Carta-desabafo aos meus professores

Alexia S-H
6 min readFeb 18, 2016

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Caros professores,

Sempre me perguntei o que motivou vocês a se tornarem professores. Foi pela sensação de ensinar e potencialmente mudar (para melhor) a vida das pessoas? Foi para querer transmitir seus conhecimentos para gerações mais novas? O que exatamente deu essa fagulha para ser professor?

Me pergunto isso pois é uma parte fundamental do ser professor. É tão importante quanto alguém ter decidido que iria ser cineasta ou advogado ou qualquer que seja a carreira. Mas também me pergunto o quão em sintonia vocês estão com isso.

A verdade é que depois de 3 anos e indo para o meu último ano de faculdade com vocês como professores, eu perdi a vontade de estudar, ou melhor dizendo, vocês destruíram a minha vontade e disposição de estudar.

Vocês colocaram uma expectativa geral para a sala já no primeiro semestre de aula, dizendo que a minha turma era uma das melhores turmas que já apareceu lá. Depois, essa fama de “melhor sala” continuou. Até hoje carregamos um pouco dessa fama. E ainda assim, aumentam cada vez mais a expectativa.

Só tem um grave defeito na expectativa de vocês. Ou melhor, de alguns de vocês. Semestre passado, um disse em plena aula, que queria que déssemos e tentarmos dar o melhor de nós, pois queria que nós crescêssemos mais do que já estávamos crescendo. Esse momento foi o momento que percebi que esse professor e muitos outros nunca quiseram que eu desse o meu melhor. Vocês sempre quiseram que eu desse o impossível, pois suas expectativas estão ajustadas para pessoas que tem o mesmo perfil em termos de sentidos, ou seja, são perfeitamente capazes de ver, ouvir e sentir.

Vocês acham justo avaliar uma deficiente auditiva como se não fosse? Vocês acham que é aceitável exibir filmes estrangeiros sem legendas? Ou que é aceitável exigir um trabalho de análise de filme brasileiro sem oferecer alternativas? Ou vocês sentarem no fundo da sala durante um filme e falar? Ou falarem por um longo período sem pausa e sem qualquer palavra escrita na lousa?

São atos como esses que me agridem e me fazer perder a vontade de estudar, de melhorar e dedicar. Eu entrei nessa faculdade acreditando que os professores iriam se conscientizar o suficiente para se adaptarem aos meus limites e às minhas necessidades. Infelizmente não foi o caso. Tive professor que logo no primeiro dia de aula já veio me perguntar como ele podia adaptar as aulas para eu aproveitar melhor. Tive professor que adaptou o critério de correção das minhas provas para que eu não fosse tão prejudicada (afinal, algumas dessas notas puxam bastante a nota geral para baixo e isso me prejudicava, porque não era uma reflexão mais realista do meu desempenho e sim um resultado cruel e não realista que dizia que eu era uma péssima aluna, enquanto na verdade, eu era excelente).

Eu me impressionei com o fato de que vocês professores, de alto nível acadêmico, e alguns com realizações importantes na carreira não acadêmica, serem inconsciente a esse ponto. Se eu sou a primeira aluna com deficiência auditiva no curso e vocês não estão aproveitando essa oportunidade para aprender, entender o meu lado, e se adaptarem para eventuais futuros alunos, então, eu fico com a consciência pesada me perguntando do que será dos futuros possíveis alunos com deficiência auditiva. À deficiência física e visual, a faculdade já se adaptou. Mas e à deficiência auditiva e intelectual? Como é que fica essa situação?

Simplesmente não consigo entender como vocês desperdiçam essa oportunidade. Se fosse juntar o esforço de todos vocês em me entender, me incluir, se adaptarem, não chegaria nem aos pés do que os meus professores do colegial fizeram por mim. Aliás, esses foram mais longe do que vocês: eles me fizeram sentir humana, valorizada, respeitada, eles se importavam comigo claramente e torciam pelo meu futuro. Enquanto vocês sequer dão sinais disso. E o mais preocupante é que vocês são professores que já pegaram diversas gerações e sequer mencionam as minorias mais invisíveis. Se vocês professores de audiovisual não conseguem transmitir a mensagem de que é necessário todos se adaptarem a todos e sequer incentivam a trabalhar com outras minorias, onde é que o mercado de trabalho vai evoluir com essas gerações que sairão da faculdade com “mais do mesmo” e não “mais do diferente”?

