Marina Batista, autora desse texto e modelo do Mulheres (In)Visíveis

Eu não me vejo por aí, por Marina Batista

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4 min readSep 10, 2018

Como todos, estou imersa em uma sociedade em que a publicidade tem um papel importante, não só pela influência de consumo, mas como afirmação de que pessoas que representam certas parcelas da sociedade existem. A publicidade normaliza, penetra no inconsciente, dá visibilidade… mas eu não me vejo por aí. Aliás, nunca me vi.

Mas afinal, quem sou eu para não ter um reflexo na publicidade até hoje? Eu sou uma pessoa com deficiência. Uma mulher, de 33 anos, cadeirante, tetraparésica. E agora você que lê esse texto está se perguntando como nunca me vi se algumas campanhas usam cadeirantes? Pois eu sigo afirmando que nunca me vi.

Quando criança não haviam cadeirantes ou pessoas com deficiência de qualquer tipo nas campanhas publicitárias, apesar de ter e desejar tantos brinquedos como uma criança qualquer da época. Na adolescência, nenhuma cadeirante figurava as campanhas de produtos contra acne. Eu não via nenhuma PcD nos anúncios de revistas voltadas para esse público. E nem precisaria ser uma pessoa como eu, bastava ter uma deficiência.

Minha patologia neuromuscular degenerativa, que faz com o passar dos anos todos os meus músculos atrofiarem, que faz minha força desaparecer aos poucos e assim, não só perder movimentos, mas com que meu corpo perca a capacidade de se sustentar, me deram de presente uma aparência ainda mais incomum: quadril torto, uma coluna em forma de S, uma certa corcunda e ombros estreitos me tornam uma “verdade inconveniente”. O meu corpo não é o corpo de pessoa com deficiência que hoje se vê ainda com pouquíssima frequência em campanhas por aí: tão funcional e próximo ao biotipo da “mulher padrão”. Meu corpo é o ponto fora da curva. Os corpos de pessoas (e são tantas) como eu são apagados, inexistentes.

Para a publicidade eu não tomo café da manhã em família usando margarina, não compro ração para meus cães, não presenteio namorados (afinal, como alguém vai se apaixonar por uma mulher assim, não é?), não uso maquiagem (apesar de sempre ter tido boca tão linda quanto Angelina Jolie e olhos espetaculares como Catherine Zeta-Jones e minha caixa de maquiagem ser tão grande que tiram sarro de mim), não rio com amigos no bar tomando cervejas, não faço supermercado (apesar de todas as decisões da casa passarem pelo meu crivo), nem uso lingeries.

Eu recebo tantos elogios ao meu cabelo bem cuidado, mas a publicidade não me espelha nas campanhas de shampoos e cremes de tratamento, muito menos nas tinturas para cobrir os fios brancos (ok, eu tenho orgulho dos meus fios esbranquiçados, mas já colori os cabelos de roxo, azul e vermelho). Também não há na publicidade ninguém como eu vestindo calçados ou se sentindo maravilhosa com o look desfilando sobre rodas pelas ruas, indo trabalhar ou frequentando aquela rede de fast-food. Eu continuo não me vendo por aí.

Para a publicidade eu sou a verdade inconveniente, invisível, eu não consumo e é ainda mais complicado de crescer de bem consigo (e foi para mim) quando sua existência passa despercebida, quando tudo ao seu redor grita no dia-a-dia que você não faz parte (ou não deveria fazer parte) do mundo, não é “normal”, adequada… para a publicidade eu não deveria nem estar querendo me sentir bonita ou valorizada. Afinal, minha patologia é grave, meu corpo é doente e eu deveria estar bem feliz que os seres humanos são solidários e meu corpo, às vezes, aparece representado em diversas campanhas de conscientização sobre vagas reservadas, inclusão social e campanhas de nível nacional para arrecadar fundos voltados a centros de reabilitação. Eu existo, mas só nesse contexto. Foi isso que a publicidade me disse todos esses anos e é isso que ela continua me dizendo. E eu continuo não me vendo por aí.

Desculpa, publicidade, meu corpo vive, socializa, é “de carne e osso”, tem desejos, consome, se pinta, se relaciona. Jamais fui personagem de desenho animado para ser invisível. Eu existo e estou bem aqui, por todas mulheres que são verdades inconvenientes, te apontando o dedo: quero me ver por aí.

Marina Batista é graduada e pós-graduada em design, escreve no Rodando pela Vida e foi uma das modelos do Mulheres (In)Visíveis.

O Mulheres (In)Visíveis é primeiro banco de imagens de mulheres que você não vê na publicidade. Criado pela 65/10 e Adobe, você pode ver e comprar as fotos do projeto aqui: https://adobe.ly/MulheresInvisiveis18

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65|10

Consultoria para melhorar a representação da mulher na publicidade, tanto nas campanhas, quanto dentro das agências.