Um acontecimento chamado Pantera Negra.

João Pedro Mendes Pereira
9quadros
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9 min readFeb 16, 2018

Para começar o texto sobre o filme do Pantera Negra eu vou ter que fazer um desvio no tempo para contextualizar você da importância e da história por trás desse personagem incrível.

O Ano é 1947 e nós temos a revista chamada All-Negro Comics, uma revista que foi edição única que foi escrita e desenhadas por pessoas negras. De fato foi um salto enorme para uma sociedade que era majoritariamente racista e segregada. Em qualquer meio que um negro fosse retratado era de uma forma caricata, racista e de completo mal gosto e o maior exemplo disso era o artista Daddy Rice que encarnava um personagem chamado Jim Crow. Ele foi um dos percursores do Blackface e mais tarde este mesmo nome foi usado para dar nome a uma lei que institucionalizava a segregação racial que vigorou de 1876 até 1965. Claro que não teve somente o Daddy Rice fazendo caquinha, histórias celebres como Tintim no Congo também colocava o negro de uma maneira racista e por isso que a All-Negro Comics era um salto no status quo da época.

Capa da All-Negro Comics | Ilustração do personagem Jim Crow
Tintim no Congo.

Em 1950 temos a estreia do Waku, Prince of the Bantu. Waku teve sua história publicada dentro da revista Jungle Tales que era publicada pela Atlas Comics que mais tarde seria a Marvel Comics. Só em 1965 que um personagem negro ganharia sua revista própria, Lobo um personagem de western publicado pela Dell Comics. Todos esses personagens e revistas antecederam a chegada do todo poderoso rei T’Challa em 1966. Ele fez sua primeira aparição em Fantastic Four #52 e assim ele foi coroado como o primeiro super-herói negro dos quadrinhos.

Waku, Prince of the Bantu | Lobo | Fantastic Four #52

Existem duas versões da criação do Pantera. Uma delas é que existia um personagem pulp que tinha uma pantera negra como ajudante e isso inspirou o Stan Lee a nomear o personagem. A outra é que ele teve inspiração no movimento dos Panteras Negras e faz mais sentido por ser um personagem que foi criado na mesma época do movimento. Já o Jack Kirby queria dar o nome ao personagem de Coal Tiger e por um breve momento o Pantera Negra mudou de nome e ficou sendo chamado Black Leopard, justamente para não ser associado com o movimento, felizmente esse nome não durou muito. Mesmo levando em consideração que ele não foi baseado no movimento, o cara que é o showrunner de Luke Cage (Cheo Hodari Coker) disse que um dos primeiros cartazes do filme foi uma inspiração ao Huey Percy Newton, um dos cofundadores do movimento.

Nos quadrinhos nós podemos falar que o Pantera realmente foi pioneiro e esse não é o caso nos cinemas. Antes de ele pensar em existir, lá em 1997 Shaquille O’ Neal vestia a roupa do Steel e no ano seguinte Wesley Snipes vestia o manto de Blade. A título de curiosidade, Snipes já foi cotado uma vez para ser o Pantera lá em 2007. O diretor que ia botar esse projeto para frente era o John Singleton, só que no final não deu certo. O filme seria o Pantera saindo de Wakanda para se envolver em conflitos sociais e por mais que o plot pareça interessante acredito que seria uma bomba por diversos fatores, ainda bem que o Snipes focou no Blade e nos deu dois ótimos filmes e uma bomba. E em uma entrevista pro Slate ele se mostrou empolgado com o novo filme do Pantera e disse mais isso aqui:

Animado não é a palavra certa. Estou além de mim, transbordando, estou maravilhado com o filme. Eu sei o que vai fazer e o impacto que terá, não só na mente da comunidade mas também na indústria e na mente daqueles que cuidam dela. Quando eles verem o dinheiro, é isso. Inevitavelmente abrirá novas oportunidades. É como deixar várias sementes na lama: elas vão crescer”

Steel teve uma grande parte do elenco sendo negro e isso foi diferente em Blade que somente três personagens eram negros e de resto todo o elenco era branco e vamos ser sinceros? Blade não é um Herói e Steel é ruim até dizer chega. Agora entra a importância do filme do Pantera: praticamente todo o elenco é negro e isso realmente é incrível e enquanto os outros filmes faziam filmes direcionados para qualquer pessoa, Pantera dialoga diretamente com o público negro com todo seu conceito, sub-camadas e com todos seus personagens construídos de uma forma primorosa. Pessoas desejam ser inspiradas, representadas e o filme está entregando isso com maestria. Estamos em um momento de emponderamento e desconstrução, sendo esse um momento perfeito para um filme como esse. Vou deixar linkado aqui duas matérias: uma da CNN que mostra uma classe inteira comemorando a ida ao cinema ver o filme: clique aqui e outra da reação de umas pessoas negras ao ver o poster em exibição no cinema: clique aqui. No segundo video o rapaz diz a seguinte frase:

“Então é essa sensação que as pessoas brancas sentem TODA VEZ? Desde o começo do cinema vocês se sentem emponderados e representados dessa maneira?”.

Imagem perfeita para descrever o filme! Acessem a página: https://www.facebook.com/Iconografialetargica/

Não bastava tudo isso que eu falei e decidem colocar o Kendrick Lamar junto com um pessoal de peso para fazer a trilha sonora do filme. Se você não sabe quem é o Kendrick, ele é um rapper que fez um dos melhores discos da história chamado To Pimp a Butterfly e ano passado ele lançou o Damn. que foi indicado para 8 categorias no VMA 2017 e faturou 6 deles, ou seja, ele não é pouca coisa. Tem The Weeknd, SZA, Zacari, Travis Scott entre outros. Aí eu pergunto para você leitor, você já viu tamanho carinho e cuidado para um filme como esse? Eu não consigo pensar em nenhum. Ah, não posso esquecer que o nosso rapper Emicida também fez uma ótima música para o lançamento do filme, clique aqui para conferir esse musicão.

