A Teoria Austríaca dos Ciclos Econômicos: uma breve explicação

Fabrício
24 min readOct 12, 2019

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O primeiro a apresentar a TACE foi, obviamente, Ludwig von Mises em seu livro Theory of Money and Credit. Não obstante, não utilizarei considerações hayekianas neste artigo.

Futuramente estarei postando um artigo mais técnico e puramente teórico.

Os ciclos econômicos

Sem nenhum exagero, ciclo econômico é o assunto mais fascinante de toda a ciência econômica. E não só é o mais fascinante, como também é o mais importante: ciclo econômico é um fenômeno que tem a capacidade de acabar com todas as conquistas recentemente obtidas por uma economia.

A economia passa dez anos crescendo, com tudo indo aparentemente bem, até que então vem uma recessão profunda que acaba com todos os ganhos desse período.

Vide o Brasil: no final de 2016, a economia havia recuado ao mesmo tamanho que tinha em 2010. Em dólares, nossa renda per capita em 2016 voltou a ser a mesma de 2008.

Gráfico 1: evolução da nossa renda per capita em dólares ajustada pela paridade do poder de compra. Fonte: Trading Economics, com dados do Banco Mundial

Em termos de poder de destruição, o ciclo econômico só perde para o socialismo.

E um detalhe crucial: a economia pode ser bastante livre, com pessoas empreendedoras, baixa burocracia, baixos impostos etc. Porém, se o governo fizer besteira em uma determinada área — que é o assunto deste artigo — , a economia será esfacelada.

Exemplos clássicos são Irlanda e Islândia: economias livres que, por causa da negligência nesta área, vivenciaram uma aguda recessão. O mesmo aconteceu também em toda a Europa, principalmente Portugal, Espanha, Grécia e Chipre. E claro, também aconteceu no Brasil.

As causas de um ciclo econômico

Em um dado momento, a economia parece estar indo muito bem: a renda está crescendo, o emprego está subindo, as indústrias estão se expandindo e contratando, os investimentos estão aumentando, o comércio e os serviços estão vendendo muito e contratando bastante, lojas de todos os tipos estão sendo abertas, restaurantes estão sempre cheios e com fila de espera, e a população está consumindo cada vez mais.

Tudo indo muito bem. Aparentemente.

E aí, de repente, o cenário vira, a economia entra em recessão, os investimentos se retraem, as pessoas param de consumir, as indústrias dão férias coletivas (e depois demitem), várias outras indústrias fecham, o desemprego aumenta, lojas passam o ponto, placas de “aluga-se” se tornam parte da paisagem urbana, vários pontos comerciais ficam permanentemente vazios, sem locatários etc.

Por que isso acontece?

Indo direto ao ponto: para entender por que há flutuações econômicas, é necessário analisar exatamente o que afeta as transações econômicas. Mais especificamente, qual é a variável que está presente em toda e qualquer transação econômica?

A moeda

O dinheiro é o elo entre todas as atividades econômicas, e representa a metade de toda e qualquer transação econômica feita.

Há um comprador demandando um bem, há um vendedor oferecendo esse bem, e esta transação será efetivada, na maioria das vezes, por meio do dinheiro.

Se você compra uma roupa, você recebe a roupa e em troca dá dinheiro. Se você compra comida, você recebe a comida e em troca dá dinheiro. Se você compra a mão-de-obra de um eletricista ou de encanador, você recebe o serviço e em troca dá dinheiro.

O dinheiro, portanto, está presente em todas as transações econômicas e representa a metade de cada um dessas transações.

E, dado que o dinheiro está presente em todas as transações econômicas, a lógica nos diz que qualquer manipulação e alteração nessa variável irá afetar toda a economia.

Portanto, em qualquer análise lógica de ciclo econômico é necessário analisar o que está ocorrendo com essa variável crucial, que é o dinheiro.

Mas qual dinheiro analisar? Há vários dinheiros. Há o dinheiro que está na sua carteira (as cédulas de papel e as moedas metálicas). Há o dinheiro que está na sua caderneta de poupança. Há o dinheiro que está em um depósito a prazo. Há o dinheiro que está em um fundo DI. Há o que está em um fundo multimercado. Há o que está em um fundo cambial etc.

Qual deles?

Apenas um: aquele que está na conta-corrente. Nos depósitos à vista.

Por quê? Basta utilizar a praxeologia. Se você coloca dinheiro na poupança, ou em um fundo de investimento, ou em um depósito a prazo (CDB, LCI, LCA), ou em qualquer modalidade citada acima, você não está pensando em gastar todo esse dinheiro amanhã ou no futuro próximo. Você quer deixá-lo ali, rendendo juros.

