Você precisa assistir “Alice Júnior”

hela santana
7 / 4
Published in
4 min readJun 24, 2020
Dir: Gil Baroni / Roteiro: Luiz Bertazzo

Rir é muito bom, né? Alguns dos meus filmes favoritos tem um lugarzinho especial no meu coração justamente por me fazerem rir e emocionar ao mesmo tempo, na mesma medida, sem forçar nada ou ridicularizar temas importantes para conseguir isso. Motivos assim que me impediam de ignorar qualquer sessão da tarde que exibisse 10 Coisas que Odeio Em Você, De repente 30, Curtindo A Vida Adoidado e outras comédias para adolescentes que só quem cresceu vendo sabe. É muito fácil se relacionar com a história de personagens mais-ou-menos na sua faixa etária, aprendendo a lidar com paixonites, frustrações e toda a confusão de sentimentos que é o limbo entre infância e fase adulta. E é por isso que filmes assim são queridos por uma geração toda de pessoas até hoje. É uma sensação leve e gostosa. Emociona e faz rir.

Alice Júnior é um desses filmes.

A história acompanha Alice, uma adolescente, recifense, youtuber, trans e desesperada para dar seu primeiro beijo. Ela tem um date marcado com o crush e tá quase acendendo vela para perder a b.v, mas seu pai recebe uma proposta de trabalho e ambos precisam se mudar para uma cidade conservadora no interior do interior do interior antes do rolê rolar (ba dum tss). Esse é o ponto de partida dessa odisseia juvenil.

O lançamento do filme foi adiado devido ao momento de quarentena em que vivemos — e é um pouco difícil falar dele sem dar muitos spoilers — , mas estive presente em algumas das exibições que ocorreram em festivais aqui em São Paulo e não houve uma sessão que não terminasse em aplausos. O sucesso tem sido tão grande que o filme foi exibido até no Festival de Berlim, onde também foi ovacionado. E é muito fácil de entender o motivo .

Narrativas com personagens trans costumam ser histórias mais sobre transfobia (ou como nossas vidas são um inferno) do que sobre pessoas. Não havia, até muito pouco tempo, grande preocupação por parte da indústria audiovisual em contar histórias fora da curva cisgênera que mostrasse pessoas trans vivendo como… pessoas. E com isso quero dizer que faltavam (ou faltam) ainda filmes com pessoas trans fazendo qualquer coisa além de só sofrer transfobia.

Eu me lembro que um dos meus momentos favoritos de 2018 foi a curta participação de uma personagem não-binária que aparece no filme Upgrade. Elu não tem nome, e estava ali apenas servindo ao papel de hacker cyberpunk que o filme precisava. Simples e direto, nada demais. E isso foi FODA, justamente por ser tão raro. É raro ver personagens trans que são presentes mas não estão lá apenas por serem trans. E é por isso que passar mais de uma hora apenas vendo uma menina trans dar seu primeiro beijo é tão emocionante e divertido.

Claro, isso não significa que o filme romantize toda a situação que é viver a transgeneridade na escola, ainda mais em um país como o Brasil onde a evasão escolar de pessoas trans é assustadora, justamente por causa da transfobia. Mas o diretor Gil Baroni e o roteirista Luiz Bertazzo conseguiram criar um filme que, sim, mostra que isso é um problema a ser superado, mas também tenta educar e iluminar algumas possibilidades de caminhos para combater as violências que vemos Alice sofrer a partir do momento que pisa no novo colégio.

O fato da história ser protagonizada por uma atriz trans também ajuda. Anne Celestino Mota é extremamente carismática na tela, o que nos ajuda a cair muito fácil no carisma de Alice. A atriz inclusive foi fundamental na construção do filme, que fez dela a primeira atriz trans a receber o prêmio de Melhor Atriz no tradicional Festival de Brasília ano passado, onde deu um forte discurso sobre a importância de mais obras como essa serem produzidas.

Não bastasse, o filme é lindo e para além da história tem uma trilha sonora maravilhosa — eu tenho um amor especial por qualquer obra que tenha Verônica Decide Morrer em sua trilha — , uma linguagem visual muito conectada com nossos filtros de instagram de-cada-dia-amém, e todo um elenco cheio de química. Não é só Alice que rouba a cena, todo mundo ali brilha muito e deixa o longa fluir de forma super orgânica.

E não é por acaso que praticamente toda pessoa trans presente nas sessões em que também fui se encontrou em lágrimas durante o rolar dos créditos — sim eu também. E não eram lágrimas de tristeza ou de gatilhos causados por descuido nos temas abordados, mas de alegria e emoção por finalmente termos um Nunca fui Beijada para toda uma geração de pessoas trans poderem ver e se identificar de forma saudável e divertida.

Acredite em mim: Alice Júnior já é um marco na história do cinema nacional e para a luta de pessoas trans no audiovisual também. A gente precisa de algo assim há muito tempo. E ela finalmente está chegando. Pode por na agenda e me cobrar depois.

Sério, você precisa ver esse filme.

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