Acho que até aqui você tem a noção da grandiosidade do filme e daqui em diante vou dissecar tudo que eu gostei e o que eu não gostei do filme. Ah, tudo sem spoilers!

Wakanda

Quero começar com um ponto fortíssimo do filme: Ambientação e Figurino. O filme bebe muito da fonte do Afrofuturismo, movimento esse que mistura hi-tech com a ancestralidade da África. Este movimento começou lá em 1960 em paralelo com o movimento Beatnik. Em todo momento em que Wakanda é o plano de fundo, você percebe uma música tribal em contraste com uma batida de hip hop futurista e o encontro das duas te situa no universo que o filme quer passar para o espectador e tudo isso acontece nos primeiros 30 minutos de filme. Para dar mais profundidade ainda para esse mundo que mescla a tecnologia com as raízes tribais temos o figurino, cada um é mais inventivo que o outro e certamente este filme vai ser indicado ao Oscar por melhor figurino, tudo isso graças ao talento da Ruth E. Carter que já foi indicada pelo seu trabalho em Malcolm X, Amistad e Selma.

Claro que tudo isso é muito lindo e o trabalho de ambientação e de figurino é absurdo mas é lógico que isso não faz um filme ser bom. É aí que entra o roteiro e os personagens.
Se você for pegar o roteiro em si ele é simples e direto mas isso seria uma análise muito pobre do que ele realmente é. O roteiro em si é complexo e cheio de sub-camadas que você precisa estar atento para pegar suas nuances e o mais interessante é que os personagens auxiliam o desenvolvimento do roteiro e isso acontece de forma inversa também. As piadas são uma constante reclamação do público e aqui nós temos o equilíbrio perfeito entre momentos tensos e momentos de descontração. O elenco desse filme é perfeito, todos os atores são funcionais, complexos e bem desenvolvidos. T’Challa (Chadwick Boseman) é um rei com muitos conflitos internos e nem um pouco perfeito, aqui dá pra ver o peso da morte de seu pai e você sente o quão importante o pai dele é e como os ancestrais são importantes para o desenvolvimento do personagem. Ele ta quase para um Simba assim como o T’Chaka está para o Mufasa se não fosse um pequeno detalhe que não posso falar aqui. Vi muito dos traços característicos do Martin Luther King Jr. nele, mas isso foi uma visão pessoal e não sei se o diretor quis fazer esse link intencionalmente.
Quando estava navegando pela interwebs vi o crítico da Variety Peter Debruge dizendo a seguinte frase:

“KillMonger é o vilão de quadrinho mais satisfatório desde o Coringa de Heath Ledger”

Eu li isso e fiquei bastante receoso, tendo em mente que o Coringa foi uma surpresa muito grande e até hoje é um ícone de como fazer um vilão descente. Quando eu saí da sala de cinema eu tive que concordar com esse crítico. KillMonger (Michael B. Jordan) de fato é um vilão bem construído, com uma motivação plausível e atuação absurda. Esse é um ponto muito bom do filme, em nenhum momento o vilão é demonizado, pelo contrário, ele está certo em suas reivindicações e errado em outras coisas assim como o personagem do Pantera está certo em algumas coisas e errado em outras. Loki perdeu seu trono de melhor vilão da marvel e agora a chance é a do Thanos, será que ele consegue?
Todo o elenco feminino também é maravilhoso Nakia (Lupita Nyong’o), Okoye (Danai Gurira), Shuri (Letitia Wright) , Ramonda (Angela Bassett) são mulheres únicas sendo que cada uma tem seu papel importante dentro do filme e além disso são personagens femininas fortes demais, nunca tinha visto em tela personagens tão fortes em um filme de herói. Uma curiosidade: Shuri nos quadrinhos é uma Pantera Negra, será que no futuro veremos ela com o manto? O único ponto meio fraco do elenco é o Martin Freeman que parece estar meio deslocado em tudo aquele universo mas pelo menos ele é alvo de uma das melhores piadas do filme.

O único ponto que eu me senti um pouco incomodado foi o CGI e não foi por ele estar ruim e sim pelo excesso. Eu queria ver uma luta de pessoas mesmo em alguns momentos mas nada disso estraga a experiência que o filme te dá.
Pantera Negra não é um filme feito para mim e fez um estrago no meu emocional, fico realmente imaginando como o público negro sairá das salas do cinema. Agora sim uma criança negra pode se sentir representada em um filme digno assim como eu saí maravilhado e feliz quando assisti Homem Aranha 1 do Sam Raimi nos cinemas. Nunca se viu isso em Hollywood, um filme com o elenco totalmente negro da forma como eles são retratados, nunca foi visto antes um Rei soberano que seja negro e muito menos um filme que se passe maior parte dele em uma África futurista. Hoje temos um filme completo, representativo que traz de volta o ar ancestral da África. De longe o melhor filme da Marvel, sim ele é melhor que Soldado Invernal e qualquer outro filme da empresa.

Pantera Negra não é somente um filme é um acontecimento.
Wakanda Forever!

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João Pedro Mendes Pereira
9quadros

Leitor compulsivo de quadrinhos, amante de filmes, louco por música e ainda escrevo esses textos aí.