“Eu sou um Zumbi” ou “Porque Você Precisa ouvir ‘Corpo Sem Juízo’, da Jup do Bairro”

hela santana
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4 min readJun 17, 2019

Acho que sou um zumbi. Não o tipo convencional e cinematográfico que a gente vê hoje na TV, no cinema, no celular etc, mas um zumbi do mundo real.

“Como assim, poc”? Assim, ó:

Ainda que possam representar muitas coisas, dependendo do contexto onde estão inseridas, essas criaturas pra mim são uma sátira da vida enquanto morte. Zumbis são seres que se recusaram, seja lá por qual motivo, a continuarem mortos e tem como único propósito acabar com a suposta paz e ordem social através da barbárie. Em quase toda história do gênero [rs], zumbis sempre são vistos como inimigos naturais da humanidade. As vezes, criados pela própria avareza humana, noutras sinais de como o mundo tá de saco cheio dos seres humanos, mas o proposito é sempre o mesmo: eles surgem do nada, se proliferam como a pior das pragas e trazem o caos absoluto, sempre forçando os “não infectados” a repensarem que porra estavam fazendo da vida pra deixar tudo chegar naquele chuva de diarreia radioativa. Quer dizer, quem nunca viu ceninhas forçadas no cinema sobre “o que fazer com uma criança que tá infectada com essa merda”, ou “será que corto meu braço fora pra tentar continuar vivo”, ou “Okay ela ta curada, mas e se o filho virar um monstro, sabe? “.

Melhor matar antes que se prolifere.

Ai veja bem, vamos fingir que, além de um tipo de zumbi, eu sou uma acadêmica fodona. Na época do curso de Letras, que não me formei, estudei alguns autores que falavam como a ideia de não ter sua existência reconhecida é pior e mais assustadora do que a morte em si. Por que? Porque se a morte é inevitável para todas nós, não há motivos para sofrer por ela, né?[rs]. C’est La Vie. Viver é caminhar pra morte. Mas para um bicho social como o ser humano, a memória importa. E a memória é o único local para a imortalidade que existe.

Segundo esses autores homens, cis, héteros e brancos, a gente morre duas vezes: uma naturalmente e outra quando se é esquecida, sendo essa última a pior de todas. Mas eu não sou um homem-cis-hetero-branco. Quer dizer, é fácil falar isso quando você PODE existir no mundo, né? Aliás, o mundo existe pra você. É sim. Problema é que [agora vai fazer sentido], existem tipo de “zumbis” aqui no mundo real que já nascem sem aquilo que pode garantir a eles a luta por uma memória.

E aí ontem a Jup pediu pra eu ouvir “Corpo Sem Juízo” e me lembrou de tudo isso. Me lembrou de zumbis, mortes físicas e mortes existências e as dores de ser uma pessoa que nasce sem existência e morre como se nunca tivesse existido.

Histórias de zumbi são um prato cheio pra discutir problemas sociais e o medo dos monstros que a própria sociedade cria. Eu falo que eu [e talvez você] sou um tipo de zumbi por esse motivo.

“Um tipo” porque, veja bem o Brasil por exemplo, pessoas negras e trans são seres que já nascem mortos. O juízo sagrado sobre o nosso corpo é que ele deve ser exterminado por não seguir as regras, antes que possa infectar outras pessoas [as crianças meu deus!!] com Pablo Vittar, Linn da Quebrada e mamadeira de piroca. Nós somos o apocalipse que essa galera jogou pra debaixo do tapete e tenta exterminar, a qualquer custo, através da barbárie, como em qualquer The Walking Dead da vida, enquanto questionam a própria moralidade fraca e falha.

Se você convive entre minas, bichas, pretas, travas, boycetas, nbabys você tá naturalmente acostumada a viver com histórias que estão, ainda, gritando pra terem título, capa e existência reconhecida, então você sabe do que tô falando. Se um zumbi é um morto que voltou a vida, como se chama aquilo que já nasce sem vida, sem existência, mas é atacado como qualquer praga apocalíptica?

Se chama “Corpo Sem Juízo”. E é por isso que esse som da Jup é tão importante.

A música é um lembrete de que, sim, nascemos já mortas, sim, estamos causando um apocalipse que a cada dia coloca mais a norma em desespero, sim, estão tentando nos aniquilar e apagar nossa existência completamente e etc. MAS — e um mas é sempre importante, pro bem, pro mal, ou pra tudo que existe entre um lado e o outro — nós somos um tipo novo de zumbis.

Somos zumbis vivendo em palmares. Com receios sim, mas assustadas não mais. E como em qualquer lindo, belo e moral filme de terror, vocês vão viver cada dia mais isolados em shoppings enquanto a gente povoa o mundo todo.

Porque se há um consenso na arte e na história, é de que zumbis ninguém nunca para, que dirá a gente!

É muito bom viver nesse momento da história.

Te amo, Jup.

Obrigada por nos lembrar como somos um tipo tão delicioso de cura pra um mundo que de forma tão irônica nos trata como doença.

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