Você pode, em alguns casos específicos, até usar esse dinheiro para pagar contas, mas não é um dinheiro que você está pensando em gastar volumosamente (ou totalmente) daqui a, digamos, dois dias. Você, repetindo, quer deixá-lo ali rendendo juros.

E desse dinheiro aplicado, uma parte fica presa no mercado interbancário — servindo pra operações compromissadas, para compulsório junto ao Banco Central, para atender a regulamentações bancárias, para formar colchão de liquidez, para provisões contra calotes, para atender ao Índice de Basileia etc. — e a outra parte será emprestada.

E esta, ao ser emprestada, cairá na conta-corrente de alguém, que então irá gastar esse dinheiro (afinal, foi para isso que ele pediu o empréstimo).

Já o dinheiro que você já deixa separado na conta-corrente é aquele dinheiro que você está pensando em gastar todo amanhã ou em um futuro próximo. Ele não rende juros.

No caso de empresas, esse comportamento é ainda mais óbvio. Empresa que deixa dinheiro na conta-corrente está usando esse dinheiro como capital de giro. Está planejando gastar esse dinheiro no futuro próximo. Ela não está atrás de juros.

Para uma empresa, dinheiro na conta-corrente é dinheiro de liquidez imediata. É o dinheiro que ela usa diariamente para consumir, investir, contratar mão-de-obra, pagar fornecedores, pagar salários etc.

Já quando a empresa está com alguma reserva de caixa e não está pensando em contratar, gastar ou expandir, ela aplica esse dinheiro — gerando os mesmos efeitos descritos acima para a pessoa física.

É crucial enfatizar esse ponto: dinheiro na conta-corrente é o dinheiro de liquidez imediata. É o dinheiro que pessoas e empresas deixam separado para usar diariamente, e em grandes volumes, para consumir, investir, contratar mão-de-obra e pagar salários. É o capital de giro, como já dito.

E como surge dinheiro na conta-corrente? De duas maneiras: ou ele vem do resgate de uma aplicação ou ele vem da expansão do crédito.

Quando uma empresa vai a um banco pedir um empréstimo ou descontar uma duplicata, esse dinheiro cai na conta-corrente dela e funciona ou como capital de giro ou como dinheiro a ser investido na expansão do negócio ou na contratação de mão-de-obra.

O mesmo vale para uma pessoa física que pega empréstimo. O dinheiro vai para a conta-corrente dela.

Portanto, o dinheiro na conta-corrente é o dinheiro que está prontamente disponível para as pessoas consumirem e para as empresas comprarem maquinário, expandirem suas instalações, ampliarem sua produção, pagarem fornecedores, reporem estoques, contratarem mão-de-obra etc.

Como se trata de uma aplicação que não paga juros, o dinheiro em conta-corrente representa aquele dinheiro que está sendo diariamente transacionado na economia a grandes volumes.

Trata-se do dinheiro realmente líquido. É o dinheiro que, em suma, irá determinar o volume de gastos da economia.

Assim, com isso em mente, é possível fazer a seguinte constatação praxeológica e apriorística: dado que é o dinheiro na conta-corrente quem determina o volume de gastos produtivos da economia — salários, investimentos na economia física, aquisição de máquinas, consumo, pagamento de fornecedores etc. — , é exatamente ele quem vai governar todas as flutuações da economia.

Sendo assim, podemos fazer as seguintes deduções:

(i) Se a quantidade de dinheiro nas contas-correntes está aumentando — seja porque o crédito está se expandindo ou porque as pessoas estão saindo da renda fixa (retirando dinheiro de aplicações) — , então o volume de gastos está crescendo e a economia está aquecida. Está havendo muito consumo e investimento.

(ii) Se a quantidade de dinheiro nas contas-correntes está diminuindo — seja porque o crédito está se contraindo ou porque as pessoas estão indo para a renda fixa (colocando o dinheiro em aplicações financeiras) — , então o volume de gastos está desacelerando e a economia está se arrefecendo. Consumo e investimentos estão em queda.

O gráfico abaixo mostra a evolução da quantidade de dinheiro em conta-corrente (depósitos à vista). Trata-se de um gráfico do próprio Banco Central, retirado diretamente do site da instituição (clique aqui).

Gráfico 2: evolução da quantidade de dinheiro em conta-corrente (depósitos à vista). Fonte: Banco Central

Como ele está cheio de oscilações mensais, que são perfeitamente normais — por exemplo, todo dezembro sempre há um aumento por causa das festas de fim de ano, do 13º salário, do comércio mais movimentado etc. — , coloquemos este gráfico na forma de média móvel de 12 meses pra suavizar as oscilações mensais.

Gráfico 3: evolução da quantidade de dinheiro em conta-corrente (depósitos à vista). Média móvel 12 meses. Fonte: Banco Central

Em estatística, a média móvel é um recurso muito utilizado para se identificar a tendência de um conjunto de dados dispostos em uma série temporal. A média móvel suaviza os movimentos voláteis de uma série temporal.

