Eu sei falar de outras coisas

hela santana
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5 min readNov 5, 2017

Vinte e Dois de Março de 2009 foi um dos melhores dias da minha vida foi. Eu estava prestes a completar 18 anos (meu aniversário é em 7 de abril), e meses antes ja havia decidido qual seria meu presente de “olá, vida adulta”: me dei um domingo com Kraftwerk e Radiohead — teve Los Hermanos também, mas, filler.

Poucas são as pessoas do meu círculo de amizade hoje — que é formado majoritariamente, mas não de forma proposital, por gente ligada a ativismo social — sabem, mas o Radiohead é minha banda favorita. Conheci eles lá nos meados de 2007, quando o Orkut ainda era cool e o msn ainda respirava. Um amigo me passou Killer Cars, uma música deles, que achei daora e quando menos esperei, passei a tentar aprender inglês por conta mesmo — já que minha mãe não tinha condições de me pagar um curso e o ensino na escola era puro lixo — só pra ter o prazer de entender e cantar minhas novas músicas favoritas.

Em 2008, quando anunciaram a vinda ao Brasil, eu surtei. Primeiro porque queria realizar esse sonho que sempre achei impossível, segundo porque, bem, eu era pobre. Minha família não teria como pagar para eu vir a São Paulo ver um show de 300 reais. Então procurei um trampo fulera mesmo, de meio período, que me rendeu 200. Como depois descobri que pagaria meia-entrada, fiquei chorando de alegria. Estadia eu dava um jeito depois — e dei, risos.

Na época, eu estava no começo de uma crise de depressão que me seguiria até hoje. Foi quando meu comportamento suicida começou a se manifestar também. Havia saído do armário, a repulsa pela minha imagem no espelho ja se tornava um pequeno monstro crescente e eu não sabia o que fazer com o desconforto que isso causava em mim e em todo mundo ao meu redor. Eu estava, como muitos na época, trancada em mim, na minha internet discada e nas minhas músicas. Uma vermezinha estranha se perguntando o que diabos fazia por aqui e se sentindo pertencente a lugar nenhum.

Mas quando saí de casa no dia 21/03/09 e embarquei pra capital, nunca me senti tão viva. E na madrugada do dia seguinte, parecendo um zumbi sem forças, depois de morrer e renascer mil vezes durante um show de quase 3 horas intensas, eu me senti viva como nem sabia ser possível.

Nunca imaginei que realizaria um sonho nessa vida, esse eu consegui. Mas pouca gente sabe disso. Talvez quase ninguém, para sermos sinceros. E não é porquê eu não goste de falar sobre, é só que no lugar em que tô ninguém está interessado — sério.

Como disse ali em cima, vivo hoje constantemente dentro desse contexto de militância. Se por vontade ou por acaso, não importa, mas é a realidade da situação. E até acredito que isso seja um sinal bom, porque literalmente convivo com pessoas negras e/ou LGBTs, então a necessidade de conscientização política é mais que necessária, é urgente.

Mas tem me cansado como as vezes a Santana não existe nem em mesa de bar: de um lado, é uma sociedade antagonista a mim que me recrimina por tudo que simplesmente sou, do outro uma galera que só consegue me ver não como ser humano, mas como o resultado final de tudo que me fode. É como se eu não tivesse história ou ela como um todo não importasse, só alguns capítulos : o racismo que sofro, a LGBTfobia que me devora, os padrões que me apedrejam.

Ninguém parece estar interessado em discutir nada comigo que não seja esses assuntos, porque aparentemente são só dessas coisas que pessoas como eu precisam ser capazes de falar.

Quantas foram as vezes em festas, bares, rolezinhos pelo centro, que vi as minhas amizades cis, héteros, brancas discutindo, sei lá, do último filme dos Vingadores e o que gostavam mais em Digimon, sem nenhuma pretensão de discussão política, saca, só conversar, mas ai apareço e o papo muda para qual foi o racismo que sofri naquele dia — porque tudo precisa ser um debate.

Outro dia, literalmente, eu contando piadas com umas amigas e um conhecido gay, branco e cis, queria uma aula sobre como se relacionar com caras negros sem fetichizá-los. Aí você foge e se depara com um outro, que não quer saber como ta a cerveja, mas sim se você tem material sobre qualquer coisa pra passar, abre o celular e mensagem de gente querendo recomendações pra sei la o quê de mesa tal, vai no banheiro e alguém grita “hey, tu é marxista ou anarquista?”, ta indo pra casa e tem que ouvir no caminho mil coisas que só remetem ao mesmo fato: eu não existo.

Nunca um oi.

Nunca um que filme vc viu ontem.

Nunca um vai ter um evento sobre patinhos molhados tomando sorvete de goiaba, bora?

Rapaz, não consegui sair hoje para tomar uma cerveja, porque eventualmente alguém ia aparecer querendo saber da minha opinião sobre qualquer coisa que eu não to afim de falar, mas se não falo, todos somem.

E eu me pergunto até onde isso ai não é racismo e lgbtfobia também. Até onde me condicionarem a ter que ser enciclopédia só sobre o que sofro, nunca sobre o que vivo, não é homicídio a longo prazo como tudo que criticamos também faz. Eu quero discutir política sim, mas também quero respirar.

E eu sei que você também precisa disso.

E é por isso que to aproveitando essa noite sem ressaca, sem cigarro mas com insônia, pra por isso pra fora. Você pode até dar uma risada estridente lendo isso aqui, mas eu to ficando louca. Está cercada de gente falando de luta, empatia e cuidado com os nossos e perceber que não tem nada ali além de um capítulo rasgado de Ensaio sobre a cegueira fode demais. E eu sei que isso não é uma sensação só minha, é uma dor tão coletiva que só posso chamar de paradoxo mesmo.

Qual é a tua? Porque eu não sei mais, to desapontada e andando no automático já.

Alguém acende a luz.

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