One Piece, uma obra política

hela santana
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10 min readJun 2, 2020

No momento em que escrevo esse texto, One Piece se aproxima do incrível número de 1000 capítulos (981 no mangá) e episódios (927 no anime), soma 12 filmes lançados, uma série live-action pela Netflix encomendada (que deus nos proteja), além de carregar o título de mangá mais vendido da história. Para ser mais específica, até 2019 One Piece já havia vendido mais de 460 milhões cópias e conquistado título de terceira história em quadrinhos mais vendida no mundo, ficando atrás apenas de Batman e Super-homem — e a essa altura, a possibilidade de passar Batman já não é mais uma incerteza, mas sim uma questão de tempo.

O mangá de Eiichiro Oda conta há 23 anos a história de Monkey D. Luffy, um garoto com corpo de borracha, e seu bando pirata navegando pelos mares em busca do maior tesouro existente, o One Piece, o que faria dele o rei dos piratas e dos mares. Uma premissa simples, a princípio, que se desdobrou com o passar dos anos em um dos maiores e melhores exemplos de construção narrativa, wordbuilding e desenvolvimento de personagens na história dos mangás. E duas décadas depois de seu lançamento, ainda consegue manter um ritmo semanal de surpreender seus leitores de forma positiva e arrancar aplausos de fãs — e lágrimas as vezes também, quem vive sabe haha.

A narrativa de One Piece é construída de forma similar a visão que temos do mar, sentados na areia de uma praia: tudo parece simples e azul na superfície — estamos apenas acompanhando mais uma história shonen qualquer sobre um garoto com sonhos em uma aventura com seus amigos, superando tudo em nome do poder da amizade. Até que decidimos nadar, indo pouco a pouco mais fundo afim de entender o que vive nas entranhas do oceano e nos deparamos com trevas, seres que parecem ter vindo de outro planeta, um mundo de lutas desiguais e o terror absurdo que se esconde no desconhecido. E ai que a história começa.

One Piece é uma história sobre lutinha de piratas na superfície. Mas nas suas entranhas o que realmente encontramos é um ensaio sobre racismo, desigualdades sociais, lutas de classe, escravidão, o perigo de regimes totalitários, consciência ecológica e até mesmo a importância do abolicionismo penal. Anti-fascismo disfarçado de poder da amizade. A seguir eu tento te dar uma ideia, sem muitos spoilers, sobre alguns dos temas sociais abordados na história de Eiichiro Oda.

Quem controla o passado, controla o futuro

Se você perguntar pra qualquer fã de One Piece um “top 3 momentos que emocionam”, pode ter certeza que o quadro ilustrando o grito de “Eu quero viver!” de uma historiadora perseguida pelo governo durante toda sua vida, vai estar ali provavelmente ocupando o primeiro lugar em grande parte das respostas. “O século perdido”, como é chamado, representa uma lacuna de 100 anos na história do mundo de One Piece que foram apagados de todo e qualquer registro público, por ordens do Governo Mundial, autoridade politica máxima que dita as regras sociais dentro do mangá. Por lei, é proibido até questionar o motivo desse período histórico ser escondido, ao mesmo tempo que é censurado a todo e qualquer custo da sociedade mais pobre. Existem inclusive organizações secretas que atuam nas sombras exterminando pessoas que ousem tocar no assunto. E, quando necessário, até medidas mais absurdas como genocídio são autorizadas pelos líderes mundiais para manter o mistério nas trevas.

A personagem que citei acima é a única sobrevivente de uma ilha onde viviam historiadores, arqueólogos e antropólogos que dedicaram toda a sua vida para pesquisar, entender e trazer a público o que foi o século perdido e os motivos de sua história ser tão violentamente apagada. Durante os anos de estudos, descobrem que a censura só existe porque com uma visão completa do seu passado, a sociedade como um todo não iria mais tolerar o poder autoritário do Governo mundial. Quando descobrem que há um estudo sobre o assunto em curso, o Governo decide não só executar os pesquisadores como, literalmente, apagar do mapa toda a ilha, para que nenhum cidadão sobrevivesse e viesse no futuro representar perigo à sua soberania. A única pessoa que sobrevive é caçada durante toda sua vida para ser morta pois é um “demônio que pode trazer destruição ao mundo”, quando na verdade a única destruição que ela representa é a da soberania burguesa daquela sociedade. O conhecimento do passado é poder.