Este, portanto, é o gráfico da evolução da quantidade de dinheiro nas contas-correntes do Brasil. Começando no ano 2000.

Segundo a teoria acima deduzida, quando a quantidade de dinheiro nas contas-correntes está acelerando, isso significa que:

(i) ou está havendo expansão do crédito — os bancos estão jogando dinheiro na economia por meio do mecanismo das reservas fracionárias. (Mais especificamente, os bancos simplesmente criam dígitos eletrônicos no computador e acrescentam esses dígitos na conta do tomador do empréstimo);

(ii) ou as pessoas físicas e jurídicas estão saindo da renda fixa e indo para a conta-corrente para poderem consumir mais, contratar mais, investir mais na economia física.

Ou as duas coisas ao mesmo tempo.

Inversamente, quando a quantidade de dinheiro nas contas-correntes está desacelerando ou mesmo se contraindo, isso significa que: a) as pessoas e empresas estão indo para a renda fixa para aproveitar juros maiores, e b) mais empréstimos estão sendo quitados do que concedidos. Consequentemente, empresários estão gastando menos, contratando menos e investindo menos na produção.

Portanto, só de olhar para o gráfico e munido de toda essa teoria lógica apresentada, é possível determinar exatamente quando a economia está em aceleração e quando está em retração.

Gráfico 4: evolução da quantidade de dinheiro em conta-corrente. As linhas azuis indicam aumento e as linhas pretas, desaceleração ou contração. Fonte: Banco Central

Quando a quantidade de dinheiro na conta-corrente está acelerando, o número de transações econômicas está aumentando. O volume de gastos está aumentando, tanto para consumo quanto para investimentos produtivos. Está havendo mais consumo, mais investimentos, mais gastos, mais contratações.

E quando a quantidade de dinheiro está desacelerando, o número de transações econômicas está diminuindo. O volume de gastos está diminuindo, tanto para consumo quanto para investimentos produtivos. Está havendo menos consumo, menos investimento, menos gastos, menos contratações.

Assim, com base na teoria, só de olhar para o gráfico acima é possível inferir que houve desaceleração econômica (linhas pretas) em 2003, em 2005, no final de 2008 e início de 2009, no final de 2011 e início de 2012, e uma forte em 2015 e 2016.

E houve crescimento econômico (linha azul) nos outros períodos, sendo um crescimento forte nos períodos 2006–2008 e 2010.

Eis o gráfico do PIB de um trimestre em relação ao trimestre imediatamente anterior, de 2000 até o terceiro trimestre de 2017 (último dado disponível).

Gráfico 5: evolução do PIB de um trimestre em relação ao trimestre imediatamente anterior. Fonte: Trading Economics, com dados do IBGE

Podemos observar a contração do PIB no primeiro trimestre de 2003 e estagnação no segundo trimestre. Exatamente como previsto no gráfico da oferta monetária.

Crescimento forte em 2004, estagnação no primeiro trimestre de 2005 e contração no terceiro trimestre de 2005. Exatamente como previsto no gráfico da oferta monetária.

Crescimento contínuo de 2006 até o final de 2008, e queda forte no último trimestre de 2008 e primeiro trimestre de 2009. Exatamente como previsto no gráfico da oferta monetária.

Crescimento forte em 2010 e 2011, e uma retração no terceiro trimestre de 2011 e outra no primeiro trimestre de 2012. Exatamente como previsto no gráfico da oferta monetária.

Finalmente, crescimento em 2013, estagnação em 2014 e recessão forte em 2015 e 2016, com vários trimestres seguidos de contração econômica. Exatamente como previsto no gráfico da oferta monetária.

Em 2017, há uma recuperação, mas simplesmente porque a oferta monetária, que estava encolhendo, parou de encolher e voltou a apresentar uma pequena reação.

No cômputo final, de 2002 até 2018, foram 63 trimestres. Destes, houve 16 trimestres de recessão e 4 de estagnação. Ou seja, em 20 trimestres de 63 — um terço do tempo — , nós ou encolhemos ou ficamos parados.

E uma curiosidade:

Gráfico 6: evolução relativamente constante de 2002 a 2008, e evolução totalmente errática de 2009 a 2017

De 2003 até 2008, período em que tivemos uma política econômica (monetária e fiscal) mais ortodoxa, o crescimento foi relativamente estável e uniforme. E então veio a crise mundial de 2008 e o governo adotou a Nova Matriz Econômica. Como toda política heterodoxa, o crescimento inicial foi alto. Mas aí vieram os inevitáveis problemas estruturais, cambiais, fiscais e de inflação de preços, e os aparentemente bons (porém artificiais) resultados foram rapidamente abortados.

