Por que deixei de comer em restaurantes

Adnilson Pinheiro
9 min readDec 5, 2017

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Todos os casos relatados aqui aconteceram comigo e motivaram essa reflexão, entre outras.

Minha aventura profissional pelas panelas começou há cerca de sete anos, quando ingressei na primeira turma do bacharelado em Gastronomia da Universidade Federal do Ceará. Claro que à época eu já vinha flertando com o mundo da cozinha, mas esse foi o divisor de águas a partir do qual eu posso traçar o início da minha vida de cozinheiro.

E de lá pra cá houve muitos momentos marcantes, tanto alegres quanto tristes, engraçados e taciturnos. Um desses momentos, eu me lembro, se deu no meu primeiro estágio em um restaurante.

Um dos melhores restaurantes da cidade, a casa ganhara o prêmio Veja Fortaleza de melhor restaurante de frutos do mar vários anos consecutivos, e esse renome me motivou a bater na porta com um currículo no qual constava apenas “estudante” e pedir um estágio.

Pois bem. Já com alguns meses de casa, ouvi de um colega recém-chegado a seguinte máxima (que alguns anos depois eu me vejo repetindo):

“Quanto mais eu trabalho em restaurantes, menos eu como fora de casa.”

Sim, ele falava da falta de higiene. Eu, não.

A gastronomia e o mito do empreendedor

Nos últimos anos, todos vimos o desabrochar da gastronomia nacional e mundial: desde a abominação arquitetônica que é a varanda gourmet até a série documental da Netflix Chef’s Table (que eu adoro) passando por prateleiras de supermercado abarrotadas de especiarias e produtos com assinaturas de grandes chefs, ninguém pode negar que cozinhar agora é trend.

Por outro flanco, vimos também o fenômeno recente da exaltação do empreendedor. Não sei até que ponto esse movimento surge como válvula de escape para empresários cansados de serem vistos socialmente como vilões e até que ponto ele tenta apresentar uma saída para pessoas que não conseguem mais se ver em uma carreira sem perspectiva, o certo é que ele existe e tem nome próprio: empreendedorismo de palco.

Não importa se é o coach de coaches ou o vendedor de cosméticos que não vende nada, só cadastra novos vendedores — os gurus do empreendedorismo tem uma coisa em comum: eles nunca abriram empresas. Isso é, pelo menos não antes de abrirem uma empresa para ensinar as pessoas como abrirem e tocarem empresas.

E dois dos lemas mais repetidos pelos empreendedores de palco são também duas das ideias mais perigosas que se pode adotar: “foco no resultado” e “faça o que ama”, e eu vou me demorar um pouco em cada um.

O foco no resultado

Antes de mais nada: ninguém percebe que isso é literalmente maquiavélico? Foco no resultado é apenas outra forma de dizer que “os fins justificam os meios”, frase célebre atribuída ao pensador italiano Nicolau Maquiavel.

Só que quando eu digo que os fins justificam os meios, as pessoas ficam com um pé atrás. Elas logo pensam que esse pensamento pode dar brecha a ações moralmente questionáveis.

O mesmo não acontece com o foco no resultado.

O uso das palavras “foco” e “resultado” dá ares de business à coisa toda. Logo dizemos que sim, o foco deve ser no resultado: na satisfação do cliente, na qualidade do produto ou serviço, na expansão das atividades.

Ninguém diz que o foco também deve estar no “como”, nos processos, nos caminhos tomados para se chegar a esse dito resultado.

E a gastronomia com isso?

Bom, sob o pretexto do foco no resultado, vemos práticas absolutamente reprováveis se tornarem regra, como por exemplo:

  • Fazer dois turnos todos os dias;
  • Acumular as funções de lavador de pratos e de cozinheiro;
  • Trabalhar 70 horas por semana;
  • Fazer compras no seu horário livre para o seu patrão, que vai lhe reembolsar no dia seguinte.

Tudo isso para que o resultado final seja alcançado: a satisfação completa do cliente e o enriquecimento recorde do patrão.

Se você não é um cozinheiro, eu vou deixar claro: isso não é exceção. Isso está se tornando cada vez mais a regra. E a cereja do bolo vem a seguir.

Faça o que ama

A outra falácia do empreendedorismo nutella é o “faça o que ama”.

Quando alguém diz para você fazer o que ama, você se imagina em uma praia de águas azuis e areia branca, com golfinhos nadando ao alcance das mãos e peixinhos multicoloridos retirando as cutículas dos seus pés. Seria lindo, não seria?

Seria.

