Enxergando a depressão com Cornos de Dieferson Trindade.

João Pedro Mendes Pereira
9quadros
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5 min readApr 9, 2019

Quadrinho publicado de forma independente no Catarse tem seus números esgotados.

O Catarse é um fator muito importante nas publicações independentes no Brasil. A plataforma viabiliza projetos independentes por meio do financiamento coletivo e, por conta disso, vemos histórias muito boas sendo publicadas por aqui. Nomes como Gustavo Borges, Felipe Cagno fizeram sua base de fãs por meio dessa plataforma e aos poucos vamos conhecendo nomes que até então estavam no anonimato. Infelizmente não pude participar do financiamento de Cornos, mas o autor fez a gentileza de distribuir gratuitamente a história em seu instagram e eu fui uma das pessoas agraciadas por esse ato tão bondoso.

Cornos, na verdade, teve duas campanhas de financiamento e infelizmente a meta não foi atingida na primeira, somente na segunda que a história pôde ganhar fôlego para sair de forma impressa para os apoiadores. A campanha tinha a finalidade de arrecadar R$ 3,700 e quase dobrou esse valor com o total de R$ 6.510. A história se encontra esgotada na data de publicação desse texto, então o autor está disponibilizando de forma gratuita em seu perfil no instagram a história na íntegra, entre em contato com ele para pegar sua cópia, garanto que não vai se arrepender. O perfil dele está linkado aqui.

O quadrinho conta a história de uma jovem que se encontra numa espiral de acontecimentos, muito deles horríveis que desencadeiam sua depressão profunda. Em dado momento, ela começa a sonhar com um jovem com chifres e ele fica sugestionando que ela se entregue por completo para a sua condição. Ela, atordoada, não consegue mais diferenciar a realidade e do sonho e as coisas começam a se misturar em seu dia-a-dia.

O quadrinho tem um traço que me chama muito a atenção, gosto de como o Dieferson faz as ranhuras e também adoro os elementos que ele coloca na história. Por conta da mesclagem da realidade com sonho, a experimentação feita é muito válida e competente. Gosto também da forma como ele conduz a história, ele é direto e não faz muitos desvios no percurso, o ritmo do quadrinho é bom e rapidamente você entende o que ele quer dizer com a história.

O intuito do texto é enaltecer um ponto chave dentro da trama: a forma como o autor aborda a depressão. Muito se fala em depressão nas mais diversas mídias. O cinema tem vários exemplos de como se abordar a depressão, muita das vezes isto é feito de foma metafórica. Qualquer coisa que fica implícita em uma trama as pessoas tendem a achar que é uma metáfora para depressão e, muita das vezes, essa análise está equivocada. Lembro de quando lançou Bird Box e várias teorias surgiram, uma delas era sobre o simbolismo da depressão de uma maneira muito viajada, sendo que a história em si não demonstra nada disso.

Senhor Milagre, publicado pela Panini e Boa Noite Punpun publicado pela JBC.

Agora, voltando para os quadrinhos, temos vários exemplos, relativamente recentes, de personagens depressivos. Punpun do mangá Boa Noite Punpun, escrito e desenhado pelo Inio Asano. Senhor Milagre escrito pelo Tom King e desenhado pelo Mitch Gerads. Ambos exemplos são ótimos, mas nenhum deles trata a depressão como Cornos e acredito que esse quadrinho é um dos únicos que li que é tão certeiro sobre o assunto.

Diferente dos exemplos mais conhecidos, Cornos tem a personificação da depressão em forma de vários personagens e, muita das vezes, eles funcionam como gatilho para a personagem principal. Com essa decisão o autor consegue passar para o leitor como a depressão se comporta e como as pessoas lidam com ela. O conflito eterno, a tristeza que nunca vai embora e isso é sempre lembrado para a personagens das mais diversas maneiras. Uma das mais eficientes é relembrar dos projetos e metas inacabadas da vida dela. Vivemos em um mundo em que temos que saber o que fazer desde pequenos e isso cria uma pressão psicológica absurda e, ao ver outras pessoas seguindo em frente com suas vidas, a desilusão aumenta. E quando a pessoa não quer ser nada? E quando ela não se encaixa em nada que a sociedade julga como bem sucedido? Essas opções quase não existem e o quadrinho é brilhante ao mostrar isso, de uma maneira sutil e tocante.

Por ter passado por algumas das situações presentes no quadrinho, creio que essa é a história que a depressão seja mais palpável, justamente pelo quadrinho ser quase uma auto-biografia do autor. Algumas frases dentro do quadrinho só podem ser inseridas se você realmente passou por tal momento: “Não sei como te ajudar” “Me deixa triste de ver você assim”. Nos extras temos mais informações de como o quadrinho foi feito e de quantas barreiras o autor teve que ultrapassar para que essa história chegasse até nós e isso torna a história ainda mais compreensível.

Cornos é um quadrinho muito bom e que deveria ser estudado por profissionais na área de psicologia e afins. É a primeira vez que tenho contato com uma história que transmite cirurgicamente como as pessoas depressivas se sentem. É fácil mostrar que um personagem é depressivo, mas dificilmente conseguimos entender o motivo por trás daquilo tudo e por conta disso, muita das vezes, não conseguimos sentir empatia por esses personagens. Procurem o autor e apreciem a obra dele, coloco esse quadrinho entre os grandes lançados no Brasil, de fato vale a pena por sua importância como um todo.

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João Pedro Mendes Pereira
9quadros

Leitor compulsivo de quadrinhos, amante de filmes, louco por música e ainda escrevo esses textos aí.