Primeira conclusão: o comportamento errático da economia brasileira está intrinsecamente ligado às variações na oferta monetária. Mas dado que o PIB mensura volume de gastos, então realmente não é nenhuma surpresa que ele se mova estritamente de acordo com as variações da oferta monetária líquida.

O que nos leva ao próximo ponto.

Variações na oferta monetária: quem é o responsável?

Obviamente, quem detém o monopólio sobre a moeda do país é o Banco Central. Mas como provar que quem realmente está no controle de toda aquela variação da oferta monetária é o Banco Central?

Foi dito que a quantidade de dinheiro nas contas-correntes varia de acordo ou com a expansão do crédito ou com as pessoas indo para a renda fixa ou saindo da renda fixa.

Mas essas são afirmações praxeológicas. E também é uma afirmação apriorística e praxeológica dizer que quem controla ambos esses fenômenos é o Banco Central por meio de sua manipulação da taxa básica de juros, a SELIC.

Pela teoria, se o BC aumenta a SELIC, ele encarece e desestimula empréstimos. Consequentemente, a criação de dinheiro em conta-corrente tende a diminuir. Juros maiores também estimulam pessoas e empresas a saírem da conta-corrente e irem para a renda fixa. Empresários deixam de investir e contratar e vão buscar refúgio na renda fixa.

Inversamente, se o BC reduz a SELIC, ele barateia e estimula empréstimos. Consequentemente, a criação de dinheiro em conta-corrente tende a aumentar. Juros menores estimulam pessoas e empresas a saírem da renda fixa em busca de maiores retornos na economia real. Empresários colocam dinheiro na conta-corrente para expandir os negócios, investir mais e contratar mais

Será que a prática confirma a teoria de que quando o Banco Central mexe na SELIC ele mexe diretamente na oferta monetária?

Eis o gráfico comparando evolução da oferta monetária (dinheiro na conta-corrente) e as variações na SELIC (em valores mensais), ambas com média móvel de 12 meses:

Gráfico 7: evolução da quantidade de dinheiro em conta-corrente (linha azul) versus evolução da SELIC em valores mensais (linha vermelha). Fonte: Banco Central

A linha azul, já exibida antes, é a evolução da quantidade de dinheiro nas contas-correntes. A linha vermelha é a taxa SELIC, que está sob direto controle do Banco Central. Ambas estão com média móvel de 12 meses para suavizar os movimentos.

Quando a SELIC sobe (2003, 2005, 2008, 2010–2011, 2014–2016), a quantidade de dinheiro na conta-corrente ou desacelera ou pára de crescer ou encolhe. Quando a SELIC cai (2004, 2006–2007, 2009, 2012, 2017), a quantidade de dinheiro na conta-corrente aumenta.

Ou seja, exatamente como prevê a teoria, alterações na SELIC afetam diretamente a quantidade de dinheiro na conta-corrente — isto é, a quantidade de líquido na economia, aquele dinheiro pronto para o investimento e para o consumo.

Primeiras conclusões

Até agora, dois fenômenos já foram constatados:

(1) a taxa SELIC afeta diretamente a quantidade de dinheiro líquido na economia; e

(2) alterações na quantidade de dinheiro líquido na economia afetam diretamente os números do PIB.

Logo, por consequência lógica, a taxa SELIC afeta diretamente a economia.

Embora essa constatação pareça um senso comum, dado que todas as escolas de pensamento econômico falam isso, as implicações dessa descoberta são muito mais profundas do que parecem. Normalmente, fala-se apenas que “juros altos são ruins”. Mas ninguém faz essa ligação causal-realista, relacionando juros à oferta monetária e oscilações da oferta monetária às oscilações da economia.

É verdade que, até agora, essa descoberta não parece ter sido tão especial assim. Por isso, façamos agora uma abordagem mais distintamente austríaca.

Como exatamente alterações nos juros e na oferta monetária afetam a economia

É neste ponto que a Teoria Austríaca dos Ciclos Econômicos (TACE) assume um postulado ímpar. Ao contrário das outras escolas de pensamento, a TACE enfatiza que manipulações nos juros e na oferta monetária afetam diferentemente cada setor da economia.

Mais especificamente, a TACE afirma que os setores que estão no início da cadeia produtiva, aqueles que estão mais longe dos consumidores — isto é, as indústrias de bens de capital, as que produzem maquinário — serão os mais afetados pelas manipulações dos juros. E os setores que estão mais próximos dos consumidores — varejo e serviços — serão os menos afetados.

Eis a lógica: suponha que a economia esteja em forte crescimento. Os juros estão caindo e está havendo expansão monetária. Por exemplo, o período 2006–2008.

