Relato sobre um relacionamento psicofóbico e a hipocrisia dos que se auto-intitulam “desconstruídos”

Vanessa Pereira
5 min readOct 9, 2016

Uma pesquisa recente afirma que muitos brasileiros consideram as vítimas de abuso culpadas de alguma maneira. Porém a culpabilização da vítima (e nisso foco especialmente quando as vítimas são mulheres) não ocorre só quando a violência é física, mas também quando a violência é psicológica, ou seja, as vítimas são sempre responsabilizadas pelas agressões que sofrem.

É extremamente problemático como as pessoas ignoram as vítimas de qualquer abuso e violência e tentam livrar o abusador a qualquer custo. Por que isso acontece? Por que não ouvir os que sofrem? Por que sempre importa mais a opinião de quem fez o ato do que quem ficou com as sequelas?

Eu estudei um ano e meio na Unicamp, e depois de viver diversos episódios traumáticos eu tive que abandonar a universidade. Os motivos são vários, desde insatisfação com o curso à casos de psicofobia, entretanto, foi este último que acabou sendo a gota da água e me fez deixar de vez um ambiente que estava sendo muito agressivo, o que agravava ainda mais as minhas crises.

Sempre fui uma criança “problemática”, comecei cedo o uso de medicamentos para controlar minha instabilidade emocional e impulsos suicidas, essa condição me fez crescer solitária até o ensino médio, que me proporcionou amizades memoráveis nas quais apesar da distância e responsabilidades carregadas por cada um hoje, tentamos manter a chama acesa. Já na Unicamp a satisfação por estar em uma universidade pública vinha acompanhada da insegurança de estar mais uma vez sozinha. Por mais difícil que foi, ainda consegui encontrar poucos amigos com quem poderia conviver no dia-a-dia: bandeijar, ir à festas…

Todo o alvoroço começou quando eu comecei a me relacionar com um cara da música (contrabaixo), um calouro de 2015, uma pessoa que eu tinha na minha mente ser o cara mais gente boa e compreensivo que eu poderia conhecer na universidade. Mas de repente, e eu não consigo ver essa transfiguração, se tornou uma pessoa extremamente abusiva, o que me levou à refletir nos resultados da pesquisa citada acima.

Eu fico extremamente horrorizada e tentando entender o que se passa na cabeça de todo mundo, principalmente daqueles que fazem parte de minorias e corroboram com esse tipo de visão. Porque não faz sentido reclamar de opressões e todos os dias silenciar as pessoas que tentam buscar ajuda, apoio e denunciar seu agressor. Esse comportamento é comum de modo geral, mas estou falando especialmente dos universitários mesmo, sendo mais especifica, dos universitários da Unicamp, que foi com quem eu sofri os episódios mais bizarros de psicofobia, eu estou falando dessas pessoas que se acham um poço de sabedoria e desconstrução e por isso são diferentes do “brasileiro comum”.

Nos últimos meses eu vivi um verdadeiro pesadelo, um relacionamento extremamente abusivo, com o Mr. Nice Guy 015 da música, por ser psicofóbico. Para as pessoas não importa o quanto isso foi violento para mim, não importa que meu desejo de estar na universidade tenha se tornado meu pesadelo, não importa a angustia horrível que eu sinto, não importa o fato de eu não conseguir mais suportar a realidade, não importa que eu sinta a ridícula e problemática necessidade que ele me espanque*** para que eu supostamente sinta um alivio do trauma psicológico… Não importa. O melhor é fechar os olhos e encarar que se não fosse as vítimas não haveria abusadores.

No meu caso, eu perdi contato com quase 100% das pessoas que convivi na Unicamp. Os que eram mais próximos ou ficaram omissos ou agiram de maneira semelhante à pessoa que se esconde atrás da bandeira LGBT para dizer que sofre opressão então seria incapaz de oprimir. Pessoas são pessoas, e podem ser cruéis e escrotas independente da orientação sexual. O estigma de “louca”, “desesperada” e “exagerada” foi bastante difundido pelos amigos esquerdomachos do moço, assim como pelas as amigas que falam sobre empatia e sororidade.

O pior foi pedir apoio aos coletivos feministas e LGBT da universidade e não obter feedback. Eu tenho consciência que a psicofobia é um assunto muito pouco debatido nesses grupos, e que por vezes esse tipo de comportamento é corroborado por essas mesmas pessoas, que acabam normalizando e banalizando essa questão. A maioria esquece que psicofobia é crime e configura uma conduta opressora, que causa danos à quem possui qualquer tipo de transtorno mental.

A situação só piorou quando eu me vi totalmente sozinha em Campinas, sem ninguém nem mesmo para bandeijar, e isso aumentava o sentimento devastador de estar sozinha. A situação era tão insuportável que eu ia procurar auxilio justamente no cara que frisava que eu deveria desaparecer mesmo porque ninguém era obrigado a lidar com a louca. “Ah mas você sabia que o cara era escroto e ia atrás? Quer o quê?” É, eu ia sim. O que eu queria? Não me sentir sozinha, não ouvir que eu era culpada, não ouvir coisas hostis. E repito, eu estava completamente sozinha. É fácil julgar que se a pessoa vai atrás do seu opressor é porque ela gosta de sofrer. Esse pensamento é de má fé, é desonesto, é não ter a mínima empatia com a pessoa que está totalmente vulnerável. As vezes eu ficava até mesmo pensando “ué, se todo mundo defende ele, e fala que ele é o cara desconstruidão do instituto de artes, talvez ele seja mesmo e eu que esteja encarando tudo de maneira errada”. Não, eu não estava enxergando de maneira errada. É engraçado porque quando tu está vivendo algo abusivo e tendo que lidar com gaslighting fodido todos os dias, até você mesmo começa a duvidar das coisas que você viveu para tentar colocar a lente que todos colocam.

“Mas nossa, você só fala disso, desse cara que fez isso. Supera!” Superar qualquer tipo de violência não é um processo simples, acho que ninguém supera totalmente. Você vai ter que viver todos os dias da sua vida com as consequências que esse tipo de coisa causa na sua vida. Você aprende a lidar, legal. Mas eu não consigo lidar enquanto eu vejo que na vida dessa pessoa está tudo bem, que ele está lá, com seu baixo, lindo, recatado e da música, enquanto eu e a minha vidinha está tudo um inferno. Pode soar meio vingativo isso, e até é mesmo, talvez essa visão seja um defeito meu, mas acho bem impossível tu querer ver bem a pessoa que fodeu com seu psicológico e tu não teve nenhum meio de se defender disso, de ser ouvida por isso. Então eu falo, e vou continuar falando, porque para mim esse foi o único meio de defesa que me restou. 

*** Eu tenho a consciência que espancamento também configura uma violência e que ela é absurda , e que muitas mulheres que sofrem esse trauma físico também carregam traumas psicológicos, além de que muitas mulheres morrem por isso. No entanto, minha posição, e o que eu sinto no momento, é que essa agressão da parte dele mudaria o foco da minha dor. O quanto isso é válido ou não, eu não sei dizer, tudo o que eu sei é que o trauma que carrego comigo é tamanho que me faz ter essa absurda relativização de violência contra meu próprio corpo, e é isso que deve ser entendido e problematizado.
(Qualquer problema referente a tal colocação pode me questionar)

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