Saint Seiya — Uma confusão cósmica chamada, Saint Seiya.
Tem tanta coisa estranha nesse manga que o fato dos 10 cavaleiros de bronze serem irmãos é o de menos.
Eu cresci assistindo Saint Seiya, logo, tenho um carinho muito especial pela franquia. Tanto que sempre que anunciam alguma coisa nova eu tento sempre assistir, mesmo sendo péssima para acompanhar qualquer coisa.
Assisti um pouco do anime de Omega, depois de Lost Canvas duas visões da série por olhos completamente diferentes, e consigo dizer que o problema de Saint Seiya… é quem escreve. Porque potencial a história tem, é possível fazer um bom desenvolvimento, desde que você crie o ambiente certo para isso.
Uma dica: se vocês não querem quebrar suas fantasias sobre qualquer coisa da infância de vocês, nunca revejam, releiam ou reouçam essas obras. Vocês, hoje adultos mais críticos, vão encontrar esses buracos e pode ser que vocês se decepcionem. Ou não, isso é totalmente pessoal e o risco vai de cada um.
Saint Seiya tem problemas estruturais e alguns deles me incomodam demais, me frustram demais, sinto vontade de bater no Kurumada. Deixando destacado aqui que estou falando essencialmente do manga de Saint Seiya, há diferenças cruciais no desenvolvimento da história em relação ao anime.
Quebrando minhas próprias regras, porque sim!
Logo no primeiro capitulo do mangá, Kurumada estabelece três regras sobre as armaduras:
1 — Elas não devem ser usadas por motivos egoístas ou pessoais
2 — As armaduras foram criadas para proteger Athena, mas acima de tudo para proteger a justiça.
3 — A armadura não é apenas uma proteção para o corpo do cavaleiro, ela tem suas vontades e seu senso de dever, logo, ela pode rejeitar um cavaleiro que não esteja agindo de acordo com o esperado.
Para poder desenvolver a primeira trama do manga, ele quebrou a segunda regra fazendo com que os cavaleiros, sob ordens do Santuário, atacassem Athena. O que não deveria ser possível se lembrarmos que as armaduras têm “vontades próprias”. Contudo podemos relevar essa situação porque os cavaleiros de prata/ouro acreditavam que a verdadeira Athena estava no Santuário e Saori era uma impostora, ou seja, eles acreditavam que estavam defendendo a verdadeira Athena e a verdadeira justiça.
O que nos pega no ponto seguinte: o que é justiça? No mundo real a definição de justiça é muito variada, mas dentro do universo de Saint Seiya ela é um pouco mais simplificada. Os que acham que os fortes devem liderar e os fracos sucumbir e os acham que o dever dos fortes é proteger os mais fracos e os inocentes. Essa última sendo considerada a justiça de Athena.
Analisando por esse prisma podemos dizer que as armaduras de Athena são criadas dentro do princípio de proteger os mais fracos e inocentes. Sendo assim, elas não deveriam rejeitar quaisquer pessoas que não estivessem de acordo com esse consenso?
Para tentar dar uma profundidade maior a essa questão, Kurumada, quebrou essas regras e não seguiu bem essa lógica básica para fundamentar as atitudes de seus personagens, pelo contrário ele foi diretamente contra elas. Infelizmente isso não deu a real profundidade que ele queria e apenas fez com que seus personagens ficassem presos em discursos repetitivos de “justiça”, “verdadeira força”, “ser homem/cavaleiro”…
O mesmo aconteceu com seu outro chavão
“Uma técnica não funciona duas vezes contra o mesmo cavaleiro”. Exceto se você for o protagonista.
O primeiro tópico pode ter sido mais fácil de passar despercebido, mas tenho para mim que existe uma unanimidade em dizer que esse bordão não funcionou nem na primeira vez que foi utilizado.
Para mim essa frase é uma versão épica do “Não tá nem doendo” que meninos são ensinados a falar quando estão apanhando, para não saírem como fracos porque… masculinidade tóxica.