Na verdade esse lema, muito positivo na superfície, logo mostra outra face: você não precisa ganhar bem, você faz o que ama. Você não precisa ter tempo de lazer, você faz o que ama, seu trabalho já é seu lazer. Você não precisa de reconhecimento ou respeito. Você faz o que ama.

Uma variação comum desse tema é de que cozinha é guerra. O trabalho brutal, as horas extras (geralmente não remuneradas), o ambiente hostil, as agressões verbais, o salário minguado — tudo isso deve ser encarado como uma gloriosa cicatriz de batalha. E se você não concorda, você é mole. Não serve pro trabalho.

E é por isso que a média salarial dos cozinheiros da cidade de São Paulo é de pouco mais de 1.200 reais: porque ou você trabalha por amor, ou você é mole demais pro serviço.

E é aí que nos deparamos com os dois trens do problema de matemática: um vem a 80km/h, o outro a 120km/h. O que acontece quando eles colidem?

O carro de Fórmula 1

Junte todos esses fatores e você tem pessoas de classe média ou alta que caíram no conto da gastronomia glamourosa, que aprenderam com seus pais que só abrindo o próprio negócio é que terão sucesso e que leem todos os livros dos gurus do empreendedorismo de palco. E o que essas pessoas fazem ao abrir seus restaurantes é o que eu chamo de Analogia do Carro de Fórmula 1.

Caso você não saiba, o motor de um carro de Fórmula 1 só dura duas corridas. Isso mesmo. Você vê o GP desse domingo e o do próximo, e no terceiro já é um outro motor. Isso acontece porque os pilotos levam seus carros aos mais absolutos limites a todo tempo. Eles fazem isso de propósito para alcançar seus resultados, e sabem que a consequência disso é destruir um motor que, em outras situações, duraria anos.

O empreendedor de restauração se tornou esse piloto, e o motor é o seu funcionário. Não importa se o garçom vai pedir demissão depois de dois meses de trabalho ou se o cozinheiro só aguenta o tranco indo trabalhar bêbado todo dia. O que importa é ficar o mais rico possível o mais rápido possível.

Ganhar a corrida, mesmo que me custe o motor.

O efeito trote

Forças Armadas e Universidades têm algo em comum: o trote.

Mesmo que você nunca tenha passado por isso, certamente sabe do que se trata: os veteranos executam uma série de rituais com o simples intuito de humilhar os calouros e mostrar quem é que manda.

Na cozinha acontece o mesmo, de duas formas: uma óbvia e outra nem tanto.

A forma óbvia, como o adjetivo indica, é bastante óbvia: cozinheiros antigos levando os mais novos a cometerem erros ou fazerem o trabalho que ninguém mais quer, quando não lançam mão de pequenas agressões físicas, como cortes e queimaduras “acidentais”.

A forma menos óbvia, porém, parece-me mais danosa.

Imagine um cozinheiro do interior do Ceará, que foi para São Paulo ganhar a vida como churrasqueiro, trabalhou em uma casa de renome a vida quase toda e, ao retornar às terras alencarinas, encontra um par de sócios para abrir uma casa de carnes. Cortes americanos, coisa fina.

Seria de se esperar que, após passar por todo tipo de humilhação e destrato por ser nordestino e cozinheiro, ele teria mais bom senso e seria um pouco mais amigável.

Ledo engano.

Assim como a criança que, apanhando na infância, torna-se um adulto agressivo com os próprios filhos em vez de quebrar o ciclo vicioso, também esse agora empreendedor motivava seus funcionários com gritos e humilhações. Chegou mesmo a proibir expressamente qualquer membro da equipe de trocar mensagens de WhatsApp com um ex-funcionário, sob pena de demissão (sic!).

Assim como os calouros querem repetir o trote com as futuras turmas, esquecendo-se completamente do quão humilhante e desnecessário foi o seu próprio trote, também muitos dos cozinheiros que chegam a ser donos de seus negócios repetem irrefletidamente as humilhações e abusos de que foram, eles mesmos, vítimas.

A questão da qualificação e a boa imagem do proprietário

É claro que nada disso se dá às vistas dos clientes. Afinal, como dizem os franceses, il faut cacher l’effort — é preciso esconder o esforço. É preciso que as pessoas não saibam que na coxia as bailarinas choram e gemem.

E para esconder seu desrespeito pelos funcionários, os restaurateurs desenvolveram o pernicioso hábito de reclamar da falta de qualificação profissional no setor. Sempre que questionados, os ditos chefs (se denominam assim, apesar das dólmãs sempre alvas) apontam uma suposta falta de formação e de qualificação dos cozinheiros e aspirantes a chefs de cozinha.