Aqui, no mundo de carne e sangue, vivemos na última década uma ascensão de discursos fascistas que clamam, entre muitas coisas, por um revisionismo histórico que visa nada além de fortalecer uma alienação popular, enquanto enaltece e reivindica o retorno de regimes autoritários e ditatoriais, sobre o falso pretexto da manutenção de valores que na verdade não passam de uma defesa do status quo da burguesia. Assim, o absurdo entra no imaginário popular e a história se torna um conto bizarro que nega a materialidade histórica do nosso passado. A verdade se torna aquilo que é mais confortável para os poderosos.

One Piece nos mostra o que acontece quando um povo é levado a esquecer sua história e as consequências disso. E nos mostra como seria difícil reverter esse quadro, caso eles consigam nos por em um estado constante de amnésia.

Um mundo racista

O mundo de One Piece é extremamente diverso. Quanto mais a história avança, mais somos apresentades a diferentes raças e suas mais variadas culturas. Uma das mais presentes desde os primeiros arcos são os homens-peixe, que são nada mais nada menos que seres humanos capazes de viverem dentro e fora do oceano — a compatibilidade genética é tão grande que até uma transfusão de sangue entre um homem e uma sereia não teria problema algum. Um dos brilhantismos de Oda se dá justamente na construção narrativa que faz em volta de tudo que envolve essa galera.

Os primeiros homens-peixes com quem temos contato na história são apresentados como um bando pirata que está explorando a população de uma ilha. Eles não só odeiam humanos, como também nos enxergam como seres inferiores, já que ao contrário de sereias e tritões nós só conseguimos sobreviver na superfície e não no fundo do mar. Esse momento em específico no mangá planta no leitor a ideia de que talvez um arco em uma ilha de homens-peixes só nos mostraria mais desse ódio. E é quase isso mesmo, exceto que o ódio não vem deles.

Conforme a história vai passando e o plot se desenvolvendo a gente entende os motivos desse primeiro grupo de tritões que conhecemos odiarem tanto seres humanos: é porque os humanos os odeiam e violentam muito mais. No mundo de One Piece, homens-peixes são o equivalente social a qualquer pessoa não-branca aqui em nosso planetinha Terra. Eles são tratados como sub-raça, portadores de doenças, monstros violentos e perigosos e, acima de tudo, inferiores que só servem como mão de obra barata. A comercialização e escravidão de espécies não-humanas em One Piece é tão normalizada que é impossível, aparentemente, para aquele mundo sobreviver sem um sistema que não demonize tudo que não é bran-, digo, humano.

Em seu livro Racismo Estrutural o professor Silvio Almeida nos fala sobre como o racismo não é uma demonstração de anormalidade social mas sim uma manifestação normal e esperada de algo muito mais complexo e profundamente ligado nas bases políticas, sociais e econômicas de uma sociedade. É exatamente isso que, em determinado momento, Oda nos mostra em One Piece: o absurdo não é homens-peixes odiarem humanos, mas sim o fato de homens-peixes não entenderem que não são sequer merecedores de dignidade.

Na saga onde o tema é mais aprofundado, o mangá faz questão de deixar claro que o ódio que homens-peixes sentem em relação ao humano é muito mais complexo do que parece, já que é fruto genuíno de séculos e séculos de opressão. E por serem um povo tão complexo, existem entre eles personagens que querem pagar aos humanos na mesma moeda, como vemos no começo do mangá; existem o que criam movimentos civis em luta por direitos e fim da escravidão e também existem aqueles que tentaram dialogar e se cansaram de tão forma que desistiram de tentar entender o porquê de tanto ódio pelo diferente. A partir daí a história se amplia e o debate se expande, deixando claro como opressão racial pode criar cicatrizes profundas e difíceis de serem superadas por um povo.

É um dos meus momentos favoritos e é muito difícil falar sobre sem dar muito spoiler, mas pretendo escrever mais a respeito futuramente.

Uma serei sendo leiloada
uma sereia sendo leiloada

A Burguesia fede

Dragões-celestiais. Esse é o nome do 1% mais rico do mundo de One Piece, um grupo de pessoas que se consideram deuses por supostamente serem descendentes daqueles que criaram o mundo. Uma raça pura.