O que faz um ataque não funcionar é o momento em que o cavaleiro adversário se tornou ou é mais forte que o outro. Absolutamente não tem a ver com a técnica em si não funcionar mais. Todavia não consigo não imaginar essa situação como não sendo questão de orgulho masculino. Deixar claro que ele não só está mais forte, que é o que acontece nesse momento, como também os golpes do outro se tornaram fracos e inúteis, como quem debocha da força do outro para se julgar melhor.
A fraqueza dos Cavaleiros de Ouro
Por terem sido usados como os primeiros antagonistas do anime, eles acabaram sendo construídos como personagens derrotáveis e aparentemente mais fracos do que os inimigos seguintes. Pois se os cavaleiros de ouro tivessem o mesmo nível ou mais do que os Generais Marinas ou os três Juízes do Inferno teria sido impossível que os cavaleiros de bronze os tivessem derrotado logo no inicio da história.
Infelizmente ele prejudicou a ação dos personagens em arcos futuros, tendo que deixa-los de fora do arco de Poseidon com a desculpa de se preservarem para os Espectros de Hades e nem mesmo nessa saga terem enfrentado os Três Juízes ou os deuses Hipnos e Thanatos, morrendo para abrir o muro das lamentações.
Além disso ele matou a maioria dos cavaleiros que ainda poderiam ser poderosos na história, como o Camus e o Shura, além do Saga que foi o vilão central do arco do Santuário.
Foi bem decepcionante não ter visto todo o poder dos cavaleiros de ouro em combate. Mu, Aioria e Milos se mostraram um pouco durante a invasão ao Santuário, além de Kanon ter enfrentado Radamanthys, mesmo assim não foi o suficiente para deixar uma marca de seus poderes.
Problemas para definir mitologia
Não sei vocês, mas ver o Kido Mitsumasa olhando para o céu segurando Athena e perguntando ao Deus cristão se aquilo era uma missão, foi a coisa mais confusa do mundo. Além dos humanos Saori e Julian, sendo encarnações de Athena e Poseidon, discutindo sobre o diluvio bíblico.
A mistura entre a crença mundial cristã e o mundo secreto dos cavaleiros da mitologia grega não foi bem explorado. Na verdade não foi explorado, foi um comparativo muito constrangedor porque nada se desenvolveu disso.
Contudo eu admito, com muita felicidade, que eu chorei em vários momentos do mangá. Chorei mais que o Hyoga se querem um comparativo. Porque é uma história motivacional, isso é inegável. Eles estão sempre lutando para se superarem e cumprirem suas promessas, voltar para quem eles amam, encontrarem suas próprias formas de lidar com seus sofrimentos, honrarem aqueles que se foram e deixaram um legado em suas mãos, operando milagres, como diz Athena.
Chorei quando o Camus morreu, quando Saga morreu. Chorei com a morte do Isaak de Kraken, um dos Generais Marina que era amigo do Hyoga, chorei para cacete quando os cavaleiros de ouro morreram, chorei quando o Seiya foi atingido por Hades, chorei com os discursos motivacionais. Alias quem precisa de coach quando se tem Saint Seiya?
É bonito. De verdade, tem muita mensagem bonita em Saint Seiya, mas ele não é de longe perfeito e canônico. Tem falhas graves e criticáveis.
Como uma mulher adulta de 26 anos estou bem longe de ser o publico alvo do manga, contudo gostaria de fazer mais dois apontamentos da minha experiencia com o manga, algo que não está na estrutura, mas sim no que eu vi na narrativa da história e não me agradou em nada.
Excesso de protagonistas e falta de personalidade
Dizer “Seiya e os outros” sempre incomodou os fãs de Shun, Shiryu, Hyoga e Ikki. Claro que dizer o nome dos cinco o tempo todo também seria desgastante, aqui no Brasil temos todos em nossas memórias a voz de Jonas Mello dizendo “Depressa Cavaleiros de Athena…” foi um jeito inteligente de não ficar tão repetitivo, principalmente para ele como narrador.