Gráfico 8: evolução da quantidade de dinheiro em conta-corrente (linha azul) versus evolução da SELIC em valores mensais (linha vermelha), com ênfase no período 2006–2008. Fonte: Banco Central

Nesta fase, o crédito está se expandindo, as pessoas estão se endividando para consumir, a quantidade de dinheiro está aumentando, a renda das pessoas está crescendo, o emprego está farto, e tudo está indo aparentemente bem.

Principalmente: o consumo está alto e o comércio, aquecido.

Se as vendas das Casas Bahia estão aumentando e os estoques estão diminuindo, a primeira medida será encomendar novos produtos para repor seus estoques. Se as geladeiras, os fogões, as televisões e os móveis estão sendo vendidos rapidamente, de modo que os armazéns das lojas estão se esvaziando, então a encomenda de novos estoques será constante.

Consequentemente, os fornecedores das Casas Bahia — o setor atacadista — aumentarão suas encomendas para as indústrias. E as indústrias, por sua vez, aumentarão sua produção.

E com um detalhe: essas indústrias que irão aumentar sua produção de fogões, geladeiras e televisões irão demandar mais bens de capital (máquinas e equipamentos) para aumentar essa produção. Consequentemente, as indústrias de bens de capital terão de aumentar sua fabricação de bens de capital.

Observe que chegamos ao início das etapas de produção.

As indústrias de bens de capital produzem o maquinário que será utilizado pelas indústrias de bens de consumo para fabricar televisões, geladeiras, fogões etc. E as indústrias de bens de consumo venderão para o setor atacadista, que então irá revender para as Casas Bahia (varejo).

Como consequência dessa atividade aquecida, todas essas indústrias terão de contratar mais operários. E como os juros estão baixos, todas essas indústrias conseguem crédito barato para expandir sua produção.

E aí o ciclo se intensifica: a oferta monetária segue crescendo, aumentando renda e impulsionando ainda mais o consumo. O faturamento de todas essas indústrias está aumentando.

Ou seja, segundo a TACE, nessa fase da expansão do crédito, em que está havendo aumento da renda e do consumo, o setor industrial é o que mais se expande. A indústria faz vários investimentos visando a expandir suas instalações e sua capacidade produtiva, contratando mais empregados e fabricando mais bens.

Comércio e serviços também se expandem. As Casas Bahia terão de contratar mais comerciantes para vender os produtos. Com o consumo em alta, o comércio como um todo também contrata mais pessoas, assim como o setor de serviços.

Mas quem mais se expande é o setor industrial.

No entanto, tal bonança não dura para sempre. Como esse arranjo é interrompido?

A carestia

Tudo começa com a alta dos preços. A quantidade de dinheiro na economia está crescendo por causa da expansão do crédito tanto para consumo quanto para investimento. Consequentemente, o volume de gastos também está crescendo. E como os salários e o consumo estão em alta — por causa majoritariamente do aumento da quantidade de dinheiro e do volume de gastos — , não há como impedir o aumento acelerado dos preços.

E o que acontece quando os preços começam a subir forte? O Banco Central sobe a taxa básica de juros, a SELIC. (Para melhor entendimento sobre o funcionamento da política monetária brasileira, clique aqui).

E o que acontece quando a SELIC sobe? Já demonstrado acima: a quantidade de dinheiro começa a desacelerar e chega até a estagnar. Consequentemente, a renda e o consumo param crescer. E aí tudo começa a se desfazer.

Atentem para o detalhe: a renda estava aumentando por causa da expansão monetária. E estava havendo expansão monetária porque empresas e pessoas estavam pegando empréstimos ou saindo da renda fixa e indo para a economia real.

Logo, assim que essa expansão do crédito é interrompida, a renda para de subir. As pessoas estarão endividadas e com uma renda estagnada. Consequentemente, a demanda irá cair.

E então os investimentos feitos pela indústria se comprovarão errados, mal direcionados. Por quê? Porque as indústrias acreditaram que esta demanda dos consumidores seria definitiva e sustentável — ou, no mínimo, duradoura. Consequentemente, elas investiram de acordo com essa crença.

(E tinham de investir, pois estavam atendendo a uma demanda. É uma questão de sobrevivência. Se uma indústria não investisse, outra o faria e tomaria fatia de mercado).

Esses são os chamados “investimentos errôneos” (ou malinvestments). São investimentos para os quais a demanda não é sustentável, pois essa demanda era baseada na manipulação dos juros e na expansão monetária (o que inclui endividamento).

E aí o que acontece? As vendas das Casas Bahia diminuem e os estoques se acumulam. Mas a primeira medida dos donos das Casas Bahia não será a de demitir empregados, pois os custos de demissão e de readmissão futura (treinamentos dos recém-contratados) são altos. Por isso, a demissão da mão-de-obra do setor de comércio tende a ser um recurso de última instância.