Ocupam um lugar tão absurdamente alto na escala social da obra, que são considerados donos de tudo e todos que existem. Um rei poderia ser usado como tapete se um Dragão-celestial assim o desejasse. Uma pessoa pode ser obrigada a casar-se com um nobre, se assim ele desejar. Etc. A sociedade de One Piece como um todo funciona em prol da defesa do status soberano dessa galera. O Governo Mundial e seus exércitos são literalmente sua guarda pessoal e qualquer um que ouse levantar um dedo contra eles sofrerá o poderio da elite do exército no meio da cara. É uma turminha que literalmente usa pessoas como transporte e se recusam até a dividir o mesmo ar que qualquer outra ser humano. O autor usa esses personagens como uma caricatura bizarra do poder e faz questão de deixar claro o tempo todo que, ao contrário do que parece, o grande vilão da obra não são piratas, como o Governo quer pintar para a população enquanto a oprime, mas sim essa redoma de poder absurdo que controla a tudo e todos.

Qualquer semelhança com a realidade não é coincidência, os dragões-celestiais são os maiores escravocratas que existem naquele mundo e se divertem com isso. E eles usam escravos pra tudo. Até mesmo pra mover o chão por onde pisam.

Um dos momentos mais celebrados da história é quando Luffy, nosso protagonista, se enfurece com um nobre que está tentando escravizar uma sereia e acaba com ele na porrada. O momento é glorioso e simbolicamente muito forte, já que Luffy é um dos símbolos de rebelião contra a norma na história, mas, ali naquele momento, nem ele foi capaz de se livrar da retaliação que uma rebelião contra o sistema pode causar. Um sinal de que para derrubar esse sistema é preciso mais que um momento de raiva. O combate precisa ser organizado e coletivo, ou não será efetivo.

O que nos leva a parte final desse texto.

Sim, revolução

“Este país é um exemplo do que eles querem para o mundo no futuro. Não haverá felicidade para o mundo onde os excluídos são descartados. Algum dia eu mudarei tudo isso. Até as crianças já perceberam como este lugar é. Todos aqueles que desejam lutar pela liberdade subam a bordo!”

A fala destacada acima é Dragon, o homem mais procurado do mundo e líder da organização libertária conhecida como Exército Revolucionário (E.R).

Na bandeira R.A é a sigla em inglês para Revolutionary Army

Se Piratas são inimigos naturais da Marinha, em termos simples, o objetivo do Exercito Revolucionário é defender a liberdade do povo, lutar pelo fim dos Dragões-Celestiais e destruição completa do Governo Mundial. Não por acaso, este é considerado pelos nobres que dominam o mundo como o grupo mais perigoso existente, pela forma que conseguem se infiltrar em países dominados por injustiças sociais e ditadores, educar e armar o povo pra ser protagonista de suas próprias revoluções.

Em uma das cenas mais memoráveis de One Piece, vemos alguns de generais do E.R. usando seus poderes para instigar a população de uma ilha a ser a sua própria espada e escudo contra um grupo de invasores. Sua bandeira é vermelha e preta, e no mais recente databook da história, livro onde o autor nos dá informações extras sobre os personagens, foi revelado que o nome do navio de Dragon é Cylone Gramma. Gramma é o mesmo nome do iate que em 1956 transportou Fidel Castro, Che Guevara e outros 80 revolucionários do México para Cuba, onde deram inicio a Revolução Cubana, deixando clara a inspiração política desse grupo tão importante para história de One Piece e também da luta anti-capitalista em nosso mundo real.

Alguns dizem que é só coincidência. Na imagem abaixo você pode ver, em meio a uma revolta popular, uma bandeira com a imagem do personagem Che-, digo, Gaburu, líder de um exercito rebelde citado durante a história.

Outra coincidência.

A beleza do Exército Revolucionário está não só em sua posição política dentro da obra, mas na própria constituição diversa da organização. Todas as raças, cores, sexualidades e gêneros estão ali, como um símbolo de que ou a revolução é para todes ou para ninguém será. E essa é a beleza de One Piece. Eiichiro Oda criou uma obra que, sem que a gente perceba, nos leva a pensar e questionar, com seu jeito absurdo e caricato, questões que de ficção nada tem. Em determinado momento do mangá, somos apresentados até a um país que prosperou quando entendeu que a melhor forma de combater o crime não é criar cadeias, mas educar as pessoas, e de igual forma viu sua queda quando a corrupção o tomou e cadeias foram criadas como forma de controle e punitivismo.

Claro que essa não é a primeira história a falar dessas coisas (ainda bem) e que não seja a última. Mas há certa beleza em ver que um dos maiores fenômenos da cultura pop, consumido por crianças e adultos, tem em sua base alertas tão importantes sobre temas tão fundamentais.

Precisamos de mais histórias de pirataria assim. Venha pro mar você também.

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