Nada de nós, sem nós por Fatine Oliveira

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4 min readSep 14, 2018

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Me lembro quando decidi me tornar publicitária, acreditava no estereótipo do profissional descolado, com grana e cheio de prêmios na estante. Assistia aos comerciais imaginando que um dia teria condições de fazer alguns deles. Minha mãe sempre me incentivou a estudar, pois sabia que uma pessoa com deficiência precisaria de muito potencial para se manter nessa sociedade competitiva. De certo modo, já previa as dificuldades do porvir.

Segui meus estudos e, finalmente, consegui ingressar na faculdade. As primeiras lições da área despertaram meu interesse. Para atingir o objetivo de uma campanha era necessário conhecer bem seu público. Entretanto, tal ensinamento não dimensionava a profundidade da pergunta a seguir: quem é meu público?

Ao longo do curso encontrei barreiras já conhecidas por alguém com deficiência, ou melhor, cadeirante. Escadas, elevadores com defeito, salas pequenas e todo tipo de impedimentos na arquitetura da instituição. Como sempre, foi preciso muito debate, discussão e força para fazer valer os direitos. Eu não era o público esperado ali, era o recado.

Talvez essas dificuldades tenham surgido para me prepararem, havia um segundo round a minha espera. Era preciso buscar oportunidades no mercado de trabalho para concluir os ensinamentos do curso. Iniciou-se em minha vida uma epopeia de portas fechadas seguidas do mesmo argumento: seu portfolio é ótimo, mas não temos acessibilidade.

Me senti confusa com estas recusas, como profissionais com vasto conhecimento sobre diversas áreas não pensaram em pessoas com deficiência? Meus pensamentos giravam em busca de um amparo para tamanha decepção. Como poderia adquirir experiência? Sentia meu sonho escorrer pelos dedos.

Consegui o emprego em uma instituição filantrópica, o qual me ofereceu mais capacidade do que poderia imaginar, além de me trazer outro tipo de experiência sobre a comunicação. Mais tarde, encontrei uma única agência com condições de me receber onde pude me especializar em criação. Aos poucos, o estereótipo do publicitário deixou de ser um objetivo na minha história, no lugar dos prêmios na estante busquei por um meio de me manter apenas.

Toda essa narrativa me fazia retornar a principal pergunta do curso: quem é o público? Ali observei que havia muito mais a se perguntar sobre quem não era o público, quem como eu não era lembrado nas diversas campanhas. Trabalhando com criação, no caso direção de arte, comecei a observar como somos condicionados a repetir padrões em nosso trabalho. Ao se fazer uma série de peças para serviços de beleza, notei a dificuldade em encontrar imagens de mulheres negras.

No meio destas mudanças, comecei a pesquisar e questionar a ausência de pessoas com deficiência nas propagandas, como já tinha o costume de escrever sobre o tema, resolvi criar um espaço para colocar minhas reflexões. Com o nome Disbuga, inicialmente criei um canal no youtube e depois transformei em blog para aprofundar melhor as ideias.

Entretanto, a pergunta ainda permanece: quem é o público?

Nosso sistema transforma em padrões corpos e modos de vivermos nossas vidas, afim de facilitar as produções e o consumo de produtos e serviços. Porém, hoje não funciona mais o estilo de comunicação bilateral, onde o receptor é um ser passivo e sem variação de respostas. O fluxo mudou, as tendências estão nas ruas, o tom das campanhas é definido pelas redes sociais e as celebridades tornaram-se pessoas comuns.

Diante deste cenário, o processo de identificação é complexo e fluido. Não há mais espaço para pasteurização dos discursos. É preciso inserir tudo e todos. As vozes antes silenciadas hoje gritam e unem-se contra aqueles que insistem em negar o espaço para elas.

Se a grande mídia não oferecer mais lugar, a internet acolhe e viraliza. Compartilhamos o que apoiamos, o que conecta com o que somos. Hoje o “nada de nós, sem nós” tornou-se palavra de ordem. Com isso, profissional de comunicação deve andar de acordo com as mudanças e mudar a pergunta para: conheço mesmo o meu público?

Caso contrário, vai se tornar um desses profissionais que vivem de premiações passadas e acreditam que mudanças são clichês constrangedores.

Fatine Oliveira é publicitária e escritora. Gosta de desenhar, de filosofar coisas insólitas, ver filmes que ninguém gosta e pensar o que todo mundo evita. Louca por café. Ainda existem boatos por aí, mas deixa rolar. Ela foi uma das especialistas que ajudaram a 65/10 a construir as fotos do Mulheres (In)Visíveis.

O Mulheres (In)Visíveis é primeiro banco de imagens de mulheres que você não vê na publicidade. Criado pela 65/10 e Adobe, você pode ver e comprar as fotos do projeto aqui: https://adobe.ly/MulheresInvisiveis18

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65|10

Consultoria para melhorar a representação da mulher na publicidade, tanto nas campanhas, quanto dentro das agências.