A primeira medida das Casas Bahia será diminuir a encomenda de novos estoques. Consequentemente, os fornecedores das Casas Bahia — o setor atacadista — reduzirão suas encomendas para as indústrias. E as indústrias de fogões, geladeira e televisão irão reduzir sua produção e, consequentemente, sua demanda por bens de capital. E então as indústrias de bens de capital irão parar. E o faturamento de toda a indústria vai diminuir.

E aí o primeiro recurso será dar férias coletivas. Se as coisas não melhorarem, demissões.

No final, todo aquele investimento e toda aquela expansão dessas indústrias se mostram errados, pois foram baseados na crença de que haveria uma demanda forte e contínua por seus produtos.

Ou seja, nos ciclos econômicos, os setores da economia que mais se expandem e que mais se contraem são aqueles que estão no início da cadeia produtiva.

Quando uma economia entra em processo de crescimento, o setor industrial é o que mais contrata e o que mais investe; e quando a economia entra em recessão, o setor industrial é aquele que mais corta empregos e que mais reduz seus investimentos.

Depois vem o setor atacadista. Depois o comércio. Já o setor de serviços tende a ser o que menos sofre.

De um ponto de vista prático

Tudo o que foi descrito acima é apenas uma teoria, vamos ver a prática no Brasil.

No gráfico abaixo, a linha vermelha é a SELIC e a linha azul é a produção da indústria de bens de capital, que é quem fabrica as máquinas que serão usadas pelas indústrias que irão fabricar os fogões para as Casas Bahia.

Gráfico 9: evolução da SELIC (linha vermelha) versus produção da indústria de bens de capital (linha azul). Fonte: Banco Central

O setor de bens de capital, relembrando, é aquele que está lá no início da cadeia produtiva.

A correlação é direta: a SELIC cai, a produção da indústria de bens de capital sobe. A SELIC sobe, a produção da indústria de bens de capital cai. Exatamente como prevê a Teoria Austríaca dos Ciclos Econômicos.

No próximo gráfico, a linha verde é a produção da indústria de bens de consumo, que é quem compra os bens de capital para fabricar os fogões pras Casas Bahia. Observe que a oscilação também acompanha diretamente os juros (linha vermelha) e a indústria de bens de capital (linha azul), embora já seja menor.

Gráfico 10: evolução da SELIC (linha vermelha) versus produção da indústria de bens de capital (linha azul) versus produção da indústria de bens de consumo (linha verde). Fonte: Banco Central

A menor oscilação é explicada exatamente pelo fato de se tratar de uma indústria que está mais próxima do consumidor final.

Por fim, vejamos o comércio.

No gráfico abaixo (o site do BC mudou aleatoriamente a cor das linhas, sem dar opção), a linha vermelha é a SELIC, a verde é a indústria de bens de capital e a azul é o comércio.

Gráfico 11: evolução da SELIC (linha vermelha) versus produção da indústria de bens de capital (linha verde) versus comércio ampliado (linha azul). Fonte: Banco Central

Observe que o comércio é o exatamente o setor que menos sofre, pois é o que está mais próximo do consumidor final. Ainda assim, há alguma correlação entre ele e a SELIC.

(A única vez em que o comércio não foi afetado por uma subida na SELIC foi em 2010–2011. Em todo o resto ele o foi, em maior ou menor grau. De 2014 em diante, foi explícito).

Ou seja, mais um pilar da TACE, foi comprovado pela prática: alterações nos juros afetam muito mais profundamente aqueles setores que estão lá no início da cadeia produtiva, longe do consumidor final, e afetam menos aqueles que estão mais próximos dos consumidores. Quanto mais próximo do consumidor final, menor é a volatilidade do setor.

Ludwig von Mises começou a explicar tudo isso em 1912 e explicou por completo na década de 1920. Estamos em 2019 e tudo continua funcionando exatamente como ele deduziu. Nenhuma outra escola de pensamento econômico enfatiza esse ponto. Com efeito, nenhuma outra parece sequer saber disso.

Como alterações nos juros, na oferta monetária e na estrutura de produção afetam os preços

Por último, a última e talvez mais importante parte: ver como as alterações nos juros, na oferta monetária e na estrutura de produção — que é o que o já vimos até agora — afetam os preços.

Afinal, vale lembrar que o Banco Central manipula a SELIC exclusivamente com a intenção de controlar os preços. Toda a justificativa para manipular juros é exatamente “gerenciar os preços”.

Até agora, vimos as consequências da manipulação dos juros. Falta ver se essa manipulação ao menos alcança seu objetivo, que é controlar os preços.

O gráfico abaixo, também com média móvel de 12 meses, mostra a evolução da taxa de inflação de preços no setor atacadista.

