conseguinte, o afastamento de todos aqueles que um dia me chamaram de amigo. De um dia para outro, fui de alguém querido a uma pobre alma tomada pelo demônio e rastejando em dores rumo ao frio fogo do inferno. Olhando para trás, vejo hoje que o estopim para minha depressão nasceu ali. Eu amava aquelas pessoas e de repente é como se elas nunca tivessem existido — ou melhor, como se eu tivesse morrido para elas.

Os meses que seguiram foram de intenso isolamento, minha rotina com a igreja é que vazia meu bem estar, eu mal ficava em casa na verdade. Ter que encarar uma realidade onde eu não tinha nada além de um ambiente escolar violento e um teto que pouco se importava com o que acontecia comigo, deu pane no meu sistema. Aquele foi o meu primeiro período de depressão profunda, aos catorze anos de idade.

Foi por isso que voltar a sorrir com o aroma novo de uma amizade nascendo longe de toda aquela merda me fez tão bem, no começo. Eu e Davi nos dávamos bem porque eramos opostos. Ele era o objeto de desejo e admiração da sala. O branco, o inteligente, o que todos queriam no seu grupo de trabalho, o que os professores adorava. Eu era só o forçadamente engraçado e constantemente silencioso, o feio, o dentuço simpático, o, como se dizia na época, emo. Emo foi o primeiro nome carinhoso que todo mundo ao meu redor me deu, em deboche, por causa da minha depressão. Não me importei na epoca, mas me causa nojo hoje.

De qualquer forma, apesar dos pesares, eu tentei não me deixar levar por essas simetrias que as pessoas jogavam em mim e Davi, incomodadas por sermos tao próximos o tempo todo — elas realmente falavam na nossa cara essas coisas, mas a gente só ria mesmo. Tudo muito patético.

Mas então os rumores começaram. Não é muito legal que dois adolescentes sejam vistos o tempo todo juntos. Foi questão de meses até os boatos de eu ser gay se espalharem, e, logo, a fofoca de que eu era loucamente apaixonado por Davi se consolidou certeza nas piadas de todo mundo. Eu não dei a mínima, naquele momento. Minha cabeça ja fritava demais com a confusão causada pela raiva que eu sentia de mim mesmo, por gostar de outra cara. Foram meses de paranoia até que a depressão me abraçou de vez.

E aí aconteceu.

Um dia Davi apareceu me dizendo que estava namorando uma menina do bairro vizinho. Parte de mim ficou triste, confesso, mas a outra simplesmente não se importou — fosse lá quem fosse, até então, Davi se dizia hetero e nem em sonho eu me permitiria aceitar gostar de alguém como ele. A história era meio sem pé nem cabeça, mas só disse “legal, vamo dar role com ela” e a vida seguiu. No dia seguinte, na escola, nossas amigas comentavam da tal namorada, como sendo uma menina incrível e maravilhoso. Todas a conheciam, menos eu. E isso eu não conseguia entender. Não entrava na minha cabeça por qual motivo Davi teria apresentado sua namorada pra todo mundo menos pra mim, seu suposto melhor amigo.

Os dias foram passando, e me acostumei a conviver com conversas constantes de todo mundo sobre esse fantasma que todos conheciam menos eu. Pela forma que se falava dessa garota, passei a acreditar até que eu me apaixonaria por ela se a visse algum dia — no discurso alheio, ela soava como a perfeita heroína de qualquer história clichê.

Quase um mês depois, decidiram marcar um rolê com todo mundo — inclusive a tal namorada secreta. “Finalmente”, eu pensava, “hora de conhecer a famosa mina”. No sabado a noite nos encontramos numa lanchonete perto de casa. Hora vai, hora vem, mas só a menina não chegava. Por algum motivo, todo mundo ria quando eu perguntava dela. Passei a ficar incomodado, porque algo de muito errado tava rolando ali e sinalizei que estava indo embora, foi quando, em meio a gargalhadas, Davi confessou:

“Essa menina não existe. A gente achou que seria legal inventar essa história pra ver se isso te incentivava a tentar namorar uma menina também. Tão falando muito que você é… viado, e eu fiquei preocupado. Só quero te ajudar”. E nova explosão de risos.

Até então, poucas foras as vezes na minha vida em que me senti tão humilhado quanto naquele momento. Cada riso que soltavam foi como uma faca me rasgando de dentro pra fora. “Tá acontecendo de novo”, eu me lembro de pensar. As pessoas que eu chamava de amigas estavam, de novo, escolhendo outra forma de usar nossa amizade para me violentar e lavar as mãos depois. Não consegui dizer nada. Só saí da mesa chorando, envergonhado e com o nojo que eu sentia da minha sexualidade me consumindo como nunca antes. Quando cheguei em casa, pela primeira vez, pensamentos suicidas começaram a percorrer pelo meu corpo. Eu queria morrer. Sumir. Nunca ter existido. De que adiantava gostar das pessoas se, no fim, elas sempre pareciam ver em mim uma piada? De que adiantou sofrer em silêncio com uma sombra de paixão que eu tanto odiava e, no fim, se mostrou uma faca no meu peito?

Naquela noite, um vazio novo nasceu dentro de mim. Sem fronteiras e infinito. Uma parte do que eu estava me tornando tinha acabado de morrer.

E eu chorei.

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