A questão é, temos protagonistas demais que na verdade são praticamente todos idênticos. Exceto por pequenas particularidades que não causam grande relevância. O que eu observei é que poderiam ser apenas 3 cavaleiros de bronze, Seiya, Shun e Ikki. E sim, eu disse Shun!
Seiya e Shun tem personalidades bem diferentes que colocadas lado a lado criam uma profundidade na narrativa, já Hyoga e Shiryu são bem parecidos com Seiya em seu jeito de lutar, mas só acrescentam em conhecimento de “coisas que seus mestres contaram a eles” esse conhecimento poderia ser distribuído entre o Shun e o Seiya, e ambos os personagens não fariam falta a narrativa.
O próprio Ikki também não tem muito espaço, mas todo desenho tem aquele cara que aparece no último segundo para fazer uma entrada triunfal e dizer que não se mistura com a gentalha, mesmo fazendo parte da gentalha.
Observem bem que eu estou falando da construção de personalidade dos personagens, não de como eles são desenvolvidos na história, o Seiya é o talento natural, o que evolui rápido e continuamente, Shun é gentil e mesmo sendo um pacifista é incrivelmente poderoso e cumpre seu dever como cavaleiro até o fim, Ikki é o lobo solitário igualmente poderoso, Shiryu é extremamente inteligente, mas sempre tende a se sacrificar pelos outros e o Hyoga é extremamente raso em personalidade além de ter um relacionamento muito édipo com a sua mãe.
Claro que não estou cagando regra de gostar ou desgostar, ver ou não ver utilidade nos personagens, eu só achei que eles ficaram devendo em personalidade.
Masculinidade tóxica x Machismo
Eu nunca espero representatividade ou igualdade de gêneros em obras antigas, muito menos em um manga de “lutinha” de 1985. O Shun já foi a grande reviravolta desse manga e a maior desconstrução de gênero que poderia se esperar de uma obra tão… simplista.
Quando chegam a casa de Peixes, Shun pede para enfrentar Afrodite sozinho e Seiya já abre sua boca para debochar do cavaleiro.
“Aquele é o Cavaleiro de Peixes? Ele nem parece um homem”
Shun responde que não gosta desse tipo de comentário porque também já ouviu muito isso devido a seu comportamento. A reflexão de Shun sobre o que é ser um homem nesse momento foi a maior crítica a masculinidade tóxica de todo o mangá e feita diretamente ao publico masculino. Pensem comigo, é comum ouvir esse tema em discursos feministas, mas não em um manga cujo o publico alvo são meninos. Em quantos idiomas e para quantos meninos esse texto chegou?
Infelizmente não foi o suficiente para fazer a mensagem ressoar tanto quanto poderia, mas a tentativa de falar sobre isso existiu. Não podemos ignorar que o Shun sempre mostrou que é possível, sim, ser um homem digno sem ser um babaca.
Acrescentando aqui o que eu já mencionei antes a frase “um ataque não funciona duas vezes contra o mesmo cavaleiro” é utilizada sempre que um personagem quer mostrar a sua superioridade ao outro, mesmo que ela em si não faça o menor sentido já que eles usam a mesma técnica várias vezes contra os mesmos cavaleiros.
Mas acima de tudo o machismo de Saint Seiya é um deboche. As amazonas usam mascaras porque assim se colocam em pé de igualdade com os homens, abrindo mão de sua feminilidade e uma vida comum, além disso se um homem ver o rosto de uma amazona ela deve mata-lo ou casar-se com ele. OI?
Eu gosto das mascaras, eu acho interessante essa perspectiva. Mas as regras estipuladas sobre seu uso são ridículas. Além do mais as armaduras das amazonas não protegem em nada seus corpos como as armaduras masculinas. Com exceção de uma ou duas amazonas, elas só possuem busto e elmo. Onde isso é igualdade?
Além do mais é comum os cavaleiros dizerem que não batem em mulheres, sendo essas mulheres guerreiras tão treinadas quanto eles, novamente igualdade onde?
Finalizarei o meu texto com esse momento do Ikki, único homem sensato entre os 88 cavaleiros de Athena.