Gráfico 12: evolução mensal dos preços do atacado. Fonte: Banco Central

Relembrando: os atacadistas são aqueles que compram das indústrias e vendem para as Casas Bahia. Na prática, esse gráfico mostra o comportamento dos preços que os atacadistas — depois de terem comprado das indústrias — cobram das Casas Bahia pelos estoques fornecidos.

Se os preços estão aumentando, isso significa que a demanda dos empresários (Casas Bahia) para repor seus estoques está crescente, o que indica que o consumo e a renda da população estão em alta. Se os preços estão desacelerando, a demanda dos empresários para repor seus estoques está em retração, o que indica que o consumo e a renda real da população estão em queda.

Não existe queda contínua de preços no setor atacadista se a economia está aquecida.

Utilizando o que já foi apresentado, é possível deduzir que, se os preços no atacado estão subindo, é porque a SELIC está caindo, a oferta monetária está aumentando, a renda está subindo, e o comércio está fazendo pedidos para as indústrias para repor seus estoques.

Inversamente, se os preços no atacado estão caindo, é porque a SELIC está subindo, a oferta monetária está desacelerando, a renda está estagnando, e o comércio não está repondo estoques.

No gráfico abaixo (o site do BC novamente mudou aleatoriamente a cor das linhas), a linha vermelha é a SELIC e a azul, os preços no atacado. Média móvel para 12 meses. As escalas estão diferentes, mas o que interessa é a correlação.

Gráfico 13: evolução da SELIC (linha vermelha) versus evolução mensal dos preços do atacado (linha azul). Fonte: Banco Central

Comecemos com uma curiosidade: ano 2002, Lula eleito, vários empresários acreditaram que a hiperinflação iria voltar. Logo, eles saíram aumentando seus preços avassaladoramente para se proteger (houve também uma forte desvalorização cambial à época, com o dólar indo de R$ 2,40 para R$ 3,99). Consequentemente, para conter essa escalada de preços, o Banco Central elevou a SELIC pra 26,50% ao ano.

E aí todo o ciclo começou. De novo, a correlação é total.

Aumento na SELIC desacelera o aumento da oferta monetária e da renda. O comércio passa a fazer menos pedidos para o atacado para repor estoques. Consequentemente, as indústrias vendem menos para o atacado. Ou seja: aumento dos juros gera diretamente uma desaceleração nos preços do atacado.

E vice-versa. Redução na SELIC acelera o aumento da oferta monetária e da renda. O comércio passa a fazer mais pedidos para o atacado para repor estoques. Consequentemente, as indústrias vendem mais para o atacado. Ou seja: redução dos juros gera diretamente uma aceleração nos preços do atacado.

Agora, outra curiosidade:

Gráfico 14: evolução da SELIC (linha vermelha) versus evolução mensal dos preços do atacado (linha azul), com destaque para o período 2014–2015. Fonte: Banco Central

A única desconexão ocorre no período 2014–2015. A SELIC começa a subir em 2013 e os preços no atacado caem, como era de se esperar. No entanto, eles voltam a subir com força em 2015, mesmo com a SELIC subindo.

Motivo? Os controles de preços do governo Dilma. O congelamento dos combustíveis e das tarifas de energia elétrica diminui os custos das indústrias, o que as permitiu segurar um pouco o aumento dos preços no atacado. Isso se manteve até o final de 2014, pra garantir as eleições.

Em 2015, já reeleita, ocorre a inevitável correção dos preços. E então eles disparam, mesmo com os juros já subindo. Para piorar, ainda houve uma brutal desvalorização cambial, com o dólar saltando de R$ 2,40 para R$ 4,20.

Por isso, a SELIC teve de subir ainda mais para contrabalançar esses reajustes. Só que ela subiu tanto, que os preços voltaram a desabar feito a uma pedra.

Conclusão: os juros afetam diretamente os preços do setor atacadista.

Certo, mas nós consumidores compramos no varejo, e não no atacado. E são os preços do varejo que o IBGE mensura por meio do IPCA. E é o IPCA que o Banco Central monitora. O Banco Central mexe na SELIC exatamente de olho no IPCA. Toda a justificativa para se mexer na SELIC está no IPCA.

O que nos leva então à derradeira pergunta:

Afinal, aumentar a SELIC funciona ou não pra esterilizar a carestia?

Já vimos que a SELIC afeta a quantidade de dinheiro líquido na economia, o PIB, a estrutura de produção da economia, todo o setor industrial, os preços no atacado e o comércio (embora menos).

Mas a SELIC é manipulada pelo Banco Central com a justificativa de que isso irá afetar os preços ao consumidor, e não os preços do atacado.

Funciona? Pela lógica, tem de funcionar. Afinal, se a SELIC afeta a quantidade de dinheiro na economia, isso de alguma forma tem de afetar os preços finais ao consumidor.

