Kendrick Lamar é um hipócrita – e ele sabe disso

hela santana
7 / 4
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4 min readFeb 1, 2017

Quando To Pimp a Butterfly foi lançado ano passado, quebrando os recordes do Spotify e sendo amplamente aclamado pela crítica e fãs de hip hop em geral, eu já era um admirador de Kendrick Lamar. A divulgação de “i”1, o primeiro single do álbum, coincidiu com o início do meu envolvimento em debates sobre questões sociais, principalmente racismo, então acabei me afeiçoando ainda mais ao trabalho do cara.

Foi difícil não se apaixonar pela mensagem sendo passada porque, diferente das músicas sobre a guerra de gangues que ele vivia na sua cidade, Compton, presente no álbum anterior [good kid, m.A.A.d City], Kendrick, aparentemente, agora estava preocupado em mostrar ao mundo que, apesar de toda aquele caos, apesar de toda a violência, apesar de todos os males que ele sofria por ser negro, mesmo com o “diabo” tentando o derrubar, ele se amava.

O que me encantou foi ele não ter fugido da realidade quando escreveu aquela música. O cenário que Kendrick retrata no seu álbum anterior é de destruição. Guerra de gangues, guerra com a polícia e violência por todos os lados . Polícia matando negros, negro matando negro, amigos que se perdem e amores que se vão. Tudo como consequência desse ciclo vicioso e sem sinais de ter um fim. Violência, aparentemente, gratuita que o Kendrick de Swimming Pools se afundava no álcool tentando entender, mas não conseguia e que, de alguma forma, o artista de “i” finalmente havia compreendido: a questão era racial mesmo.

O próprio chegou a dizer em uma entrevista que nunca imaginou que seria capaz de compor uma música “positiva” como aquela, crescendo onde cresceu – mas tendo ele tomado ciência da escuridão em que vivia, acredito, percebeu que estava na hora de criar algumas faíscas ali dentro na esperança de que se fizesse luz. E essa luz foi um convite ao reconhecimento coletivo de como é maravilhoso ser negra/negro. Kendrick estava cantando, pela primeira vez, sobre negritude. Mas foi só quando tivemos acesso a toda complexidade da obra, que o mundo passou a entender o que estava acontecendo com Lamar.

To Pimp a Butterfly é um ensaio sobre a autocrítica. É sobre o momento em que o artista percebe as próprias contradições, questiona o meio em que está inserido e, acima de tudo, preocupa-se com uma questão: como passar uma mensagem empoderadora para a comunidade negra, sendo ele parte de uma indústria racista e capitalista como a do entretenimento? E é esse ponto central do trabalho que Kendrick vem mostrando no último álbum, que o separa de quem quer ostentar sem considerar que o buraco é mais embaixo.

A faixa de abertura, Wesley’s Theory, por exemplo, mostra como a indústria seduz novos artistas, com promessa de fama e riqueza, e o fazem perder a própria ideologia. É engraçado como, sem querer, Kendrick problematizou o posicionamento materialista [ostentação, trabalho duro, dinheiro como resposta etc;] de músicas como a polêmica Formation da cantora Beyoncé – naturalmente. Kendrick tem ciência de que se o Tio Sam quiser, não tem grana que o impeça de destruir a vida de um negro, seja ele quem for. O mesmo tema aparece em Mortal Man, quando ele questiona se seu público continuaria o amando se, por exemplo, o sistema encontrasse uma forma de tirá-lo de cena. O que se nota constantemente durante o álbum é a guerra interna entre o Kendrick artista, que está lutando pra não ser completamente engolido pela indústria [For Free?/For Sale], com o Kendrick socialmente consciente, que luta pra não sucumbir perante a pressão do racismo [Alright]. E ainda que ele tenha se tornado famoso [King Kunta], e de certa forma influente, que influencia é essa?

O que vimos na performance do Grammy essa semana – assim como as novas músicas que vem sendo pouco a pouco divulgadas e a polêmica apresentação no BET 2015 – são resultado do trabalho de uma artista que vem há anos refletindo sobre essas questões, dentro de uma industria que tenta constantemente o apagar. De alguém que sabe que não se pode lutar ao lado das Panteras Negras sem entender a ideologia do sistema que nos oprime. Porque as vezes antes da gente cantar que se ama [“i”], é preciso questionar-se [“u”], questionar o mundo a sua volta [The Blacker the Berry] e respeitar a trajetória de quem nos trouxe até aqui [Mortal Man].

Artistas preocupados em exorcizar os próprios demônios, antes de tentar passar algum tipo de mensagem são raros no mainstream, e Lamar tem se mostrado a voz de lucidez que o hip hop mundial precisava.

Trabalho difícil agora será o dos críticos de plantão, porque não será preciso problematizar o Kendrick Lamar. O artista que vemos hoje já não é o mesmo que lançou To Pimp a Butterfly, mas sim alguém que já escreveu um álbum se problematizando e hoje caminha para o próximo nível.

Get it all, you deserve it Kendrick!

1No inglês “I” significa eu e, segundo a norma culta, deve ser sempre escrito em maiúsculo como substantivos próprios.
2No inglês tem a sonoridade de “you”, “você”.

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