E o que acontece quando se deparam com alguém que se deu o trabalho de estudar? Oferecem mil reais para que você trabalhe no almoço e no jantar.

Assim, uma confeitaria na qual o gerente de produção ganhava R$1.200 chamava suas confeiteiras no Instagram de “abelhinhas”, e assim os clientes achavam que seus bolos eram decorados em meio a risadinhas pueris e unicórnios saltitantes.

Há também uma hamburgueria gourmet, uma das primeiras da cidade, conhecida pelo estilo americano, cujo dono me telefonou num sábado à noite, pedindo que eu substituísse um chapeiro na nova loja. O pagamento? Trinta reais. Trinta reais esses que sequer me permitiriam comer um hambúrguer naquele mesmo restaurante. Dias depois eu soube, através de um antigo colega de panelas que trabalhava lá, que a casa paga a seus funcionários um vale refeição de R$5 por dia.

Um dos meus casos favoritos é o de uma outra confeitaria, que me chamou para uma entrevista individual. Depois de duas horas, me haviam perguntado se eu morara fora, me haviam dito que a chef-proprietária viajava para Paris pelo menos duas vezes ao ano e me pediram para escrever uma redação de próprio punho, ali mesmo.

Então me disseram que a posição que tinham para mim era de R$800.

A meu ver, esse tempo teria sido melhor gasto com uma bela soneca. E o mais irônico: a mesma chef-proprietária, poucos dias antes, estava louvando publicamente a chegada ao Brasil da escola Le Cordon Bleu, uma das mais renomadas (e caras) do mundo, que, segundo ela, traria a tão desejada qualificação do setor.

Desnecessário dizer que ela não explicou como alguém poderia pagar um curso de dez mil euros por mês para ganhar um salário de oitocentos reais.

E a solução?

Claro que apontar os problemas é o começo, mas é importante também apontar possíveis caminhos.

Já que a formação não parece fazer diferença, e donos de restaurante que já foram cozinheiros parecem não tem interesse em parar a roda, o que nos resta?

Acredito que a solução passa por uma cultura corporativa sustentável no longo prazo.

Quero deixar claro que não acredito que o lucro seja algo deplorável. Creio que o empreendedorismo pode ser uma força brutal de ascensão e mudança social. Mas não quando você se preocupa mais em ir a Paris duas vezes ao ano do que em pagar um salário condizente com as exigências que faz das pessoas que ajudaram você a ganhar esse dinheiro, pra começo de conversa.

Não posso engolir quando um empregador me diz que não pode me pagar mais de mil e quinhentos reais e anda num carro que custa mais de duzentos mil. Diga que não quer, que não vai. Mas não me diga que não pode.

empresas lucrativas ao redor do mundo que negam a dialética de crescimento ou morte, promovendo um conceito de crescimento sustentável ambiental e socialmente. E esse deveria ser o modelo.

Houve um tempo em que restaurantes eram empresas familiares, que serviam para pôr os filhos na faculdade e ajudar alguém. Houve um tempo em que o legado de um restaurante ia além dos lucros obtidos. Um tempo em que Ray Croc seria um exemplo deplorável, não alguém a ser seguido.

Voltando à afirmação do meu antigo colega de que comia cada vez menos fora de casa, por incrível que pareça eu não vejo mais tanta falta de higiene nos restaurantes por onde passei — pelo menos não tanta quanto as pessoas imaginam. Mas não é por isso que eu deixo de comer em restaurantes.

Cada vez que vou a uma entrevista de emprego, aquele se torna um lugar onde deixo de comer, simplesmente porque não posso, em boa consciência, apoiar esse modelo de negócios.

Toda vez que gastamos nosso dinheiro em algo, damos poder a esse algo. Seja um produto ou serviço, reforçamos aquele negócio em detrimento de tantos outros sempre que abrimos a carteira. Por isso o dinheiro é extremamente político: ele é uma cédula de votação que marcamos todos os dias.

Eu posso usar meu dinheiro para apoiar um negócio pequeno que tenta dar boas condições de trabalho e de vida a seus empregados. Posso usar meu dinheiro para incentivar a criatividade, a inovação e o respeito dentro de uma empresa.

Mas não posso, em boa consciência, dar esse poder para um empresário tirar férias em Dubai enquanto as pessoas que o ajudaram a produzir essa riqueza fazem consórcios de quatro anos para comprar uma moto. Não posso ser condescendente com quem abraça e beija no Instagram mas xinga e grita na vida real.

Talvez chegue o momento em que eu realmente só coma em casa. Seria uma pena.

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