No gráfico abaixo, a linha azul é a SELIC e linha vermelha é o IPCA.

Gráfico 15: evolução mensal da SELIC (linha azul) versus evolução mensal do IPCA (linha vermelha). Fonte: Banco Central

De novo, a correlação é direta.

Mas atenção! O IPCA embute vários preços que não estão sujeitos às leis do mercado, pois são preços administrados pelo governo. Combustíveis, energia elétrica, gás de bujão, pedágio, taxa de água e esgoto, planos de saúde, tarifas de celular e de telefonia fixa, remédios, licenciamento etc.

E esses preços não podem ser afetados pela SELIC.

Assim, vamos pegar apenas os preços livres, que são os preços determinados livremente pelo mercado.

Gráfico 16: evolução da SELIC (linha vermelha) versus evolução mensal do IPCA-itens livres (linha azul). Fonte: Banco Central

Observe que a correlação é total.

Começando no início de 2002: a SELIC está subindo e o IPCA, caindo. E então Lula é eleito e o IPCA dispara (por causa daquela elevação dos preços no atacado e também por causa da desvalorização cambial ocorrida).

Consequentemente, a SELIC sobe forte e o IPCA desaba.

Em 2004, a SELIC cai rapidamente e o IPCA ameaça uma reação tímida. Imediatamente a SELIC volta a subir (essa era a época de Afonso Beviláqua no BC) e, com essa subida da SELIC, o IPCA cai forte até o fim de 2006. Dali, a SELIC cai prolongadamente e o IPCA sobe. E por aí vai.

Nova curiosidade:

Gráfico 17: evolução da SELIC (linha vermelha) versus evolução mensal do IPCA-itens livres (linha azul), com destaque para o período 2014–2015. Fonte: Banco Central

Observe que, após a liberação dos preços congelados, o IPCA ameaça uma subida. Mas a SELIC subiu tão forte (e a oferta monetária já havia desabado; ver gráficos 2 e 3), que o IPCA perdeu força e afundou. Está hoje nas mínimas históricas.

Vale ressaltar que foi por causa daquele período destacado — em que os juros estavam subindo, mas o IPCA resistia e chegou até a subir após a liberação dos preços — que surgiram teorias esdrúxulas como a da “dominância fiscal”, a qual dizia que aumentar juros não só não mais combatia a carestia como, ao contrário, gerava ainda mais carestia, e que o certo, portanto, seria reduzir a SELIC para quase zero, como disse André Lara Resende.

Tudo por causa daquele período ali. Aparentemente, foi esquecido que a economia havia vivenciado um período de dois anos e meio de controle de preços, e que após a liberação haveria vários reajustes em todas as áreas, inclusive nos preços livres — reajustes esse que, aliás, foram até bastante modestos.

Por fim, um dos gráficos mais reveladores de todos.

Gráfico 18: evolução mensal do IPCA-itens livres (linha azul) versus evolução mensal dos preços do atacado (linha vermelha). As escalas estão diferentes. Fonte: Banco Central

A linha vermelha são os preços no atacado, que nós já vimos, e a linha azul é o IPCA preços livres. As escalas estão diferentes (os preços do atacado, coluna da esquerda, variam com muito mais amplitude que o IPCA livre), mas o que importa é: a variação é praticamente idêntica. No entanto, quem varia primeiro são os preços no atacado. Depois, só depois, é que varia o IPCA.

Isso é óbvio. Como já visto, o comércio faz as encomendas para o setor atacadista, e o atacado encomenda para as indústrias. Se os preços no atacado sobem, os do comércio irão subir (embora menos). Se os preços do atacado caem, os do comércio irão desacelerar.

Ou seja, quem determina o IPCA são os preços do atacado.

Portanto, e finalmente, chegamos à conclusão derradeira: o Banco Central mexe na SELIC para influenciar o IPCA. Só que o IPCA só é influenciado depois que toda a estrutura de produção da economia foi alterada; depois que a SELIC afetou indústria, atacado e varejo.

Ou seja: para influenciar o IPCA, a SELIC primeiro afeta toda a estrutura de produção da economia. E então, só então, isso vai afetar os preços aos consumidores.

Conclusão: para que o governo consiga controlar preços manipulando juros, ele tem necessariamente que desarranjar toda a economia.

É impossível manipular juros e acreditar que os efeitos disso ficarão restritos apenas ao preço das roupas, do dentista, do encanador, da pizza, do liquidificador, da geladeira etc.

Os preços estão altos? O BC eleva a SELIC, o crédito diminui, a oferta monetária cai, o consumo cai, o comércio reduz encomendas para as indústrias, as indústrias cortam produção e demitem, os preços no atacado caem, e aí então, só então, o IPCA desacelera.

É assim que funciona um controle de preços via manipulação arbitrária de juros.

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