Sabiam que estou a mais de 2 anos tentando estágio? Não consigo estágio, porque o mercado de trabalho ainda tem forte preconceitos e mitos em suas raízes a respeito dos deficientes auditivos. Só tive duas entrevistas que mostraram potencial. Infelizmente, depois de 6 meses, ainda espero qualquer sinal de vida deles. Já teve entrevista que falaram na minha cara “É, seu currículo é bom para estágio, mas…. você não é bem o nosso perfil”. Sim, ouvi isso. Eu sou muito mais respeitada como mulher do que deficiente auditiva.

Que mercado de trabalho é esse que vocês estão formando que mal vão mexer um dedinho para mudar isso? Como é que vocês se atrevem a dizer que querem o melhor de nós se sequer nos incentivam a ir atrás dessas nuances, dessa falta de representatividade ou melhor dizendo, a fechar esses buracos no audiovisual e formar um mercado de trabalho mais consciente? O que será das gerações futuras que passarão por vocês? Vocês têm consciência de que ao menos 2 vezes por semana eu tenho um momento que me pergunto o que será do meu futuro? Se serei capaz de conseguir emprego? Se serei capaz de ter um currículo tão impressionante quanto o de vocês? E se serei capaz de ir longe como eu sonho ir?

São pensamentos que fazem parte do meu cotidiano, porque eu não tenho a mesma certeza que muitos da minha sala têm, que é a de que o futuro deles está parcialmente garantido com um diploma universitário. Eu preciso ir longe para ter qualquer mera sensação de futuro garantido. Se ninguém me dá estágio mesmo quando estou prestes a formar, isso só significa que ainda não tenho a mesma valorização que meus colegas têm. Eu tenho que ter pós-graduação para “compensar” a minha perda auditiva e provar que sou sim capaz, mas não deveria chegar a esse ponto.

Essa é uma das razões pelas quais eu insisto e insistirei em fazer o meu TCC focado nas minorias, e mais importante, me representar. Eu preciso que isso mude. Eu preciso que surjam mais oportunidades, mais representatividade e preciso me sentir mais valorizada, mais respeitada. Em diversos trabalhos em grupo e individuais me senti em desespero, porque estava percebendo os sinais clássicos de que eu não estava sendo respeitada dentro dos meus limites e estava sendo forçada a ser algo que não sou capaz de ser.

E ainda assim, sem pensar no lado estudantil, eu tenho um certo dó da inocência de vocês. Digo inocência porque parece que vocês estão negando o fato de que eu sou deficiente e comigo tem uma oportunidade de aprender sobre um lado diferente desse mundo, sobre um ponto de vista completamente diferente e que cedo ou tarde vocês estarão na minha situação. É como vocês estivessem usando aquilo do “Ah, aconteceu com ela, mas não vai acontecer comigo”.

A verdade cruel? Vocês estarão no meu lugar. E vão entender o que significa quando falo “a pior sensação é saber que você está perdendo a guerra contra seu corpo, e perceber tarde demais que seu cérebro está traindo você da pior maneira o possível”. Posso dar uma dica: vocês vão se arrepender de não terem sentado comigo e conversado sobre esse meu universo, porque como diria Bane, aquele vilão do The Dark Knight Rises, “I was born in it, molded by it”. E se vocês pagassem o preço da inclusão ou fizessem valer “todos se adaptam todos”, perceberiam que valia a pena pagar esse preço, pois isso incluiriam vocês nesse futuro momento.

Eu já aceitei que o silêncio é o meu futuro. Mas vocês já aceitaram a possibilidade de que o silêncio será parte do futuro de vocês e vai fazer a sua vida um inferno? É por isso que digo para aproveitarem todas as oportunidades possíveis, pois a minha batalha por acessibilidade, igualdade também acaba incluindo o futuro de vocês. Uma pena que vocês não percebam isso.

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Alexia S-H

“I understood myself only after I destroyed myself. And only in the process of fixing myself, did I know who I really was.” — Sade Andria Zabala